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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Você tem (mesmo) um casamento?

Do mesmo jeito que há namoros com densidade afetiva de casamentos, há casamentos que não valem um namorico

IVAN MARTINS
20/09/2017

A moça teria 30 e poucos anos. Estava sentada à minha frente no ônibus e disse para a amiga, ao lado dela: “Vocês não se casaram de verdade. Ele só levou você para morar na casa dele”. A outra fez um gesto de irritação, pareceu ensaiar uma resposta indignada, mas encerrou a conversa com uma frase tranquila: “Você não entendeu o que aconteceu entre a gente”.


Como em outras ocasiões, tive vontade de me meter na conversa alheia e pedir explicações. Da moça que deu a resposta serena, pediria um relato mais detalhado: o que aconteceu entre vocês? Como foi a experiência de viver junto? À outra, que parecia invejosa da amiga, perguntaria: o que é um casamento para você? Como se distingue a vida das pessoas casadas de outras formas de vida comum? Você já experimentou alguma delas?

Esse assunto, obviamente, mexe comigo. Afinal, o que é um casamento?

Antigamente, só havia uma forma de união: o casamento na igreja, seguido de cerimônia civil. Ele ligava dois seres humanos de forma pública e oficial, para o bem e para o mal, durante boa parte da vida, quando não a vida toda. Agora, claro, não é mais assim. As pessoas se juntam de maneira informal, dividem a cama e as contas, fazem planos e têm experiências conjugais de menor ou maior duração, com intensidade variável.

Para mim, todas essas são formas de casamento, mas existe gente que não pensa assim, como a amiga da moça do ônibus. Talvez ela imagine que casar seja fazer festa, ter filhos e comprar um apartamento.

Tal como eu vejo, o casamento é um enlace subjetivo. Você se liga ao outro de forma profunda e faz com ele uma parceria exclusiva. Não é preciso sequer dividir a mesma casa. Quando você fala com a pessoa o tempo todo, dorme com ela vários dias por semana, divide alegrias e inquietações, viaja e faz planos conjuntos, isso constitui uma espécie de casamento: união emocional e existencial estável. As pessoas podem ter endereços diferentes, mas partilham o essencial da vida.

Insisto nos endereços diferentes porque já estive em namoros – foi um só, na verdade – em que me sentia casado. Eu não poderia estar mais ligado à pessoa, e ela não poderia fazer mais parte da minha vida do que fez. Dormíamos, sonhávamos, viajávamos. Nos misturamos num amálgama afetivo que durou anos. Quando a relação acabou, dor e luto foram equivalentes ao final de um casamento de décadas – embora nunca tivéssemos vivido na mesma casa. O laço era forte.

Do mesmo jeito que há namoros com densidade afetiva de casamentos, há casamentos que não valem um namorico. As pessoas vivem na mesma casa, pagam a mesma prestação, mas habitam sonhos separados. Às vezes têm filhos, mas, ainda assim, partilham pouco emocionalmente. Esses casamentos são arranjos sociais ou equívocos existenciais que perduram por razões particulares, que nada têm a ver com o vínculo romântico. Do ponto de vista subjetivo, não são casamentos. São confusões neuróticas.

Mas não é isso que eu vejo quando olho a minha volta. Percebo que as pessoas estão vivendo experiências transformadoras, que nada têm de superficial. Elas agem como casal, têm rotinas de casal, sofrem e gozam como casal – inclusive no convívio com as famílias. Estão efetivamente casadas. Aprendem a tratar com a intimidade difícil do outro e a encarar suas próprias limitações no convívio. Descobrem que é difícil se portar com generosidade, e que não é natural em nós (sobretudo nos homens) o cuidado com o outro, que muitas vezes significa o cuidado com a casa. Ao deparar com problemas, as pessoas crescem e se superam, porque o afeto é uma força transformadora. No campo do amor, aprende-se todos os dias.

Quem viveu com essa intensidade pode encher a boca e se dizer casado, ou ex-casado, porque sabe sobre as relações humanas algo que só se descobre pela prática.

Por ter compartilhado experiências assim – tão complicadas quanto bonitas – tendo a concordar com a moça do ônibus: a amiga dela não entendeu nada. Quando as pessoas decidem viver juntas, tomam uma decisão subjetiva de enorme gravidade. Há coragem nesse gesto, uma intenção de grandeza que em tempos egoístas como o nosso é importante. Em vez de cuidar apenas de mim, protegendo meu espaço e meu desfrute, vou abrir a minha casa e a minha vida, o meu corpo e o meu coração, aos temores, ao júbilo e à humanidade imprevisível do outro. Sem garantias, mas cheio de esperança.

Se isso não é um casamento, eu realmente não sei o que é.

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