Emanuela Cardoso Onofre de Alencar
21 de setembro de 2017
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) vem desenvolvendo uma jurisprudência importante sobre a violência de gênero e o acesso à justiça das vítimas desta violência. Suas decisões se destacam por incluir a perspectiva de gênero na análise dos casos, na interpretação e aplicação do Direito e na proposta de reparações às vítimas. Em seu conjunto oferecem padrões internacionais de direitos humanos que, se observados, podem contribuir para melhorar a situação das mulheres nas Américas.
A violência sexual é uma das matérias em que tem avançado. A Corte IDH não só está contribuindo para definir os atos que caracterizam esta violência, senão também para desenvolver argumentos que justificam, por exemplo, considerar a nudez forçada como uma violência sexual ou o estupro como um ato de tortura. Apesar de que ainda pode avançar mais, é importante conhecer como a Corte IDH trata a violência sexual em sua jurisprudência e que argumentos usa para considerar atos desta violência como violações de direitos humanos.
Antes de comentar alguns pontos relevantes, destaco que a Corte IDH tratou unicamente da violência sexual contra mulheres em contextos de graves violações de direitos humanos, como os conflitos armados, os massacres e os contextos de discriminação e violência estrutural contra as mulheres. Isso não quer dizer que não encontrou indícios de violência sexual contra homens, como os golpes nos testículos. Estes, contudo, não foram tratados como violência sexual, senão como uma vulneração da integridade pessoal.
Esta posição da Corte IDH se deve, possivelmente, a que considera que existem atos de violência que afetam de forma diferente a mulheres e homens. Algumas condutas violentas, como as de caráter sexual, estão dirigidas especialmente contra elas ou as afetam em maior proporção. Isso se deve a que muitas vezes se usa a violência sexual como uma “arma de guerra”, ou seja, como um meio para humilhar ou castigar a parte contrária.[1]
A Corte IDH compartilha a definição de “violência contra a mulher” do artigo 1º da Convenção Interamericana para Previnir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará: “[…] entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.”
Para determinar se um ato de violência pode ser considerado por razões de gênero, refere-se ao artigo 5º (integridade pessoal) da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), com relação à Convenção de Belém do Pará e à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Esses documentos, em conjunto, oferecem proteção à integridade pessoal das mulheres.
Para a Corte IDH, “[…] a violência sexual se configura com ações de natureza sexual que se cometem contra uma pessoa sem seu consentimento, e que além de compreenderem a invasão física do corpo humano, podem incluir atos que não envolvam penetração nem contato físico algum.”[2] Em sua opinião, esta é uma forma especialmente grave de violência contra as mulheres.
O uso da força não pode ser considerado como um elemento imprescindível para punir condutas sexuais não consentidas, como tampouco deve-se exigir prova de resistência física, pois é suficiente existir uma conduta coercitiva. Esta interpretação permitiu-lhe avaliar a existência ou não de consentimento a partir das circunstâncias do caso e do contexto, e não simplesmente da resposta da vítima.[3]
Entre os tipos de violência identificados como sexual estão, por exemplo, a nudez forçada; os tocamentos, em especial dos seios e dos pelos púbicos; e o estupro.
O estupro é visto como uma forma “paradigmática” de violência. Não se trata simplesmente de um ato sexual, pela vagina, sem o consentimento da vítima. A Corte IDH o descreve como os atos de penetração vaginal ou anal, sem o consentimento da vítima, mediante o uso de objetos ou outras partes do corpo do agressor, como também a penetração da boca pelo membro viril. Para que um ato seja considerado como estupro, é suficiente existir uma penetração, por insignificante que seja.
Esta definição é importante por algumas razões. Primeiro, porque não faz referência ao sexo de quem agride e é agredido, o que permite considerar como estupro os atos praticados contra homens. Segundo, porque vai além da compreensão tradicional e inclui diferentes atos de natureza sexual. A definição da Corte IDH permitiu-lhe concluir, no caso Penal Castro Castro contra Peru (2006), que a violência contra uma presa por uma “inspeção vaginal datilar” constituiu um ato de estupro.[5]
O estupro ou outras formas de violência sexual podem cumprir diferentes fins. Nos conflitos armados, por exemplo, com frequência são usados como “um meio simbólico para humilhar a parte contraria ou como um meio de castigo e repressão” contra certas pessoas[6] ou contra uma coletividade.[7]
Neste ponto, são relevantes as reflexões sobre o corpo da mulher e a finalidade do estupro. No caso Espinoza Gonzáles contra Perú (2014), a Corte IDH estabeleceu que o estupro e outras formas de violência sexual cometidas contra a Sra. Espinoza, que caracterizaram atos de tortura, ocorreram durante sua detenção e tiveram a finalidade de obter informações. A Sra. Espinoza e seu companheiro sentimental haviam sido detidos juntos, e, no interrogatorio deste último, os agentes estatais lhe ameaçaram, afirmando que, em caso de não dar informações, “os 20 [homens iam] passar por ela”.
A Corte IDH considerou que “o corpo de Gladys Espinoza como mulher foi utilizado com o fim de obter informação de seu companheiro sentimental e de humilhar a ambos.” Estes atos confirmam que os agentes usaram o estupro e a ameaça de violência sexual como estratégia na luta contra o grupo subversivo a que supostamente pertencia a Sra. Espinoza. A Corte IDH afirmou que esta prática constituiu uma discriminação contra ela por ser mulher.[8]
Quanto aos efeitos, a Corte IDH reconheceu que todo ato de violência sexual tem consequências físicas, emocionais e psicológicas devastadoras para as mulheres, e este fato se agrava quando estão grávidas ou privadas de liberdade. No que se refere ao estupro, trata-se de uma experiência traumática que causa danos físicos e psicológicos graves, difíceis de superar com o passar do tempo. O sofrimento se agrava sempre que a violência é presenciada por outras pessoas, o que aumenta a humilhação.
A Corte IDH destaca reiteradamente em suas decisiões que, nos casos de violência contra as mulheres, os Estados parte na CADH e na Convenção de Belém do Pará, como é o caso do Brasil, têm a obrigação de agir com o devido zelo para prevenir, investigar, punir e erradicar os diversos tipos de violência contra elas. A sociedade tem o dever de rejeitar esta violência e o Estado está obrigado a erradicá-la e a brindar a confiança necessária de quem teve seus direitos vulnerados, nas instituições estatais.
Emanuela Cardoso Onofre de Alencar é Doutoranda na Facultad de Derecho da Universidad Autónoma de Madrid – UAM. Membro e colaboradora docente no Instituto Universitario de Estudios de la Mujer – IUEM-UAM. 2º lugar no I Prêmio Libertas: enfrentamento ao tráfico de pessoas (2008), organizado pela Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério de Justiça.
[1] Vid. Caso Penal Castro Castro vs. Perú. Sentencia de 25 de noviembre de 2006 (Fondo, Reparaciones y Costas), par. 223-224.
[2] Vid. Caso Penal Castro Castro vs. Perú, par. 306; caso Fernández Ortega y otros vs. México. Sentencia de 30 de agosto de 2010 (Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas), par. 119; caso Rosendo Cantú y otra vs. México. Sentencia de 31 de agosto de 2010 (Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas), par. 109.
[3] Vid. Caso Fernández Ortega y otros vs. México, par. 115.
[4] Vid. Caso Penal Castro Castro vs. Perú, par. 306-308.
[5] Vid. Caso Penal Castro Castro vs. Perú, par. 310-312.
[6] Vid. Caso Espinoza Gonzáles vs. Perú. Sentencia de 20 de noviembre de 2014 (Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas), par. 229.
[7] Vid. Caso Masacre de Las Dos Erres vs. Guatemala. Sentencia de 24 de noviembre de 2009 (Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas), par. 139.
[8] Vid. Caso Espinoza Gonzáles vs. Perú, par. 229.
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