Lara Maria Tortola Flores Vieira
Advogada
Segunda-feira, 25 de setembro de 2017
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente adveio conjuntamente ao ordenamento jurídico brasileiro com a doutrina da proteção integral, inaugurando uma nova abordagem jurídica à criança e ao adolescente a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990.
Muito embora ovacionada por significativa doutrina, a mudança de paradigma não conseguiu efetuar mudanças substanciais no que tange à efetividade dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Importa salientar que o referido Estatuto teve como uma das principais pautas a superação da doutrina da situação irregular, que enxergava os então “menores” sob a perspectiva de sujeitos a serem moldados primordialmente no que toca à acepção dos valores da sociedade dita civilizada, a fim de que se evitassem indivíduos não produtivos, visando à manutenção das estruturas econômicas sociais[1].
Aliada a essa perspectiva, havia a indicação de o juiz agir como higienista[2], médico previsor, desvinculando sua atuação do cometimento de um ato ilícito, mas relacionando-a a qualquer sintoma de patologia social que um indivíduo tivesse. A interferência judicial estaria justificada apenas pelo fim supostamente proveitoso que se pretendia alcançar e, evidentemente, divorciada de qualquer espécie de consentimento por parte daquele que receberia o bondoso tratamento curativo.
Primeiramente, a intervenção do juiz “de menores” não se estendia a toda criança e a todo adolescente, mas àqueles que estivessem em situação de abandono ou fossem tidos como delinquentes. A atuação judicial menorista tinha como norte o fim de prevenção dos males sociais[3], controlar os selecionados, já os inadaptados “sob a tutela do Estado, passariam por um processo de “reeducação” e “regeneração[4]”, ainda que sem seu consentimento.
Essa rápida apresentação da doutrina da situação irregular demonstra, no mínimo, que a pretensão de superação doutrinária com um novo Estatuto é inócua se presentes mecanismos na lei que permitem a reprodução da lógica supostamente superada.
Apesar de o ECA ser claro ao disciplinar que ato infracional é toda conduta qualificada como crime ou contravenção (art. 103), ainda persiste muita resistência para se admitir a existência de um direito penal juvenil. A medida socioeducativa seria “obrigatoriamente pedagógica e não punitiva[5]”.
Sendo a medida socioeducativa protetiva, até mesmo as que acarretem privação de liberdade, evidencia-se uma face paternalista[6] exacerbada e salvacionista, como se a medida socioeducativa fosse capaz de direcionar a vida, aprimorar o desenvolvimento humano[7], enfim, tornar o sujeito apto à sociedade.
Não raras vezes, as medidas que restringem os privam os adolescentes de seus direitos fundamentais se justificam pela cláusula do “melhor interesse”, inclusive em sede cautelar.
O dito princípio, visualizado sob a ótica adultocêntrica, não apenas tem seu fundamento aniquilado, eis que inutilizada e desprezada a voz do adolescente acerca do que seria seu melhor interesse, mas é desviado completamente de seu fim, ao se alijar o adolescente de seu lugar de voz, em um contexto de um direito que ao menos deve se pretender democrático.
O paradoxo não apenas demonstra que o direito infanto-juvenil necessita ser amadurecido, academicamente, mas, sobretudo, torna evidente o despreparo da classe jurídica que manipula o ECA e ainda confunde e funde institutos tão díspares, como a situação de risco (art. 98) quanto o cometido de ato infracional, os quais são enseja a consequências jurídica completamente distintas: ou medida protetiva (art. 101) ou medida socioeducativa (art. 112).
Impende concluir, a partir dessas linhas iniciais, que a única solução para o princípio do melhor interesse seria o resgate de seu verdadeiro significado hermenêutico, ou seja, destinar-se a dar voz e presença ao adolescente no sistema juvenil, de modo a não rebaixá-lo, novamente, à categoria de mero objeto do direito.
Lara Maria Tortola Flores Vieira é advogada do Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude da Universidade Estadual de Maringá (NEDDIJ/UEM). Graduada em Direito pela UEM.
[1] ACHARD, José Pedro. Curso de pedagogia corretiva: a educação do menor difícil. Trad. Nuno Campos. Florianópolis: Lunardelli, 1977. p. 20-23
[2] O higienismo ganhou força no Brasil, precipuamente, no início do século XX, e visava, sinteticamente, “criar hábitos sadios na população, combater as taras sociais e primar pela robustez do indivíduo e a virtude da raça”, além disso “Os médicos entendiam que a sanidade física do povo seria alcançada se fossem incutidos hábitos de higiene na população e fosse retirada do convívio social (internação) a pessoa cometida de doenças contagiosas (tifo, tuberculose, lepra, etc.), configurando o movimento higienista (…)Apoiados na medida saneadora dos males físicos, os médicos higienistas propunham os mesmos encaminhamentos para solucionar ou evitar os males psíquicos (doenças mentais) e sociais, constituindo-se, dessa forma, o ideário da higiene mental.”. Para tanto, acreditava-se que “a conservação da moral e dos bons costumes seria o caminho para uma vida saudável, física e psiquicamente” Cf. FEITOSA, Juliana Biazze. A internação do adolescente em conflito com a lei como “única alternativa”: reedição do ideário higienista. Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual de Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Psicologia.Maringá.2011. p. 57 e CUNHA, Carolini Cássia; BOARINI, Maria Lucia. A infância sob a tutela do Estado: alguns apontamentos. Psicologia: teoria e prática, São Paulo, v. 12, n. 01, p. 209 e 211, 2010.
[3] Idem, ibidem..
[4] Idem, ibidem, p. 212.
[5]VERONESE, Josiane Rose Petry; LIMA, Fernanda da Silva. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase): breves considerações. Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 30, 2009.
[6]João Paulo Orsini Martinelli esclarece, quanto ao paternalismo, “Sua raiz pater vem do latim e significa pai. Em maior esclarecimento, o termo representa um tipo de comportamento de um superior sobre seu inferior, como o pai agindo sobre comportamento do filho. A relação de fragilidade entre sujeitos, muitas vezes, pode passar uma ideia pejorativa, mas não é bem assim que deve ser encarada. (…) Esta analogia é aplicável quando o Estado, uma organização, ou mesmo um indivíduo agem sobre outro Estado, outra organização, outro individuo como se o pai estivesse atuando sobre um filho.” O autor ainda ressalta que “A interferência na liberdade no Estado democrático de Direito precisa ser justificada”, já que o paternalista agiria em busca de bem para outrem, e, em certas ocasiões, contra vontade deste. Cf. MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo jurídico-penal. Tese (Doutorado)–Universidade de São Paulo, Departamento de Pós-Graduação em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia, São Paulo, 2010. p. 96-97 e 97.
[7]A autora destaca que “a educação deve ter uma função humanizadora no sentido de proporcionar aos seus sujeitos a autonomia necessária para o desenvolvimento humano. E isso implica em não coagir, não agir de violência contra crianças e adolescentes durante o seu processo de desenvolvimento, pois todo ato de “coação reprime a criatividade” (MIZUKAMI,1986). Essa prerrogativa educacional deve ser extensiva a todos os adolescentes autores de ato infracional e que, de certa maneira, cumprem as medidas socioeducativas, uma vez que, conforme previsão estatutária, as medidas socioeducativas tem caráter sociopedagógico.” In: VERONESE, Josiane Rose Petry; LIMA, Fernanda da Silva. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase): breves considerações. Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 43, 2009.
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