por Gisele Pereira — publicado 27/09/2017
Com base em uma visão religiosa, o Estado desumaniza as mulheres. Faz uma suposta defesa dos não nascidos em detrimento de vidas constituídas
Pixabay
No debate sobre o aborto, a mão do Estado pesa contra as mulheres
Camila e Guilherme não queriam engravidar agora. Mal tinham começado uma vida juntos. Não tinham casa, nem trabalho fixo. Mas engravidaram, aconteceu. Ele pensou: Por que ela não se cuidou? Estragou nosso romance, estragou minha vida.
Este é o começo de muitas histórias ao nosso redor, na nossa família, entre amigas, no trabalho, no colégio, na universidade e com nossas vizinhas. Há muitos finais para essa história: Camila e Guilherme ficam juntos e a gravidez vai adiante. Guilherme vai embora e Camila fica só e aborta sem que ninguém saiba. Camila se torna mãe de um filho não desejado. Camila procura uma curiosa, aborta, sofre de uma infecção grave, perde a vida etc.
A história de Luzinete é diferente daquela de Camila, pois para essa última foi dado o direito da escolha, ainda que correndo riscos físicos e penais.
Luzinete, aos 14 anos, não teve escolha, esperava no corredor da maternidade a hora derradeira de uma gravidez, resultado de estupro do padrasto. Seu olhar mirava o vazio e seu rosto não trazia um sinal, mínimo que fosse, de emoção. A equipe de saúde demonstrava alegria pelo estado da saúde física da menina com seus sinais vitais satisfatórios. Para os médicos o parto era um final feliz, para Luzinete, mais um episódio em sua história marcada pelo sofrimento.
Existem muitos outros caminhos que levam a uma gravidez indesejada e muitas questões implicadas na decisão de levá-la ou não adiante e de assumir a responsabilidade pelo desenvolvimento de uma outra vida, sua sobrevivência, cuidado e educação.
Nem todas as mulheres têm condições financeiras, físicas, psicológicas e emocionais para assumir esta tarefa. Assim como nem todas as mulheres têm a maternidade como parte de seu projeto de vida.
O antes e o depois dessa decisão por ser mãe ou interromper a gestação é, no entanto, o que menos importa em nossa sociedade. Vê-se o ato em si, ignorando todos os fatores que envolvem a decisão e suas consequências, principalmente para a vida da mulher.
O Estado criminaliza o aborto com base em um pensamento religioso que “absolutiza” a vida do embrião e desumaniza as mulheres. Que defende o direito dos não nascidos em detrimento da vida constituída, das histórias, sonhos e futuro das mulheres. Que entende a maternidade como dever, castigo, destino, vontade de um deus distante.
A espada e a cruz insistem em caminhar juntas a colonizar mentes e corpos e manter as mulheres, pobres e negras principalmente, submetidas ao cativeiro moral que as priva da liberdade de escolha sobre uma questão fundamental: o desenvolvimento da vida humana. As desigualdades sociais são cuidadosamente mantidas sob o julgo da ignorância.
Foi preciso estabelecer uma data, 28 de setembro: dia da luta pela descriminalização do aborto, para simbolizar o direito negado às mulheres. Direito inexistente: escolher o momento de ser mãe ou não ser, para visibilizar tantas histórias de mulheres desumanizadas pela absolutização da vida do embrião.
Os discursos supostamente em “defesa da vida” prevalecem a amaldiçoar e culpar moralmente aquelas que ousam divergir do caminho traçado pela lei cega e surda que se nega a ver o outro lado do aborto, o seu avesso.
Para combater essa cegueira da ignorância é preciso conhecimento e diálogo. Precisamos alçar nossas vozes numa batalha simbólica contra o fundamentalismo. Por isso, na próxima quinta-feira 28, às 19 horas, a Católicas pelo Direito de Decidir promoverá mais uma conversa sobre aborto, justiça e gênero, em São Paulo. No novo ciclo do “Café com Luta”, cujo tema é “Criminalização do aborto: uma injustiça de gênero, raça e classe”, será lançado e distribuído gratuitamente o livro “Entre Dogmas e Direitos: Religião e Sexualidade”. Para participar deste debate preencha o formulário de inscrição, aqui.
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