Nesse 8 de março, lutemos pela total descriminalização e legalização do aborto. Nem pátria nem patrão nem patriarcado: nós decidimos sobre nossos corpos
Em fevereiro de 2019, três fatos noticiados nas mídias chamaram a atenção para o aborto.
A Folha de São Paulo, publicou uma matéria sobre a dificuldade de acesso ao serviço referenciado para o abortamento legal [1]. A matéria tratava exclusivamente do aborto legal, denunciou a ausência de informações a respeito e relatou as longas viagens de mulheres oriundas de outros estados para a realização do procedimento legal no Hospital Pérola Byington, principal centro referenciado em atendimento à violência sexual.
Como é sabido, no Brasil, o aborto voluntário é definido como crime, estando autorizado em lei nos casos de risco de vida à gestante, gravidez decorrente de estupro e, por decisão do STF, quando o feto é anencéfalo.
As restritas hipóteses do direito ao aborto legal foram inseridas na legislação brasileira em 1940, porém, somente em 1986 o Programa Público de Interrupção da Gestação foi implementado no Hospital Municipal Dr. Arthur Saboya, em São Paulo, por pressão dos movimentos feministas na luta pelos direitos reprodutivos [2]. A verdade é que poucas são as unidades de referência no país – a matéria jornalística aponta a existência de 85, porém há estudo científico publicado informando, em 2018, a existência de 65 unidades referenciadas [3] –, contudo qualquer estabelecimento de saúde que tenha serviço de obstetrícia é obrigado a realizar o procedimento, segundo o Ministério da Saúde.
As restritas hipóteses do direito ao aborto legal foram inseridas na legislação brasileira em 1940, porém, somente em 1986 o Programa Público de Interrupção da Gestação foi implementado no Hospital Municipal Dr. Arthur Saboya, em São Paulo, por pressão dos movimentos feministas na luta pelos direitos reprodutivos [2]. A verdade é que poucas são as unidades de referência no país – a matéria jornalística aponta a existência de 85, porém há estudo científico publicado informando, em 2018, a existência de 65 unidades referenciadas [3] –, contudo qualquer estabelecimento de saúde que tenha serviço de obstetrícia é obrigado a realizar o procedimento, segundo o Ministério da Saúde.
Todavia, como se depreende da matéria publicada na Folha de São Paulo, as normas regulamentares não garantem o acesso das mulheres ao aborto legal, porquanto as informações não são amplamente divulgadas. Ademais, há um déficit de capacitação dos profissionais de saúde em geral para lidarem com questões como o abortamento, a violência sexual e doméstica, além de toda a problemática de gênero que tem incidência significativa no serviço público de saúde. Essa falta de capacitação faz concentrar a demanda para o aborto legal nas unidades referenciadas, que são poucas no país.
Além disso, a dificuldade de acesso ao aborto legal envolve uma série de implicações, estigmas e preconceitos culturais, morais e religiosos que incidem sobre a atuação dos profissionais da saúde que, muito frequentemente, opõem objeção de consciência para não realizarem o procedimento.
Nesse ponto, é oportuno evocar um segundo fato amplamente noticiado na mídia latino-americana [4]: na Argentina, uma criança de 11 anos, abusada sexualmente pelo marido da avó, obteve autorização judicial para a interrupção da gravidez, porém, tendo toda a equipe alegado objeção de consciência momentos antes do procedimento, a médica Cecília Ousset realizou uma cesariana, ao invés do aborto, sem informar nem colher o consentimento da família da paciente, desconsiderando completamente a autonomia da pequena gestante sobre seu corpo.
Note-se que a objeção de consciência, assegurada pelo Código de Ética Médica, é um dos grandes empecilhos para o aborto legal nas maternidades públicas, apesar de o Brasil ser um estado laico fundado por uma Constituição Federal que consagra a diversidade social, cultural e religiosa e veda, no artigo 19, ao Estado estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, dificultar-lhes o funcionamento ou manter com eles, ou seus representantes, relações de dependência ou aliança.
Ora, a laicidade é uma conquista civilizatória que remonta à Revolução Francesa, operando a separação entre a Igreja e o Estado que até então exerciam juntos os poderes estatal, econômico e religioso; consiste numa barreira para o obscurantismo e para qualquer movimento de impedimento do progresso científico e seus consequentes benefícios para a dignidade humana [5]. Ao Estado laico não é dado interferir na fé religiosa dos indivíduos e nenhuma fé religiosa deve prevalecer sobre as demais.
Então, o Estado Brasileiro deve providenciar a disponibilidade de uma percentagem de profissionais da saúde que assumam previamente o compromisso de realização desse tipo de procedimento, a fim de que, em caso de recusa a prestar o serviço, sempre haja profissional apto e disponível para realizar o abortamento. Desse modo, resguarda-se o direito da mulher ao aborto legal, assim como a liberdade de crença e opinião do profissional de saúde.
Apesar disso, a objeção de consciência segue como mais um dos frequentes obstáculos às mulheres na obtenção do serviço público de saúde a que tem direito para a realização do aborto legal.
Como se vê, a luta pelo direito de acesso ao aborto seguro se faz cotidianamente inclusive quando se trata do aborto legal, – já reconhecido e positivado pelo Estado –, na medida em que, para além da insuficiência dos serviços de saúde, sejam ou não referenciados, há que se enfrentar a falta de capacitação técnica e a objeção de consciência da categoria médica, sem olvidar dos estigmas e preconceitos culturais, morais e religiosos que permeiam a questão, até mesmo contaminando a norma legal, os serviços públicos e as decisões judiciais, todos inseridos num ordenamento jurídico-constitucional que expressamente instituiu um Estado laico.
Constata-se que a reivindicação das mulheres pela saúde reprodutiva e sexual, a autonomia sobre seus corpos e contra a criminalização do aborto é uma luta contra o patriarcado – ideologia dominante e autoritária centrada na supremacia masculina que subalternaliza as mulheres, convertendo-se em instrumento de manutenção das relações de dominação e exploração próprias das sociedades capitalistas.
Por isso, mesmo os direitos duramente conquistados, como o aborto legal, têm a efetividade dificultada às custas do sofrimento, da saúde e até da vida das mulheres porquanto todos esses entraves ao serviço público acabam por empurrá-las para o abortamento clandestino com métodos arriscados que vão desde talos de mamonas enfiados na vagina [6] ao uso de medicamentos de procedência desconhecida obtidos na rede de tráfico ilegal [7].
É uma luta árdua para a efetivação dos direitos já conquistados e para mantê-los, havendo entre os movimentos feministas pela descriminalização do aborto e as forças conservadoras uma disputa permanente, notadamente tendo em conta que a tradição autoritária em que a sociedade brasileira é ancorada [8].
Atualmente, há no Brasil e no mundo todo um movimento de retrocesso e retirada de direitos, o que nos leva ao terceiro fato concernente ao aborto [9]: o Senado Federal, por maioria de votos, desarquivou o Projeto de Emenda à Constituição nº 29/2015 que se destina a acrescentar no art. 5º a explicitação inequívoca “da inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção” [10], o que terá por consequência a criminalização de todo e qualquer aborto, inclusive aquele praticado quando a gestação decorre de estupro.
Como se vê, há sério risco ao já conquistado direito de acesso ao serviço público para a realização do aborto legal. Por um lado, há insuficiência de políticas públicas, obstaculizando o acesso e dificultando a efetivação do direito; por outro, as forças conservadoras pressionam para a supressão desses direitos.
As mulheres estão na luta permanentemente para manterem as conquistas obtidas e avançarem na ampliação das hipóteses de aborto legal. A organização popular nos movimentos sociais feministas, em constante mobilização, impedirá o retrocesso e construirá, com suas mãos e sua força, a ampliação do direito ao aborto legal.
Por isso, é importantíssimo, nesse 08 de março de 2019, a mobilização em resistência pela total descriminalização e legalização do aborto.
Nem pátria nem patrão nem patriarcado [11]: nós decidimos sobre nossos corpos.
Simone Dalila Nacif Lopes Silva é magistrada no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mestranda em Saúde Pública no curso de Mestrado Profissional de Justiça e Saúde da ENSP/FIOCRUZ em convênio com a Emerj e membra do Conselho Administrativo da Associação Juízes para a Democracia (AJD)
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