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domingo, 11 de janeiro de 2015

Feminicídio é retrocesso na busca pela igualdade e no combate à discriminação

"A violência contra as mulheres é uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres que conduziram à dominação e à discriminação contra as mulheres pelos homens e impedem o pleno avanço das mulheres..." (Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, dezembro de 1993).
No último dia 18 de dezembro o Plenário do Senado aprovou a inclusão do feminicídio no Código Penal como circunstância qualificadora do crime de homicídio (PLS 292/2013). Agora, o projeto seguirá para votação na Câmara dos Deputados.
De acordo com o projeto, o feminicídio passa a ser uma das formas de homicídio qualificado. O crime é definido como o homicídio praticado contra a mulher por razões de gênero, quando houver violência doméstica ou familiar, violência sexual, mutilação da vítima ou emprego de tortura. A pena definida pelo Código Penal é de 12 a 30 anos de reclusão.
Não resta dúvida que ao longo da história e até nos dias atuais as mulheres sofrem preconceitos em todos os níveis.  Também é certo que a violência contra mulher é um dos males que assolam e desafiam a sociedade em todo mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 35% das mulheres no mundo foram vítimas de violência física ou sexual em 2013. Em alguns países, essa realidade atinge 70% da população feminina.  
Não se pode ignorar o fato de que no Brasil 77% das mulheres em situação de violência sofrem agressões semanal ou diariamente, conforme revelaram os dados dos atendimentos realizados de janeiro a junho de 2014 pela Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR).
Nos primeiros seis meses do ano, o Ligue 180 fez 265.351 atendimentos, sendo que as denúncias de violência corresponderam a 11% dos registros, ou seja, foram reportados 30.625 casos. Em 94% deles, o autor da agressão foi o parceiro, ex ou um familiar da vítima. Os dados mostram ainda que violência doméstica também atinge os filhos com frequência: em 64,50% os filhos presenciaram a violência e, em outros 17,73%, além de presenciar, também sofreram agressões.
Para a Nadine Gasman, representante do escritório da ONU Mulheres no Brasil, “o que determina a violência contra as mulheres é precisamente a questão cultural do machismo. Essa ideia de que homens e mulheres não são iguais”.
E é justamente neste ponto que reside um dos problemas do referido projeto. Ao tratar de forma diferenciada a mulher — punindo com mais severidade o homicídio praticado contra a mesma —, numa clara demonstração de discriminação em que a mulher é, em uma visão paternalista, disposta como o sexo frágil, o projeto, também, viola o princípio constitucional da igualdade entre pessoas do mesmo sexo.
Apesar de ser compreensível e até louvável toda a preocupação em combater e reduzir a violência contra a mulher, a aprovação do referido projeto representa um retrocesso na busca pela igualdade e no próprio combate à discriminação, quer seja por sexo, cor ou religião.  
Com bem salienta a doutora Nadine Gasmanm, as “Mulheres são pessoas livres e iguais em dignidade e em direitos, donas de seus corpos e de suas expressões e merecem respeito, em toda e qualquer condição. Ao ser signatário de acordos internacionais como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e a Plataforma de Ação de Pequim, o Brasil tem como compromisso trabalhar para que a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres se manifeste em números e na prática”.
O tipo penal de homicídio previsto no artigo 121 do Código Penal diz: “matar alguém”. Trata-se de crime contra a pessoa no qual o bem jurídico é a vida humana. Sujeito passivo é todo e qualquer ser humano nascido com vida; “alguém”, qualquer pessoa indistintamente, independente de sexo, cor, religião, etc.
Ao tratar o homicídio perpetrado contra mulher (feminicídio) mais severamente do que o cometido contra o homem, o projeto está dizendo que a vida da mulher vale mais que a do homem.  Está tratando bens jurídicos idênticos (vida humana) de maneira desigual. Isto, além de violar a Constituição, pode se transformar em perigosa e odiosa forma de discriminação. No futuro próximo, por razões diferentes, mas semelhantes, os negros, apenas para citar uma hipótese, podem lutar a fim de que os homicídios cometidos contra eles passem a ter, também, uma punição mais rigorosa, afinal os negros estão entre as principais vítimas de homicídio, inclusive praticados por policiais.  A maioria dos homicídios que ocorrem no Brasil atinge pessoas jovens: do total de vítimas em 2010, cerca de 50% tinham entre 15 e 29 anos. Desses, 75% são negros. O Mapa da Violência 2013 aponta que entre 2002 e 2011 morreram 50.903 jovens brancos e 122.570 jovens negros, uma diferença de aproximadamente 150%.
Não é despiciendo lembrar que o Código Penal brasileiro já prevê diversas qualificadoras para o homicídio que elevam a pena cominada (pena in abstrato) para 12 anos a 30 anos de reclusão. Assim, caso um homem mate uma mulher por motivo fútil ou torpe, por exemplo, estará sujeito a pena mais severa se assim for reconhecida a qualificadora. O que não pode e não deve ser feito é qualificar o crime por razões de gênero, sexo, cor, religião, etc. Prevê, ainda, o Código Penal a agravante da pena quando o crime é perpetrado contra cônjuge.
Por tudo, razão assiste a Maria Lúcia Karam quando salienta que “a criação de novos tipos penais ou a maior severidade da repressão penal em relação a violências praticadas contra a mulher em nada podem contribuir para o reconhecimento e garantia de seus direitos, tampouco trazendo qualquer contribuição para que se avance na concretização da igualdade entre homens e mulheres e na construção de uma nova forma de convivência entre os sexos”. Ao final conclui Karam: “o reconhecimento e a garantia dos direitos da mulher não irão encontrar na reação punitiva um instrumento adequado para sua realização”.
* Dedico este artigo ao Professor Doutor Juarez Tavares um dos maiores e melhores penalista das Américas. Humanista e progressista que representa a luta pelo direito justo, democrático e garantista.
 é advogado criminalista e doutor em Ciências Penais.

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