Euzinha de turbante |
Por admin
julho 25, 2014
Quando eu era criança e sofria todo tipo de bullying na escola por conta do meu cabelo e da minha religião (naquele tempo, eu era uma espírita pobre em escola evangélica de classe média alta, imaginem o drama), uma das formas que encontrei de sublimar meu sofrimento foi o apego à figura do príncipe encantado europeu.
Minhas leitoras queridas devem estar se perguntando como se deu tal afeição, e eu me explico: a primeira (e mais óbvia) parte tem a ver com os contos de fadas. Eu poderia sonhar, bem secretamente, que eu era a princesa que um dia seria resgatada por algum príncipe, que evidentemente teria feições caucasianas. Hoje em dia eu sinto um frio na espinha quando lembro que as únicas referências de beleza que eu tive em minha infância foram de pessoas brancas, e é por isso que eu luto tanto por representatividade.
A segunda razão é a que eu considero mais perniciosa: na minha infância e grande parte da adolescência, o que eu mais ouvia era que ninguém ia me querer. Eu, negra, obviamente não iria me casar. Ao meu redor, tias ‘solteironas’ (elas eram pejorativamente denominadas dessa maneira) não me deixavam avistar outro horizonte que não a solteirice. Atualmente há pesquisas que demonstram o quanto a mulher negra é preterida pela sociedade, ocupando um espaço de invisibilidade e solidão. O meu medo tinha muito fundamento.
A luz no fim do túnel, pra mim, era recorrer à figura do homem europeu como tábua de salvação. Não foi uma idéia que eu tirei do nada. Afinal, várias tias minhas se casaram com holandeses, e eu tinha diante de mim não apenas uma nova geração de primas e primos com dupla nacionalidade, mas também primas brasileiras viajando para a Europa e se casando com moçoilos de lá. O glamour de esperar parentes no aeroporto reforçava em mim a ideia de que o amor romântico, heteronormativo, monogâmico e gerador de status social poderia sim acontecer pra mim. Ele apenas não ocorreria no Brasil.
Dessa forma, eu fui crescendo ouvindo que eu era feia na escola, e sempre rebatendo que eu era feia só no Brasil, pois na Europa eu era linda. Minha resposta era sempre recebida com risadas irônicas e piadinhas, mas eu me mantinha firme, com uma convicção baseada em fatos familiares que me faziam crer que na Europa eu seria sim “a tal”. Engraçado que isso se firmou tanto em mim como um mecanismo de defesa, que até hoje eu me pego com esse argumento. Como da última vez em que estive no Brasil e fui cortar o cabelo. O cabelereiro queria alisar meu cabelo “ruim” por tudo, e quando eu dei por mim lá estava eu falando que na Irlanda meu cabelo é lindo.
Mas por quê exatamente eu estou me expondo dessa forma, com mais um causo a meu respeito? Bom, hoje é Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, e este post é minha homenagem à data – tão urgente e necessária – que ainda permanece esquecida. Eu entendo que a minha história não é das piores, e que me apegar à figura salvadora do homem branco foi (em partes) até benéfico pra minha auto-estima. As histórias da minha família são bem felizes e o tio mais incrível que eu tive nessa vida foi um filósofo holandês que deu uma boa contribuição à formação do meu caráter, e eu serei sempre grata a ele por todas as nossas conversas e por ter sido uma pessoa tão humilde, legal, ousada e iluminada.
Entretanto, estar fora do país há 6 anos, sendo que o último deles tem sido na Europa, mudou bastante a minha visão dos fatos. Vou tentar enumerar os meus achados aqui, e convido outras mulheres negras a adicionar suas próprias conclusões:
1. Essa visão de que na Europa as coisas são “diferentes” não passa de uma romantização, uma idealização que tem como pano de fundo a própria noção de superioridade do homem branco europeu. O gringo europeu é muito mais festejado que gringos de outras partes do mundo. Se o gringo em questão for de algum país subdesenvolvido então… a Copa do Mundo nos deu a medida disso: os alemães foram simpáticos conosco? Sim. Mas houve um endeusamento que chegou a produzir um grande boato nas redes sociais e isso é sintomático da nossa visão romantizada do gringo salvador;
2. O racismo no mundo é endêmico. Ser negra, ter amigas negras, ser casada com uma pessoa negra – nada disso significa ausência automática de racismo. Porque o sistema é racista e nos ensina, desde muito cedo e de forma bem sutil, que na hierarquia da vida o negro está em posição subalterna. Eu tenho frequentado rolês de cabelos naturais, e perdi as contas das vezes em que mulheres desabafaram nesses espaços que seus maridos europeus não querem deixá-las ter o cabelo crespo natural. Isso não é mera coincidência.
3. Essa ‘preferência’ de gringos por mulheres negras brasileiras reflete, em muitos casos, uma intersecção entre racismo e machismo, que tem como resultado a objetificação e exotificação do corpo da mulher negra. Aqui na Irlanda eu recebo muitos cumprimentos sinceros, mas também me assusta a agressividade de certos “elogios”. Inclusive escrevi um conto a respeito disso no meu blog pessoal (http://theafrolatina.blogspot.ie). A exotificação ocorre porque se coloca o outro em um patamar inferiorizado, de desumanização, e isso é racista e muito grave.
4. É o meu último ponto, e também o que eu considero mais importante: eu não fui a única mulher negra a ter a figura do salvador europeu como prêmio consolação por não ser querida e apreciada dentro do meu próprio país. Isso é uma violência. Eu “comprei” a ideia, me apeguei a ela pra sobreviver? Sim. Mas não deixa de ser violento o fato de que a solução para a solidão da mulher negra brasileira é ir embora. Essa desvalorização tem que acabar e é por isso que nessa data nós estamos aqui, dispostas a falar, dispostas a lutar.
Que esse 25 de julho reafirme em nós uma identidade que nos foi negada. Que a nossa pele escura revele uma ancestralidade digna de orgulho, e não de apagamento e conformismo. Que nossos cabelos tenham a forma que desejarmos, e não a forma do mimetismo compulsório. Que a nossa negritude seja cada vez mais visível e apreciada por aquilo que ela é: um símbolo de beleza e muita resistência.
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