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sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Vídeo italiano sobre violência contra a mulher: e o consentimento?

Por Ativismo de Sofá

janeiro 7, 2015 

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Saiu no Pragmatismo Político. Saiu no Portal Geledés. Várias pessoas brasileiras e do mundo todo compartilharam em seus respectivos facebooks, porque a história é ‘linda’, ‘fofinha’ e ‘acalentadora’. Dentro em breve, o vídeo certamente contará com legenda em português, e daí vai ser viral de uma vez por todas. Nós aqui do Ativismo não queríamos ser as feministas chatas que vêem problema em tudo, mas lá vai: o vídeo com crianças italianas que se recusam a bater numa menina não é fofinho. Não tem nada de ativista naquele vídeo e diríamos que o que fizeram foi um desserviço à militância pelo fim da violência contra as mulheres.
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Pra quem não viu o vídeo e entende um pouco de italiano ou lê em inglês, ele pode ser visto aqui. Eis a descrição do que ocorre em tal curta, que tem o título ‘Bata Nela’: a câmera primeiro focaliza em cinco meninos, individualmente, e uma voz masculina adulta entrevista os meninos brevemente. Somos apresentadas, então, a essas crianças do sexo masculino, que nos revelam seus nomes, idades, e o que querem ser quando adultos, incluindo o porquê de suas escolhas profissionais. Após essa introdução, a voz anuncia a chegada da Martina, uma menina cuja idade não sabemos, mas que chama a atenção pela beleza dentro dos padrões. A partir daí, o narrador do vídeo pede que os meninos façam um carinho nela. Eles obedecem. A segunda ordem é para que façam uma careta a ela, e eles novamente obedecem. A terceira ordem é para que deem um tapa nela, e eles não obedecem. Cada menino dá uma razão diferente para não bater nela, e c’est fini.
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Agora vamos à nossa análise: primeiramente, o aspecto perturbador mais óbvio é a objetificação das mulheres, que fica mais do que clara durante o vídeo. A própria forma como o clipe coloca os meninos como sujeitos de suas próprias vidas, como seres humanos completos, já diz muito: começa com eles dizendo seus nomes, e a partir daí, nós acabamos por conhecer um pouco sobre cada um deles. Sabemos suas idades, seus sonhos. Mais do que isso, eles nos revelam inclusive a razão pela qual desejam seguir determinadas profissões, de bombeiro a pizzaiollo, passando por jogador de futebol e policial. Há um esforço mais do que claro em humanizá-los, ao passo que a menina é colocada no habitual lugar em que mulheres vêm sendo postas ao longo da história: como um elemento decorativo, nada além disso. Diferentemente do que ocorrera com os meninos, a Martina não teve nem a oportunidade de falar o próprio nome. Não ouvimos um pio de Martina durante todo o curta.
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Ademais, o fato de que um adulto pede para que os meninos toquem nela SEM o explícito consentimento da mesma é pra lá de problemático. Ficamos com a impressão que se trata de um caso típico de algum jornalista que não sabe nada de feminismo e estudos de gênero mas resolve tentar ‘salvar a pátria’ com um vídeo apelativo que pouco inova. Trata-se de apelo, pura e simplesmente. Como a Rebecca Hains bem lembra em seu post que pode ser lido em inglês aqui, a página que criou o vídeo não tem compromisso com ativismo nenhum. É entretenimento puro e simples. De repente alguém pensou que ia ser legal ‘provar um ponto’ sobre violência doméstica com crianças, mas acabou não provando coisa alguma.
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Não provou porque, como a Rebecca lembra acertadamente, a não ser que esses meninos fossem sociopatas, eles obviamente não iriam bater numa menina em frente às câmeras. Mas vamos deixar esse ponto para mais adiante. Retornando à questão da falta de consentimento, é no mínimo irresponsável soltar um vídeo desses num mundo em que a cultura do estupro prevalece. Ele reforça a ideia de que nossos corpos são domínio público. Pensando no contexto do Brasil, em que a cada 12 segundos uma mulher é violentada, não dá pra simplesmente achar o vídeo fofinho. Aliás, é justamente por pensar na situação alarmante de violência doméstica que milhões de mulheres sofrem ao redor do mundo, que nós achamos o vídeo irresponsável.
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Não tem como combater machismo com mais machismo. Não tem como tentar provar um ponto – crianças entendem que não se deve bater em mulheres – com um vídeo cretino desses. Não dá pra simplesmente ignorar que a Martina foi simplesmente um objeto num vídeo em que os meninos eram as estrelas. Em dado momento, fica evidenciado um certo desconforto no rosto dela, quando um menino toca a sua face. A gente realmente se pergunta o que será que a Martina vai pensar no futuro, quando ela entender que foi abusada. Não, não é exagero. Ela certamente foi paga para encenar a situação, mas como não lhe pediram consentimento em nenhum momento, podemos sim interpretar como abusivo.
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Há todo um elemento cultural que revela quão entranhado o machismo está no mundo. Acreditamos que toda mulher se identifica com esse “faz um carinho nela” que o narrador fala. Desde pequenas, somos acostumadas com toques alheios, e muitas vezes tais interações se dão sob o intermédio de um adulto. De abraços a beijinhos e cafunés – a mulher é treinada desde muito cedo a aceitar as investidas de outras pessoas, e nunca há o consentimento explícito. Isso foi simplesmente transferido ao vídeo, que agora faz um sucesso imenso nas redes sociais, por parecer inofensivo. Quão inofensivo é um filminho que sutilmente diz que mulheres não precisam ter voz no mundo?

É justamente essa questão de fazer carinho na amiguinha que acionou o nosso alerta vermelho. Porque isso torna infinitamente mais difícil o trabalho de conscientização acerca do consentimento. Porque inúmeras vítimas de pedofilia foram silenciadas em suas respectivas infâncias porque interpretaram o abuso como o fatídico “receber carinho”. Porque mulheres se acostumam desde muito cedo com a triste realidade de que seus corpos não lhe pertencem.  O “faça um carinho nela”, enquanto ela fica inerte e não recebe nenhuma pergunta como “posso?” não causou incômodo em geral simplesmente porque é algo naturalizado, mulheres são condicionadas a aceitarem a violação de seu consentimento como algo inevitável, aceitável ou até mesmo “elogioso”. O vídeo, ao colocar a menina como passiva, inerte, bela, um objeto decorativo mesmo, só reforçou tudo isso. E toda essa cultura se traduz numa dificuldade real em ocuparmos espaços que nos são de direito. A dificuldade em andar pelas ruas sem ser molestada, a dificuldade em ir a uma festa sem ser molestada, a dificuldade em  provar que foi estuprada por conta da culpabilização da vítima – tudo isso é fruto dessa socialização que nos silencia.
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Mas tá tudo tranquilo, ok? Afinal de contas, como os meninos do vídeo deixam claro, em uma mulher não se bate nem com uma flor. Afinal de contas, não dá pra bater na Martina porque ela é bonita. Não dá pra bater na Martina porque “eu sou homem”. Não dá pra bater na Martina, porque “eu gosto dela”. Ou seja, meninos repetem clichês mais do que vazios para justificar a não-violência, como se: 1. tocar alguém sem pedir autorização não fosse em si, um ato de agressão; 2. homens que batem em mulheres fossem de mentirinha, seres imaginários que nunca se envolvem emocionalmente com elas e tampouco se utilizam desses mesmos clichês em diferentes fases ao longo de suas vidas (já ouviram falar do ciclo de violência doméstica? Pois é, o problema é bem maior do que qualquer videozinho possa fazer crer).  

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As respostas dadas pelos meninos no vídeo nos revelam que o problema está enraizado numa proporção tão grande que só muita luta para solucionar. Os meninos são sim fofinhos, mas eles não existem num vácuo. Eles estão aprendendo ali naquele vídeo que a voz deles importa mais. E que as mulheres não precisam dizer nada. Que salvar as mulheres da violência depende do heroísmo deles – e da beleza delas. Afinal de contas, a aparência importa até na hora de poupar alguém de uma agressão. Não foi o Rafinha Bastos que disse que mulher feia deveria agradecer se fosse estuprada? Não é isso que ouvimos desde a nossa mais tenra infância – que nossa aparência importa mais que tudo? Pois é exatamente isso que a resposta de um menininho, “não bato nela porque ela é bonita” nos deixa entrever. Essa resposta só reforça quão problemática é a objetificação das mulheres. Aliás, durante todo o vídeo, o único que deu uma resposta que poderia representar alguma luz no fim do túnel foi aquele que disse  “não quero machucá-la”, pois ele não reforçou simbolicamente os lugares demarcados e simplesmente falou algo sobre a violência. Mas, obviamente, o que ganhou mais destaque foi aquele que disse que não bate nela “porque sou homem”. Porque a sociedade precisa reforçar esse papel, mais do que precisa se livrar da violência contra as mulheres – e isso é trágico.

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Pensando bem, esse vídeo é a fórmula do sucesso. Afinal de contas, ele apenas reflete tudo aquilo que o patriarcado espera de nós: lugares demarcados, em que um lado tem o poder claro, e o outro se cala e, no máximo, sorri. Deixaremos mais perguntas em aberto, porque isso realmente precisa ser discutido: até quando iremos, enquanto sociedade, achar inspiradora a ideia de que o Valente não é Violento  e continuar a insistir em papéis de gênero que colocam a mulher nessa posição de eterna subalterna, merecedora da compaixão masculina? Até quando a mídia vai continuar nessa insistência em vender qualquer coisa – de produtos a idéias – às custas da objetificação feminina? Por que os problemas não podem ser discutidos em profundidade e com a devida seriedade que merecem? Por que tudo tem que girar em torno das opiniões masculinas?

Texto de Flávia e Thaís.

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