por Tory Oliveira — publicado 29/09/2017
Autora de 'Mulher, Estado e Revolução' analisa o papel das mulheres na Revolução Russa de 1917 e as lições deixadas por elas
Divulgação/Boitempo
'As mulheres cumpriram um enorme papel na Revolução Russa', explica a historiadora Wendy Goldman
Há 100 anos, a classe trabalhadora russa tomou o céu por assalto, transformando radicalmente uma sociedade ainda em grande medida rural e patriarcal. Ao mesmo tempo, a Revolução Russa de 1917, por meio da ação de mulheres trabalhadoras, camponesas e intelectuais, buscou também dar respostas a problemas como o divórcio, o aborto e a divisão do trabalho doméstico. Com a Revolução, passou a ser possível se divorciar sem maiores burocracias, assim como realizar abortos seguros e legais em hospitais públicos e aspirar a modelos de família não-tradicionais.
No livro Mulher, Estado e Revolução: política familiar e vida social soviéticas (1917-1936), publicado no Brasil em 2014 pela Boitempo, a historiadora americana Wendy Goldman explora os experimentos e o legado das soviéticas na busca pela emancipação feminina.
Na última terça 26, foi uma das palestrantes do seminário internacional 1917: o ano que abalou o mundo, realizado pela Editora Boitempo em parceria com o Sesc em São Paulo.
Professora do Departamento de História da Carnegie Mellon University e especialista em estudos políticos e sociais sobre a Rússia e a União Soviética, Goldman busca entender como a primeira experiência mundial de dar mais liberdade e direitos às mulheres falhou, em certa medida, em transformar integralmente aspirações revolucionárias em realidade. E, mais ainda, como os ideais revolucionários resultaram em repressão política e social do stalinismo.
Em entrevista à CartaCapital, Goldman, que se interessou pelo tema ainda na juventude, nos EUA dos anos 1970, ao observar que temas como o amor livre e a liberação feminina, tão discutidos por sua geração, já haviam sido analisados pelos revolucionários de 1917, fala sobre as lições das mulheres da Revolução Russa, os avanços e retrocessos do movimento de 1917 e a importância das mulheres conheceram a própria história.
Confira:
CartaCapital: No prefácio da edição brasileira de Mulher, Estado e Revolução (Editora Boitempo), você aponta que o livro explora por que o primeiro experimento de amor livre e emancipação da mulher falhou. Nos primeiros anos da revolução, a legislação era bastante progressista em questões como o divórcio, o trabalho doméstico e o aborto. No entanto, tais avanços não se sustentaram por muito tempo. Quais seriam essas razões?
Wendy Goldman: Há duas razões principais. A primeira é que o país, após a revolução, estava extremamente pobre. A indústria e a infraestrutura ferroviária estavam arruinadas por anos de guerra. Então, uma das primeiras tarefas do novo governo soviético era começar a reconstruir a indústria do país. Esse período de reconstrução durou cerca de 10 anos. Em 1927, eles finalmente voltaram ao ponto em que estavam em 1914. Sendo tão pobre, o governo não tinha muitos recursos a serem empenhados em serviços sociais. Foi também um período de alto desemprego.
O alto desemprego, somado à falta de creches para crianças, lavanderias, restaurantes comunitários, fez com que se tornasse quase impossível para as mulheres desfrutarem integralmente da liberdade que existia na lei.
Consequentemente, a legislação tornou-se mais avançada do que as condições materiais permitiam às pessoas serem. E foi muito difícil para as pessoas apropriarem-se da legislação emancipatória. Na verdade, ocorreu o contrário: muitos homens aproveitaram-se das facilidades do divórcio e da liberdade sexual do período para deixar mulheres com filhos, sem prover qualquer ajuda a eles.
CC: Como o governo de Josef Stálin influenciou nessas questões?
WG: Também houve uma certa reversão ideológica com Stalin. Ele começou a falar sobre a importância de uma forte família socialista, para, de certa forma, reinstituir a ideia de família tradicional. Muitas mulheres apoiaram essa mudança, uma vez que desejavam que os homens se comportassem de maneira mais responsável com relação às mulheres e as crianças. Ao mesmo tempo, sob o stalinismo, milhões de mulheres uniram-se à força de trabalho.
Assim, durante o primeiro e o segundo planos quinquenais houve uma industrialização vertiginosa e o desemprego foi eliminado. O Estado organizou restaurantes, creches para crianças e outros equipamentos, já que, do contrário, mulheres não poderiam trabalhar. E as pessoas se aproveitaram disso.
Essas coisas mudaram a sociedade soviética de uma maneira positiva, mas, ao mesmo tempo, a ideia de que relações mais livres estabeleceriam-se entre as pessoas não aconteceu. Stalin também criminalizou o aborto e dificultou o processo de divórcio.
No governo stalinista havia um certo arranjo, no qual algumas coisas sonhadas nos primeiros anos da revolução tornaram-se realidade, mas outras não. E o resultado final foi que as mulheres assumiram um duplo fardo ao tomar para si os afazeres de casa e o cuidado das crianças ao mesmo tempo em que trabalhavam. Como todas nós sabemos hoje em dia, isso não é algo fácil de se fazer.
CC: Controverso, o direito ao aborto continua sendo um assunto central para o feminismo e para os direitos das mulheres em muitos países, inclusive no Brasil. Por que o direito à interrupção da gravidez era tão importante para os revolucionários de 1917? Por que isso foi revertido por Stalin?
WG: Devo dizer que o Estado Soviético e as mulheres soviéticas tinham ideias muito diferentes sobre o aborto, mesmo após o aborto ser legalizado. O Estado legalizou a interrupção da gestação em 1920, a União Soviética tornou-se o primeiro país do mundo a permitir o aborto gratuito, legal e seguro em hospitais.
O Estado acreditava, naquele momento, que as mulheres buscavam o aborto porque elas eram muito pobres ou estavam muito desesperadas diante da perspectiva de prover para um filho. A ideia era que, sob o socialismo, nenhuma mulher precisaria fazer um aborto, já que as mulheres sentiriam-se felizes em ter filhos e o Estado, ao mesmo tempo, ajudaria a cuidar das crianças.
Mas as mulheres nunca se sentiram assim. Do ponto de vista das mulheres, e quando digo isso refiro-me a todos os tipos de mulher: donas de casa, camponesas, trabalhadoras, mulheres mais velhas com muitos filhos, mulheres jovens sem filhos, elas queriam a oportunidade de controlar sua própria fertilidade.
Houve ocasiões em que o marido ganhava dinheiro, mas a mulher não desejava uma criança. Então, do ponto de vista das mulheres, o aborto era algo diferente. Era o direito mais básico: poder controlar seu destino e escolher se queria ter filhos ou estudar, escolher se queria ter filhos ou trabalhar ou mesmo ter uma criança pequena e poder dispensar atenção a ela, em vez de ter dois filhos.
Essas eram escolhas que as mulheres sentiam que tinham o direito de fazer. Elas sentiam isso no seu coração. Mesmo antes da legalização do aborto, mulheres de todas as classes sociais, mesmo as camponesas ou as analfabetas, encontravam maneiras de acabar com uma gestação indesejada.
O problema era que tais métodos eram perigosos, e, muitas vezes, resultavam em infertilidade e até mesmo em morte. Assim, em 1936, quando o Estado tornou o aborto ilegal novamente devido a preocupações sobre a taxa de natalidade na URSS, vemos que, em 1937, a taxa de natalidade começou a crescer, mas, já em 1938 e 1939, as taxas voltaram ao mesmo patamar de quando o aborto era legalizado.
Por que? Porque mulheres recorreram a abortos ilegais. Elas continuaram a abortar, mas passaram a fazê-lo em circunstâncias anti-higiênicas e inseguras, e, por isso, elas sofreram e morreram. Criminalizar o aborto não impede mulheres de tentarem controlar seu destino.
CC: No Brasil, a lei só permite o aborto em casos de estupro, anencefalia do feto ou caso a gestação coloque a vida da mulher em risco. Ao mesmo tempo, estima-se que uma em cada cinco brasileiras fará um aborto até os 40 anos.
WG: Acredito que seja o mesmo no mundo todo. Porque isso é um direito tão básico: para que a mulher possa se enxergar como um ser humano completo ou mesmo para que ela consiga ser uma boa mãe, ela precisa ter o direito de controlar sua fertilidade.
CC: Outro aspecto discutido nos primeiros anos da Revolução Russa foi a questão do amor livre, isto é, a possibilidade de livre-associação entre pessoas, sem a exigência do casamento ou da família tradicional. Esse tema foi debatido no passado e é discutido até hoje. Por que esse ponto era caro aos revolucionários?
WG: Acho que os jovens sempre terão interesse em refazer as relações sociais, torná-las mais livres, de modo que as pessoas não se sintam presas em relacionamentos que não são mais satisfatórios. Por isso, acredito que a questão do amor livre é quase perene: ela aparece em todas as revoluções. A questão é: como criar as circunstâncias para que as pessoas possam cuidar de crianças, ser responsáveis com elas, cuidar de idosos, tratar seus pais com responsabilidade e, ao mesmo tempo, não serem restritas por relações familiares sufocantes. É algo que surge sempre, a cada nova geração.
CC: Outro ponto abordado pelas mulheres da Revolução Russa foi a questão do trabalho doméstico não remunerado. Atualmente, porém, advoga-se pela redistribuição dos afazeres domésticos internamente na família, com o homem assumindo mais responsabilidades e dividindo o trabalho igualmente com a mulher. Na URSS, houve a tentativa de levar o problema da esfera doméstica para a pública, com o Estado assumindo novos papeis sociais. Na sua opinião, tal sistema é possível hoje ou deve ser algo que devemos aspirar?
WG: Acho que o modelo de compartilhar é bom, mas cria muitos conflitos na casa e, no fim das contas, as mulheres continuam a realizar grande parte do trabalho doméstico. Isso significa que o modelo de compartilhamento não parece funcionar. Os casais tentam resolver esse problema entre eles. Acho que os homens jovens estão se saindo muito melhor do que os da minha geração que, por sua vez, se saíram melhor do que seus pais. Então, houve uma mudança positiva.
Ao mesmo tempo, acho que grande parte dessa mudança positiva veio às custas de mulheres da classe trabalhadora. Por exemplo, se um casal tem dinheiro, contrata-se outra mulher para fazer o trabalho doméstico. Frequentemente, esse trabalho é muito mal remunerado, e, além disso, as pessoas precisam se deslocar por grandes distâncias e mesmo cruzam fronteiras para fazê-lo.
Sabemos que na Arábia Saudita e no Catar, esse trabalho é feito por mulheres indianas ou paquistanesas. Nos EUA, o trabalho doméstico é feito por mexicanas ou filipinas. Só que essas mulheres também tem famílias e filhos.
Na minha visão, uma solução que diz para a vasta maioria das mulheres que elas não verão seus filhos, que elas poderão enviar dinheiro às famílias, mas não verão seus filhos crescerem já que se dedicam a criar os filhos de mulheres cujas famílias podem pagar não é uma solução verdadeira.
Nesse sentido, a socialização do trabalho doméstico é muito importante para mulheres do mundo todo. Não acredito que qualquer pessoa ou família deva contratar outras para fazer o trabalho que, certa vez, as mulheres fizeram gratuitamente. Acredito que o trabalho dentro de casa deva ser socializado e remunerado. Nesse sentido, a combinação da divisão mais igualitária dos afazeres domésticos com o trabalho socializado seria a melhor solução de todas.
CC: No Brasil, grande parte das mulheres que trabalham como domésticas são negras.
WG: Sim, há a questão racial. Nos Estados Unidos acontece o mesmo: são os setores mais baixos dos estratos sociais que realizam esse tipo de atividade. Os mais empobrecidos entre os trabalhadores.
CC: Como você vê essa nova onda do movimento de mulheres? Em 2017, houve a tentativa global de organizar uma Greve Mundial de Mulheres, por exemplo. Como você vê essa geração de feministas em comparação com as da sua geração?
WG: Acho que esses novos movimentos são maravilhosos e fizeram progressos enormes no sentido de avançar muitos ideais considerados pioneiros nos anos 1970. E, a geração dos anos 70 avançou ideais dos períodos anteriores. Assim, toda vez que vejo o que as mulheres jovens hoje estão fazendo eu tenho vontade de abraçá-las. Tudo, seja a questão da sexualidade, do combate ao estupro, à violência doméstica -- acho que as mulheres de hoje tomaram para si muitas das questões internas, emocionais e sexuais e trouxeram-nas à tona.
O movimento LGBT, por exemplo, tem conseguido abrir um novo mundo que estava apenas começando a despontar quando eu era jovem. Na época, tivemos a revolta de Stonewall [em 1969, uma batida policial em uma boate em Nova Iorque acabou por catalizar o movimento político pró-direitos LGBTs] e outras coisas, mas nós estávamos vendo apenas o início da liberação gay.
Eu diria que o movimento feminista hoje não se furta ao debate e isso é muito importante, porque muitas mulheres vivem em conflito com muitas questões que não estão sendo faladas, uma vez que são questões de mulheres da classe trabalhadora. Acho que a classe é considerada hoje menos importante do que antes e seria maravilhoso vê-la de volta ao centro do debate.
CC: O que mudaria?
WG: Se levarmos a classe a sério, podermos questionar seriamente a prostituição, o tráfico de seres humanos, além de muitas questões colocadas pelo capitalismo global. Se classe, família e raça forem levadas a série, seremos forçados a confrontar mais do que os problemas de mulheres ricas e com Ensino Superior. E isso é importante.
CC: Muitas vezes, ao longo da nossa educação, não temos acesso aos escritos e aos feitos de outras mulheres na História. Na sua opinião, qual é a importância, em especial para as mulheres mais jovens que se interessam por política ou história, de se resgatar o que outras já fizeram no passado, como, por exemplo, na Revolução de 1917?
WG: Acredito que as mulheres cumpriram um enorme papel na Revolução Russa. Na verdade, foram as trabalhadoras têxteis que iniciaram a revolução em fevereiro de 1917. A ideia dos sovietes veio das fábricas têxteis, onde trabalhavam principalmente mulheres.
As lutas das mulheres, suas experiências do passado e as ideias que elas tiveram são muito importante para nós - como mulheres, isso é parte de nossa História. E não é algo que já passou ou que está esquecido - acho que é muito útil para as mulheres olhar para o passado e estudar o que as que vieram antes de nós tentaram fazer: em quais aspectos foram bem sucedidas, em quais aspectos falharam, quais eram os seus programas e o que podemos aproveitar de suas experiências para nos ensinar a perseverar hoje.
CC: Quais mulheres revolucionárias foram uma inspiração para você?
WG: Eu fui muito inspirada por mulheres trabalhadoras, que não são tão conhecidas quanto outras que eram intelectuais ou escreviam. Por exemplo, Aleksandra Artyukhina and Klavdija Nikolaeva. Essas eram mulheres que foram trabalhar aos 7 ou 8 anos de idade em fábricas têxteis, onde eram lavadoras.
Elas eram as mais pobres entre as pobres. Para elas, a revolução tinha grande significado, não só em termos de classe - isso era óbvio - e elas realmente entendiam os problemas da classe trabalhadora e camponesa.
Elas estavam entre as primeiras criadoras do Zhenotdel, o Departamento de Mulheres do Partido Comunista, pela qual elas lutaram muito. Elas criaram uma coisa chamada assembleias de delegadas, onde centenas de mulheres em vilarejos e cidades reuniam-se - muitas delas pela primeira vez.
As delegadas eram selecionadas entre as mulheres e depois enviadas para atuar em diferentes áreas do governo soviético, como a econômica, a educacional ou mesmo no planejamento industrial. As mulheres integravam-se a essas áreas do governo para aprender a governar. Isso foi uma tremenda experiência para elas.
O Zhenotdel também criou comissões de mulheres no nível local, onde elas se organizavam para lutar por pleno emprego, contra a prostituição, para criar creches, restaurantes comunitários e para fazer coisas que ajudariam as mulheres socialmente.
Pessoalmente, sempre fui inspirada por pessoas que, de certa maneira, não tiveram muitas oportunidades quando crianças, mas, ainda assim, viram possibilidade de mudança e nela depositaram toda a sua inteligência, sua habilidade organizacional e criatividade para construir algo. Essas são as mulheres que eu admiro.
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