Cercadas por esterótipos e exploração midiática de suas vivências, as mulheres com deficiência demandam atenção para suas especificidades e criticam o silêncio dos movimentos sociais, questionando a ausência de suas pautas também no Feminismo
Por Jarid Arraes
Por Jarid Arraes
Na cultura midiática brasileira, as pessoas com deficiência geralmente são retratadas em contextos estereotipados e reducionistas. O discurso típico a seu respeito costuma se limitar a dois polos: a negação da autonomia e a exploração da imagem dessas pessoas, apelando para situações que despertam sentimentos de pena ou motivação para quem não tem nenhum tipo de deficiência. São muito comuns as histórias de superação, contadas para comover a audiência a partir das dificuldades vivenciadas por quem tem deficiência. Muita gente ainda é surpreendida quando esses indivíduos demonstram que possuem liberdade de escolha e plena capacidade para viver em sociedade.
Para além dos clichês e ofensas que atingem as pessoas com deficiência, ainda se faz necessário afunilar essa discussão e buscar um maior aprofundamento nessa realidade, algo que possibilite reflexões mais complexas e abrangentes sobre deficiência. Por reconhecerem essa urgência, o grupo Inclusivass surgiu em Porto Alegre. O coletivo feminino é composto por ativistas pelos direitos das mulheres com deficiência e as integrantes atuam em diversas organizações e movimentos, articuladas pela ONG Coletivo Feminino Plural. O grupo é formado por mulheres com ou sem deficiência e tem como objetivo fortalecer as políticas públicas para as mulheres com deficiência, considerando os recortes de gênero, raça, etnia e outras formas de viver a diferença.
“Embora nós, mulheres com deficiência, sejamos vítimas das mesmas formas de violência cometidas contra as demais mulheres, sofremos pela discriminação constante baseada na deficiência e estamos em maior vulnerabilidade, o que leva a maus tratos de toda ordem”, explica Claudia Sobieski, assessora do grupo. Apesar dos dados escassos, há evidências que comprovam essa realidade: “Há vários estudos sobre isso, um deles é um estudo feito no Canadá. Foram enviados questionários para 245 mulheres com deficiência. Das que responderam, 40% relataram que elas foram vítimas de abuso e 12% disseram que foram estupradas. Contudo, menos da metade destes incidentes foram registrados. A falta de comunicação em formatos acessíveis dificulta para as mulheres com deficiência o acesso à informação sobre os serviços disponíveis, fazendo com que muitas vezes elas não denunciem ou procurem ajuda. Mulheres com deficiência cognitiva, por exemplo, são alvos por não terem sua palavra considerada e respeitada”, diz Sobieski.
Infelizmente, essa realidade de violência não é de fato compreendida ou considerada pela sociedade. Essa crítica, aliás, não diz respeito somente às camadas despolitizadas, pois lamentavelmente as pautas das mulheres com deficiência também não são abordadas em muitos contextos de luta do movimento feminista. A dificuldade de garantir representatividade efetiva não é nenhuma novidade para as mulheres que lutam pelos direitos femininos, mas é preciso dar passos além do ato de reconhecer carências e falhas.
“O objetivo do grupo Inclusivass é sensibilizar o movimento de mulheres e os Conselhos de Direitos da Mulher para que assumam a nossa agenda como parte da agenda geral das mulheres”, afirma Sobieski. “Esta é uma perspectiva nova, talvez a mais nova de todas para os movimentos de mulheres. Sabemos que desde 1990 vários segmentos se organizaram: as mulheres negras, as trabalhadoras, as jovens e, agora, as mulheres com deficiência. É preciso levar a todas as mulheres a ideia de que a acessibilidade é um tema constante, pois é ela que garantirá às mulheres com deficiência chegar a todos os lugares, efetivando assim a sua inclusão na sociedade”.
Entre as demandas específicas, se faz necessária a especificação de reivindicações, tais como o direito à saúde integral, com lugares e aparelhos adaptados, e direitos sexuais e reprodutivos, como o planejamento familiar, a gestação e a maternidade com cuidados especializados e humanizados, incluindo as mães com deficiência no acompanhamento escolar e de saúde das crianças. “A acessibilidade é a possibilidade para que todas nós façamos parte do mundo como pessoas com dignidade e direitos”, finaliza Sobieski.
Combater os estereótipos e a invisibilidade não é uma tarefa fácil. Não obstante, assim como as mulheres do Inclusivass, há feministas autônomas que dedicam seus espaços na rede para promover conscientização e levantar colocações que provocam o lugar comum de quem não possui alguma deficiência ou não convive com familiares que vivem essas diferenças. A advogada e psicoterapeuta Mila Correa D’Oliveira se destaca por sua abordagem direta e feminista. A entrevista concedida por ela pode ser lida na íntegra:
Fórum – Na sua descrição no Twitter, você faz um tirada com algo bastante repetido sobre mulheres cadeirantes: “Tão linda e na cadeira de rodas”. Como é a questão do padrão de beleza para as mulheres com deficiência?
Mila Correa D’Oliveira – Quando eu falo sobre “tão linda e na cadeira de rodas”, eu estou reproduzindo, de forma irônica, a maneira ridícula como as pessoas me tratam, desde criança. Eu sou bombardeada por essa frase desde sempre, sempre com um certo tom de pena, algo como “ela não merecia estar aí” ou “a deficiência não tirou sua beleza”. Ou seja, tudo errado. Como se as pessoas consideradas bonitas não “merecessem” passar por uma deficiência, pior, como se deficiência fosse uma espécie de castigo nas quais as pessoas que elas consideram bonitas não deviam passar, porque beleza seria uma virtude. De uns tempos pra cá, eu tenho retrucado “ah, então, se eu fosse feia, podia?”, elas riem, ficam sem graça, acham que eu estou de piadinha, muitas vezes nem percebem o erro na frase.
Essa coisa do “tão linda e na cadeira de rodas” está intimamente ligada também à questão do padrão de beleza. A deficiência não está dentro dos padrões, portanto, acham que se uma pessoa, “apesar” da deficiência, se mantém bonita, é algo a ser apontado. Outro completo absurdo, porque sabemos que beleza não está apenas no que está dentro dos padrões. Comumente vemos que a beleza da pessoa com deficiência, quando retratada em comerciais ou ensaios de moda, é sempre aquela muito próxima à do padrão. A pessoa com deficiência que foge qualquer coisa disso vai ser lembrada em histórias de superação, heroísmo ou algo assim, dificilmente vai ser retratada a beleza do diferente, do destoante, que a deficiência traz.
Fórum – Você acha que é necessário buscar um recorte de gênero no ativismo por acessibilidade?
D’Oliveira - Eu fico muito feliz e confiante no futuro quando vejo o quanto está se falando sobre gênero, sobre racismo e direitos LGBT, mas eu ainda sinto muita falta de ver a opressão sofrida pelas pessoas com deficiência. O próprio termo “capacitismo” é pouco difundido, ainda se vê perpetuando estereótipos do herói, da vítima – em relação à mulher com deficiência no Feminismo. Há que se falar mais em acessibilidade, não somente física, mas atitudinal, mostrar que é somente através da acessibilidade que se pode terminar a opressão sofrida pelas pessoas com deficiência, tirar desse ranço assistencialista que só nos separa.
A acessibilidade é muito importante, funciona como meio de inclusão, na medida em que quanto mais se convive, mais se atenta à inclusão, ao respeito aos direitos. Mas também a necessidade de se dar visibilidade às pessoas com deficiência tem que vir para que essa acessibilidade seja vista como um benefício para todos, pois uma sociedade que convive com a diversidade só tem a ganhar. A acessibilidade, sua base de desenho universal, preconiza que os ambientes devem ser feitos de maneira a receber adequadamente as pessoas independentemente da sua configuração de corpo; assim, acessibilidade não é feita somente para pessoas com deficiência, acessibilidade não é só adaptar, “dar um jeitinho”, é incluir, é perceber que os ambientes devem servir às pessoas e não o contrário.
Fórum – É possível afirmar que mulheres que possuem algum tipo de deficiência estão mais vulneráveis à violência doméstica ou outros tipos de abusos?
D’Oliveira - As estatísticas comprovam que sim, pessoas com deficiência em geral, homens e mulheres, especialmente aqueles com deficiência intelectual, sofrem mais abusos do que as outras pessoas. Os motivos comuns, como a dependência psicológica e financeira, ficam ainda mais acirrados quando tratando dessas pessoas. Muitas delas não têm acesso a educação e renda e reproduzem a ideia da sociedade opressora de que precisam da piedade, do assistencialismo do outro, dificultando ainda mais a quebra desse ciclo de violência doméstica.
Fórum – Na sua opinião, o movimento feminista aborda esse tema de forma suficiente? Falta atenção e informação ou você acompanha bons trabalhos relacionados?
D’Oliveira – Na minha opinião, não aborda. O Feminismo, por mais boa vontade que tenha, está inserido nessa sociedade excludente, que invisibiliza a pessoa com deficiência e, assim, reproduz, ainda que em menor escala, essa exclusão. As feministas negras foram as primeiras a denunciar as falhas em tratar sobre todas as mulheres e eu sinto o mesmo em relação às mulheres com deficiência. Há que se fazer um esforço para incluir nossas demandas; como se falar em direito reprodutivo das mulheres com deficiência se as pessoas ainda têm dúvidas se deficiente pode parir? Como proteger milhares de mulheres com deficiência dos abusos sexuais se há um enorme silêncio acerca da sexualidade da pessoa com deficiência? É preciso vitimizar menos as mulheres com deficiência, dar voz, fazer elas tomarem conta dos espaços. Eu entendo que é preciso também proteger, mas há de se ter cuidado para não pecar justamente nesse paternalismo, que já é tão recorrente. Não tenho embasamento teórico para dizer quais são as correntes do Feminismo, mas confesso que já me incomodei com setores que sacralizam o corpo, que retiram nossa agência, nos infantilizam.
Fórum – Você percebe um tipo de misoginia relacionado especificamente às mulheres que possuem algum tipo de deficiência?
D’Oliveira – Eu percebo, sim. Assim como a grande parte das ofensas capacitistas, a misoginia com relação às pessoas com deficiência passa desapercebida pelas demais pessoas. Eu sinto que as mais frequentes são as que diminuem o papel da mulher com deficiência como sujeito autônomo. Nos casos de reprodução, por exemplo, há relatos de mulheres com deficiência congênita que recebem sugestões do tipo “melhor não ter filhos, caso ele nasça com deficiência”, um claro caso de eugenia. Existe também a solidão da mulher com deficiência que é vista como incapaz de exercer funções dentro e fora de casa, portanto, inapta a se relacionar. É feita de maneira silenciosa, mas efetiva, essa separação. Há também o acesso à saúde e isso vale para homens e mulheres, pois uma parte da rede de saúde, seja pública ou particular, tem acessibilidade ruim. Ou seja, se para uma pessoa sem deficiência já é difícil cuidar da saúde, no nosso caso é ainda pior. Macas altas, consultórios com espaços mínimos, desinformação dos profissionais e transporte público ruim vêm afastando pessoas com deficiência dos centros de saúde e causando uma enorme perda. Existem inúmeros tipos de deficiência, cada uma com suas demandas e visões, e seria importante abrirmos cada vez mais espaços para conhecer todas elas. Só assim teremos oportunidade de diminuir a opressão.
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