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quinta-feira, 7 de março de 2019

Acesso das mulheres à Justiça: entre o direito e a efetividade

Camila Batista Pinto
Quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O acesso à justiça é consagrado na Constituição Federal brasileira enquadrado dentro do rol de Direitos e Garantias Fundamentais. Considerado um conceito de difícil precisão, é possível afirmar que a sua realização implica a “possibilidade de que todos, sem distinção, possam recorrer à justiça, e tem como consequência atuar no sentido de construir uma sociedade mais igualitária.”[1]
Alocado como direito individual e coletivo, pode ser fundamentado como alicerce das demais garantias constitucionais, de modo que a sua plena realização impacta de forma direta e preponderante no exercício de outras espécies de direitos.
No entanto, é notório que esse direito fundamental, não é vivenciado por todos de forma igualitária e que determinados segmentos da população experienciam uma situação de marginalização e segregação social que dificulta a sua plena concretização.

Dentre os grupos que vivenciam uma situação particular de exclusão do acesso à justiça o presente artigo destaca o recorte de gênero. Grande parte das mulheres no Brasil e no mundo ainda vivenciam uma situação específica de dificuldade para concretização de seus direitos.
Assim, ao analisar indicadores de inclusão de gênero e os avanços legislativos no reconhecimento dos direitos humanos das mulheres no Brasil ao longo das últimas décadas, do qual a Constituição de 1988 e a Lei Maria da Penha representam importantes marcos, “ainda persiste uma grande lacuna entre os direitos formais e os direitos de fato, excluindo da cidadania largas parcelas da população feminina”.[2]
Dentre os obstáculos enfrentados, destacam-se os desafios de acesso das mulheres à justiça, diversos e de diferentes naturezas. Nesse sentido, identificamos uma série de dificuldades dentro do próprio sistema de justiça, tal como a ausência de juízes em audiências judiciais de violência doméstica; atendimento psicossocial em número insuficiente; culpabilização da vítima, por vezes, até monetária, etc.[3]
Por outro lado as barreiras de acesso à justiça já despontam muito antes da “porta de entrada do sistema de justiça”, estando muitas vezes relacionadas a ausência de alfabetização jurídica e, portanto, a impossibilidade de levar demandas ao judiciário.
Nesse âmbito, o artigo reforça a relevância do direito à informação enquanto um condicionante da prerrogativa de acesso à justiça, ou seja, um direito essencial e anterior ao acesso. Afinal, por mais óbvio que seja, é necessário conhecer os direitos para poder decidir acessá-los [ou não].
O direito à informação é reconhecido internacionalmente como um direito humano. A Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 19 afirma que toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão e isso inclui a liberdade de procurar, receber e transmitir informações. Direito que também está presente em nossa Constituição Federal.
Quando falamos em tipos penais como homicídio e roubo é mais fácil identificar um consenso social sobre a tipicidade da ação. Nesses casos, o conhecimento da sanção e do processo penal pode não ser preciso, mas existe um esclarecimento generalizado sobre a inadequação da conduta social.
No entanto, a título retórico, pergunta-se: todos os direitos apresentam-se amplamente difundidos na sociedade? Todos eles têm o mesmo grau de compreensão por toda a população? E quando estamos diante de direitos de conquista recente? Os avanços legais são amplamente difundidos e automaticamente absorvidos pela população? A conquista de direitos é suficiente para desconstruir crenças e aspectos culturais cunhados durantes décadas? 
Esses questionamentos reforçam a relação dos direitos humanos das mulheres com o direito à informação:
“O direito à informação está estritamente vinculado à efetivação de outros direitos humanos: com ele, podemos exigir e exercer nossos direitos. O acesso à informação é um direito instrumental para combater a desigualdade de gênero, especialmente no que tange à promoção de uma vida livre de violência e de discriminação”.[4]
A partir da verificação de graves desequilíbrios de poder existentes entre homens e mulheres, podemos construir o seguinte argumento lógico: (a) “mulheres que não têm conhecimento dos seus direitos humanos são incapazes de fazer reivindicações para o seu cumprimento” [5]; (b) “[Estados] geralmente falham em garantir que as mulheres tenham igualdade de acesso à educação, à informação e a programas de alfabetização jurídica”.[6] Portanto, é chave a construção de uma política pública que passe obrigatoriamente pela melhoria do acesso à informação, ao conhecimento, a capacitação legal, como estratégia central para empoderar as mulheres na reivindicação dos seus direitos.
Assim, a respeito da importância de incentivar a criação de programas de capacitação legal, com foco em mulheres, ganha contornos a Recomendação Geral No. 33 do Comitê pela Eliminação da Discriminação contra as mulheres das Nações Unidas. Esse documento apresenta uma série de Recomendações dirigidas aos Estados signatários da Convenção CEDAW e merece destaque por esse artigo.
A Recomendação apresenta insights de extrema relevância para a efetividade do direito de acesso à justiça como um todo, e dialoga diretamente com o acesso à informação com foco em grupos vulneráveis. Dois itens do documento merecem especial destaque:
No âmbito do item (D) relativo a “educação e conscientização sobre o impacto dos estereótipos” é reforçada a relevância da “educação a partir de uma perspectiva de gênero e a conscientização pública através da sociedade civil, da mídia e do uso das tecnologias da informação e comunicação (TICs).”[7] 
Deste modo, o Comitê é explícito em identificar a falta de conhecimentos de direitos como um desafio prático a ser enfrentado. O diagnóstico da realidade revela que existe uma falha generalizada por parte dos Estados signatários da Convenção CEDAW em desenvolver programas de base aptos a promover a capacitação em direitos necessária para avançarmos enquanto sociedade nessa agenda.
“As Mulheres que não têm conhecimento dos seus direitos humanos são incapazes de fazer reivindicações para o seu cumprimento. O Comitê tem observado, especialmente durante o exame dos relatórios periódicos dos Estados partes, que estes geralmente falham em garantir que as mulheres tenham igualdade de acesso à educação, à informação e a programas de alfabetização jurídica”.[8]
As recomendações do Comitê correspondentes a esse item estão alinhadas com a discussão do presente artigo, na medida em que a relevância da distribuição de informação e ações de capacitação são elencadas como medidas imprescindíveis de replicação pelos Estados signatários da Convenção.
São elas com foco no tópico “Educação a partir de uma perspectiva de gênero”:
“b) Difundam materiais em multiformatos para informar às mulheres sobre seus direitos humanos e a disponibilidade de mecanismos de acesso à justiça, bem com para informá-las sobre sua possibilidade de obter apoio, assistência jurídica e serviços sociais que atuem em interface com os sistemas de justiça;”[9]
“c) Integrem nos currículos, em todos os níveis de educação, programas educacionais sobre direitos das mulheres e igualdade de gênero, incluindo programas de alfabetização jurídica, que enfatizem o papel crucial do acesso das mulheres à justiça e o papel de homens e meninos como defensores e partes interessadas;”[10]
Já no outro tópico “Conscientização através da sociedade civil, mídia e tecnologias de informação e comunicações (TICs)” também é mencionada a importância de gerar conhecimento sobre direitos:
“b) Desenvolvam e implementem medidas para elevar a conscientização da mídia e da população sobre os direitos das mulheres ao acesso à justiça, em estreita colaboração com as comunidades e organizações da sociedade civil.”[11]
No que tange o item (E) que aborda o papel da assistência jurídica e da defensoria pública a Recomendação apresenta nessa seara uma responsabilidade ampla, que vai além da garantia de sistemas de justiça economicamente acessíveis, incluindo o compromisso institucional de transformar o direito à informação em atividade prática. Assim sendo, o Comitê também apresenta duas valiosas contribuições em consonância com o nosso debate:
“c) Conduzam programas de informação e conscientização para as mulheres sobre a existência de assistência jurídica e defensoria pública e as condições para obtê-las usando as TICs de maneira efetiva para facilitar esses programas”;[12]
“d) Desenvolvam parcerias com prestadores não governamentais de assistência jurídica competentes e/ou capacitem ‘promotoras legais populares’ para prestar informação e ajuda às mulheres sobre o funcionamento dos processos judiciais e quase judiciais e os sistemas de justiça tradicional”;[13]
Uma dessas recomendações menciona, especificamente, o papel das promotoras legais populares, enquanto atores comunitários responsáveis pela propagação do direito à informação:
“com treinamento especializado que provêm auxílio jurídico a grupos desfavorecidos e que são frequentemente mebros destes. […] Utilizando este treinamento e experiência prática subsequente, eles educam e auxiliam juridicamente mulheres, agricultores, populações indígenas, pobres urbanos e outros desfavorecidos.”[14]
Nesse sentido, a capacitação legal é apresentada não somente como um núcleo de ação prioritária, mas também como uma estratégia de transformação da realidade de discriminação das mulheres, passando, pela desconstrução de estereótipos e percepções. De modo que, fazer as mulheres conhecerem seus direitos acaba por auxiliá-las a entender como legítima a busca pela sua concretização e não um motivo adicional para a (re)estigmatização.

Camila Batista Pinto é advogada graduada e mestranda pela Faculdade de Direito da PUC/SP.

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