Há 23 anos, o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett coordena o mais exemplar serviço de aborto legal do país. O Pérola Byington, localizado no centro da cidade de São Paulo, é o hospital modelo quando o assunto é aborto nos ditames da lei brasileira: apenas em gravidez decorrente de estupro (até 22 semanas), risco de vida à mãe e fetos anencéfalos (em qualquer momento da gravidez) –essa última, uma decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal.
Atualmente, a equipe chefiada pelo médico atende cerca de 40 mulheres ao mês para realizar o procedimento. Um número que só cresce, segundo dados da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo. Em 2015, o hospital realizou 89 interrupções de gestação.
Em 2016, foram 227. Neste ano, o número já passa dos 360 — e abarca bem mais do que cidadãs paulistas.
“Só um dos serviços de saúde da lista do Ministério da Saúde não encaminha mulheres para cá. Por isso tantas atravessam estados e chegam aqui de mala nas mãos, implorando por ajuda”, conta o médico. A lista a que ele se refere é a dos estabelecimentos de saúde habilitados no Brasil para realizar o aborto previsto em lei. São 65, de acordo com a apuração da reportagem Dor em Dobro, da Agência Pública de Jornalismo Investigativo, de 2014.
Drezett recebeu a reportagem do UOL no hospital Pérola Byington em uma segunda-feira de agosto. Nesta entrevista, o médico faz críticas ao Estado brasileiro e explica por que o aborto –legal ou clandestino– continua um grave problema de saúde pública que mata uma brasileira a cada dois dias. “E não há nenhuma preocupação em relação a isso. Principalmente, porque são mulheres pretas e pobres”, ele diz.
Drezett: Regredimos, eu diria. E passamos por uma situação hostil em relação às mulheres. Eu gostaria de acreditar que todo hospital habilitado a realizar o aborto legal teria, por princípio e compromisso, que fazê-lo. Mas existem inúmeros serviços que dizem que realizam o procedimento e não realizam. Quando a mulher procura esses serviços, são transferidas para este hospital. E não são apenas serviços da cidade ou do estado de São Paulo, mas de outros estados, onde uma mulher tem que se deslocar por dias para receber atenção. E é assim desde que assumi a coordenação do serviço.
UOL: Quem é a mulher que chega no Pérola procurando por um aborto?
Drezett: Não temos um perfil único. Mas, de um modo geral, são mulheres jovens. 35% dos casos que atendemos são de adolescentes e crianças, grávidas de relações incestuosas. Os “pais” são os próprios pais, tios, irmãos ou avós. A média de idade delas é de 13 anos. Vamos ainda ter um grupo de mulheres mais velhas, até 45 anos, que sofreu estupro de desconhecidos. Essa é a típica situação das mulheres que sofrem violência sexual dentro de um ambiente urbano violento. Por último, há, ainda, as mulheres grávidas de seus parceiros íntimos ou de seus ex-parceiros íntimos. É comum que homens descontentes com uma separação sintam-se em posição de impor sexo. É o que a gente chama de estupro dentro do casamento.
UOL: Em qualquer um desses casos, a palavra da mulher basta ou é preciso um boletim de ocorrência, um laudo do IML, para a realização do aborto?
Drezett: Basta. Toda mulher que nos procura está, por presunção, falando a verdade. Ao menos até que a gente encontre alguma circunstância que prove o contrário. Mas a verdade é que a maioria das mulheres não pode provar a violência que sofreram. Elas são abordadas ou dentro das suas casas, sem a presença de nenhuma testemunha, ou em vias públicas, longe de qualquer transeunte.
Além do mais, crimes sexuais não deixam evidências claras para que se possa dizer que houve estupro.
UOL: Quantos abortos legais o Pérola já fez nesses 23 anos?
Drezett: Realizamos mais de 2.000 abortos legais –imaginando também que nos primeiros 10 anos o volume de casos não era tão grande quanto o de agora.
UOL: O que é objeção de consciência e quando pode ser usada? Aliás, quando ela pode afetar a decisão da mulher sobre o aborto?
Drezett: Objeção de consciência é um direito que o profissional de saúde tem – e vamos nos ater aqui ao médico, que são aqueles que de fato tem que realizar um aborto – de não realizar procedimentos, mesmo que sejam previstos e autorizados por lei, que venham contrariar seus princípios. Concordo com a lei e com o Conselho Federal de Medicina. Não se deve obrigar um profissional de saúde a realizar um procedimento que venha feri-lo em sua individualidade ou crença. Esse direito, contudo, não é absoluto. A objeção de 35% dos casos que atendemos são de adolescentes e crianças, grávidas de relações incestuosas pode ser transferida para as instituições. Consciência quem tem são as pessoas, um hospital não.
UOL: Como encontrar a lista do Ministério da Saúde com os nomes e endereços dos serviços de saúde habilitados a realizar o aborto legal?
Drezett: O que temos é apenas um número, que não identifica os lugares que realizam o procedimento. São 60 e poucos serviços que as mulheres não têm como saber o nome. Se esses serviços existem, é absoluto direito da cidadã que ela possa saber e questionar se no seu estado e município existe um serviço que possa atendê-la. No entanto, esses nomes não são colocados às claras. Uma mulher grávida de uma situação de violência sexual tem todo o direito de receber assistência qualificada, humanizada e segura. Não é bondade, não é caridade do Estado brasileiro. É direito. E é dever do Estado Brasileiro garantir essa atenção. Ela tem sido garantida? Não.
UOL: E aí existe uma ligação entre o aborto legal e o clandestino. Quem não tem a lei cumprida, procura o serviço clandestino?
Drezett: Exato. E aí está a grande maldade dessa história. Porque se essa mulher tiver recursos para procurar o setor clandestino que oferece a interrupção de gestação de alta qualidade, pelo menos ela não vai morrer dessa interrupção. Agora, a mulher pobre, que normalmente nesse país é preta e mora na periferia, é abandonada para realizar o aborto clandestino de risco. Que no mundo mata uma mulher a cada dez minutos. Que mata no Brasil uma mulher a cada dois dias. A morte dessas mulheres é absolutamente
indiferente para o Estado brasileiro.
UOL: Como você vê a influência da religião, especialmente da bancada religiosa no Congresso, nesse assunto?
Drezett: Desde que o aborto seja mantido como crime, que é o que se deseja nesse país, não há traço de preocupação sobre a morte dessas mulheres. Pelo contrário, há tentativas incansáveis de retrocesso. O legislativo, que tem uma bancada crescentemente conservadora, não tem o mínimo de interesse numa discussão em relação ao aborto. Os direitos humanos das mulheres são tratados como moeda de troca dentro do Estado brasileiro. Quando convém, as mulheres são vendidas. Entre governo e sai governo e essa
questão é varrida para debaixo do tapete.
UOL: Na sociedade a discussão também não evolui? O aborto ainda é um tema tabu?
Drezett: O aborto não é necessariamente um tema polêmico. É um tema sem consenso. Mas isso não quer dizer que o Estado brasileiro não deva ter uma posição em relação aos direitos das mulheres e às questões de saúde pública relativas ao aborto. Não é dado às mulheres o direito de decidir. A questão do aborto não é democrática. É a posição de uma parcela das pessoas exposta a todas as pessoas.
UOL: Você é um ferrenho defensor da descriminalização. Por quê?
Drezett: Algumas pessoas acreditam que, proibindo o aborto, magicamente as mulheres deixam de ter necessidade de realizá-lo, deixam de morrer e, portanto, o problema está resolvido. É uma falácia! No Brasil, aborto é problema de saúde pública. Morrem as mulheres, morrem os fetos. Quanto vale a vida de uma mulher preta, pobre e da periferia desse país, que morre de uma maneira absolutamente estúpida, porque o Estado brasileiro lhe nega o acesso ao aborto em condições seguras?
UOL: Há quem diga que, se o aborto for descriminalizado, o número de procedimentos aumentaria. Você acredita nisso?
Drezett: A experiência internacional é absolutamente clara: não existe uma evidência, em nenhuma parte do mundo onde se descriminalizou o aborto, que houve uma corrida das mulheres para abortar. Pelo contrário: os abortos diminuíram muito. Uma mulher não realiza um aborto porque ele é proibido ou permitido. Ela realiza porque para ela é necessário. Garanto que não conheço uma decisão mais difícil e tomada com mais responsabilidade pelas mulheres do que a de interromper uma gestação quando ela não é possível de se levar adiante.
Por Natacha Cortêz/Do UOL
Nenhum comentário:
Postar um comentário