Recordar imagens que apresentam a complexidade do mundo é um ato ético, por meio dele é possível a constituição de uma memória do nosso sofrimento
Por Arlenice Almeida da Silva*
A contundência da foto do fotógrafo sul-africano Kevin Carter, em que a criança faminta é observada por um abutre em um cenário desolado no Sudão, remete diretamente à história da fotografia que, a partir de 1890, reivindica o status de obra de arte. Indiretamente, porém, ela aponta para as relações entre estética e ética, presentes na reflexão filosófica, desde o final do século XVIII, na qual se sublinhava que a arte poderia provocar uma empatia (simpatia, na época) que estaria na origem dos nossos juízos morais.
Para o filósofo David Hume (1711-1776), a simpatia é a inclinação que todos os homens possuem a participar dos sentimentos dos outros. Essa tendência a compartilhar sentimentos e inclinações explica, na estética, o prazer produzido pelas obras de arte, e que decorre do fato de que participamos afetivamente daquilo que contemplamos. A formação do juízo moral se dá, sobretudo, a partir de um recuo contemplativo por meio do qual o espectador considera as causas que determinam a formação do sofrimento do outro. O espectador, porque está afastado da cena, transporta-se pela imaginação para a posição do agente.
O problema do distanciamento contemplativo ressurge, no século XX, especialmente com a fotografia, quando o sofrimento extremo é exibido por toda parte. Em todo caso, se a fotografia não copia, mas “emana” da realidade, no sentido entendido por Roland Barthes “de que uma foto sempre traz consigo seu referente”, é porque todo ato fotográfico é interpretativo, um enquadramento que exclui algo. Como definiu Philiphe Dubois, o ato fotográfico é uma nova forma de pensamento, ou seja, um “jogo baseado no princípio de distância e aproximação”. Se diante de uma pintura, por exemplo, espera-se um olhar estético, contemplativo, diante da fotografia e sua impressão de proximidade e autenticidade, exige-se um olhar ético e uma ação de reparação imediata.
Susan Sontag (1933-2004), em Diante da dor dos outros, pergunta se de fato o horror apresentado de forma tão nítida, ainda teria algum apelo moral. Desde o fim da I Guerra Mundial (1914-1918) estamos acostumados a ver à distância, por meio da fotografia, a dor de outras pessoas.
Em uma era sobrecarregada de informação, com o crescimento da mídia sensacionalista e sua caçada por imagens dramáticas, o sofrimento humano vira clichê. Se a câmera Leica com filmes de 35mm podia bater 36 fotos, antes de carregar a câmara, permitindo tirar fotos no calor da batalha, hoje as tecnologias digitais e as transmissões via satélite registram instantaneamente o aqui e agora; enquanto as imagens televisivas, repetidas insistentemente, esvaziam seu efeito.
Em reação ao aumento da produção das imagens, surge o fotojornalismo ético e artístico, cujo fundador é Robert Capa (1913-1945) e, os discípulos, os fotógrafos sul-africanos do Bang Bang Club, como o próprio Kevin Carter, advogando que só tem sentido fotografar o horror se a foto contribuir para acabar com ele. Para Susan Sontag, enquanto a fotografia funcionar como terapia de choque e conseguir ferir o espectador, evitar-se-á tanto a espetacularização das imagens como a banalização do horror.
Diante da foto feita por Carter, no Sudão, em 1993, surgem questões éticas. Nela, a vida e a morte são sintetizadas na criança famélica, cujo rosto não é exibido, apenas um corpo debilitado que é mirado pelo abutre. Em primeiro lugar cabe perguntar: a violação do corpo da criança pode servir à causa moral? Não haveria no corpo involuntariamente exposto, um abuso estético? A foto sugere que ele é vitimado triplamente: pela fome, natureza e pelo olhar fotográfico.
A imagem, nesse sentido, reitera vários lugares comuns, que tomamos como pressupostos: sabemos que é da África, lá a inanição é esperada, parece não ser necessária a autorização para a divulgação da imagem, já que, sabemos, trata-se de um continente no qual tal ocorrido é comum. Em seguida, deparamo-nos com nosso segundo dilema ético: não há uma urgência dramática na cena? Não deveríamos salvar a criança antes de realizar seu registro fotográfico? O que é mais relevante, ser testemunha do que acontece ou agir imediatamente na direção do bem? Sabemos que a criança sobreviveu à fome e ao abutre, no entanto, como diz Jean Galard, “fotografar é, em essência, um ato de não intervenção”.
Em defesa do ato fotográfico e artístico, podemos assinalar que não se trata apenas de documentar a calamidade infantil, mas de associá-la aos temas das guerras e às fomes que delas decorrem. O sofrimento não é fruto do acaso, do destino, mas da má atuação dos homens.
Se as imagens são expostas em um lugar no qual circulam como mercadorias, a atenção despertada é ligeira e distraída, provocando apenas uma comoção transitória. Quando contemplada reflexivamente em silêncio, uma foto de horror sugere um contexto, que põe em perigo o espectador, desestabilizando-o e levando-o a exigir ação imediata para impedir que o horror anunciado continue.
Por fim, recordar imagens que apresentam, em um instante conciso, a complexidade do mundo é um ato ético, pois por meio dele é possível a constituição de uma memória do nosso sofrimento.
Entender a fotografia como memória significa, para Galard, legitimar a decisão de “fixar um instante que se sente que deve ser retido a qualquer preço”, para que não se perca no esquecimento. Nos termos de M. Ignatieff, “dar certa beleza ao horror para que se torne inesquecível”.
* Professora de Estética e Filosofia da Arte da UNIFESP
Publicado na edição 92, de novembro de 2014
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