Já há muito tempo vem sendo enfrentada pelos operadores do direito com certa perplexidade, em especial pelos delegados de Polícia, promotores de Justiça e juízes de Direito, a percepção de uma lacuna na legislação para o correto enquadramento de condutas que atentam contra a dignidade sexual de mulheres vítimas dos mais variados de abusos sexuais ocorridos no interior de veículos superlotados do transporte público nas grandes cidades das capitais e interior. Tal situação ganhou espaço estrondoso na mídia e redes sociais nas últimas semanas, após mais um fatídico evento desta natureza ocorrido na capital paulista.
De fato, é cediço que a ocorrência ganhou tamanha repercussão devido à resposta dada pelo Poder Judiciário e Ministério Público no primeiro episódio ocorrido, em que o acusado obteve sua liberdade provisória já na audiência de custódia, vez que o fato foi enquadrado na contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, e ganhou repercussão ainda maior quando, logo após ser sol foi novamente preso em flagrante delito sob a acusação de idêntica infração.
À vista do histórico de registros do autuado em delitos de idêntica natureza trazido à baila pela imprensa, movimentos feministas e pessoas de todo o país insurgiram-se contra a decisão do magistrado.
Sem adentrar no mérito da situação específica do referido caso concreto ocorrido na cidade de São Paulo, vez que a análise de referidos autos não foi objeto desta pesquisa, mas em outra frente: tomando como base uma situação hipotética semelhante à que foi noticiada pela imprensa como objeto daquele feito, na qual uma mulher no interior de um veículo do transporte público viesse a ser molestada sexualmente, e autor do abuso chegando ao orgasmo viesse a ejacular em alguma parte do corpo da vítima, qual seria o correto enquadramento jurídico-penal para esta conduta?
É evidente que a situação exemplificada estaria inserida, naquilo que a doutrina entende como situação de “confronto”. Tal confronto estaria estabelecido entre os crimes de estupro, posse sexual mediante fraude e a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor.
Primeiramente, sem olvidar e respeitando opiniões em contrário, na situação aventada, temos que a Contravenção Penal deve ser afastada, pois, conforme já assentado em nossa doutrina e jurisprudência, a contravenção tem caráter de proteção subsidiária à dignidade sexual das pessoas, em situações em que, embora a conduta do agente tenha finalidade libidinosa mas não chegue a ocorrer contato, no sentido físico da expressão, entre o acusado e vítima.
Ora, na situação hipotética em comento, nos parece cristalina a existência de contato físico libidinoso intencional do agente para com a vítima, vez que, sendo o orgasmo típico ato de cunho libidinoso, seria desnecessária a conduta do agente em ejacular no corpo vítima, mas quando o faz é cediço que o faz como um complemento para a satisfação de sua libido. Se houver contato físico, a nosso ver, deve ser descartado o enquadramento penal do fato na aludida contravenção.
Assim, superado o enquadramento na contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, nos resta ainda a análise do confronto entre o artigo de 215 do Código Penal e as hipóteses de estupro capituladas no artigo 213 e 217-A, da legislação penal.
Em relação ao delito de estupro capitulado no artigo 213 do Código Penal, não podermos olvidar o clamor social levantado, em relação ao caso concreto trazido à baila nas últimas semanas, para o qual muitas vozes se levantam no sentido que de fato o ato teria sido praticado com violência, pois de fato existem várias formas de violência e ejacular em mulher dentro de um ônibus seria um ato de violência. Apesar dessas colocações, sabe-se que a doutrina e jurisprudência já firmaram interpretação, que a “violência”, elementar deste tipo penal é tão somente a violência real “vis compulsiva”, e não a moral.
Assim, muito embora tal solução vá em desencontro com o clamor social, o operador do direito está vinculado ao princípio constitucional da legalidade em matéria penal, desta forma, outro caminho não resta senão afastar também a possibilidade do enquadramento desta situação hipotética no delito de estupro capitulado no artigo 213 do Código Penal.
Dando continuidade à busca pela solução do conflito de normas penais, com certeza para nós na situação hipotética trazida o confronto mais nítido, e realmente presente se dá entre a regra do artigo 215 e a do artigo 217-A, § 1º (parte final) do Código Penal, pois de fato em relação às elementares “praticar ato libidinoso”, há perfeito enquadramento da situação hipotética, pois conforme dito acima, de fato ocorreu contato físico de ato libidinoso, pois o agente teria ejaculado no corpo da vítima. A questão principal que surge é estabelecer se o fato teria sido praticado tendo o agente se utilizado de “outro meio que impediu ou dificultou a livre manifestação da vontade da vítima”, e aí a conduta guardaria enquadramento jurídico-penal no artigo 215 do CP, ou teria o agente praticado o ato contra vítima que “por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência” e o fato se enquadraria então no artigo 217-A, § 1º (parte final) do CP?
Mais uma vez respeitando opiniões em contrário, data venia não concordamos com o enquadramento desta conduta como delito Violação Sexual Mediante Fraude, vez que é cediço que o legislador ao tipificar esta conduta se utilizou da denominada - interpretação analógica, isto é partiu da exemplificação inserindo a elementar “fraude” - e depois, ao inserir a expressão “ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima”, abriu para o gênero.
Ora, em situações como tais é entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência - que este “outro meio” - deve estar vinculado à exemplificação tipificada pelo legislador, ou seja, o outro meio a se enquadrar na hipótese em comento deve guardar semelhança com o engodo, com o propósito disfarçado que leva a vítima a erro, impedindo ou dificultando o seu livre consenso para o ato. Para reforçar nosso argumento contrário ao enquadramento neste artigo, trazemos à baila uma reflexão muito simples, vez que independente do meio utilizando pelo agente na situação fática a vítima jamais poderia consentir com o ato, sem que também viesse a praticar um crime, pois sendo o local dos fatos local público, vedada é a prática de ato libidinoso. Demais disso, o dolo preexistente na conduta do agente, onde sabia não haveria possibilidade de consentimento da vítima, e o agente certamente contava com isso, para nós afasta por completo a configuração da fraude como meio, na situação levantada.
Outrossim, diferente a solução, quando enquadramos a conduta no artigo 217-A, parágrafo 1º (parte final) do CP, pois nele também o legislador se valeu da interpretação analógica, mas foi além disso, pois primeiramente afirmou que a enfermidade ou deficiência mental - também são situações em que a vítima não possui capacidade de discernimento para a prática de atos libidinosos. Entretanto, na sua parte final inseriu outra elementar de vulnerabilidade da vítima, quando esta por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, vejam aqui não se trata de hipótese de consentimento viciado, mas de situação que, por qualquer outra causa, a vítima não possa oferecer resistência. Neste contexto, temos encontrado jurisprudência reconhecendo esta figura — em casos em que a vítima venha a ser embriagada ou drogada previamente ao ato, ou mesmo, a prática do ato quando a vítima está em sono profundo.
Desta forma, nos parece perfeitamente possível o enquadramento nesta figura, quando o agente se utilizada da circunstância de estar a vítima no interior de veículo do transporte público, com superlotação de passageiros, onde diante do inevitável contato físico com estranhos a vítima sequer tem condições de saber que está sendo molestada, ocorre de fato uma causa, onde a vítima não pode oferecer resistência, enquadrando-se, assim, perfeitamente no disposto do artigo 217-A, § 1º (parte final) do CP, solucionando a situação do confronto de normas.
Por fim, cumpre ressaltar que não obstante na situação hipotética entendamos que há efetiva norma penal adequada à gravidade do fato, não olvidamos da necessidade de uma reforma legislativa. Pois frequentemente há nítido abuso sexual sem qualquer contato físico, pois em muitos casos o agressor não chega a ejacular no corpo da vítima.
Assim, temos que a mera tipificação como contravenção penal de fato tão gravoso que à ofende a dignidade humana, que no mais das vezes são mulheres, que rotineiramente colocadas na condição de vítima deste tipo de abuso face da mera condição de gênero feminino, continuar se punindo como mera contravenção penal, a resposta penal é desproporcional à gravidade do fato, pois sob o prisma da igualdade de gênero a resposta penal mais adequada seria no mínimo tal conduta ser capitulada como crime, ainda que de menor gravidade que o estupro.
Andrea Simone Frias é promotora de Justiça do MP-PR e 2ª secretária do Movimento do Ministério Público Democrático.
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