É difícil perguntar, é difícil aceitar que ela pode ter medo de se afastar do parceiro e é comum sentir medo também, mas é possível ajudar
por Luiza Sahd
8 de março de 2019
Quando decidiu sair da cidade onde nasceu para viver com o namorado no Rio de Janeiro, onde ele trabalhava, Carla* (35 anos), achou que era uma decisão acertada, já que o casal estava junto há sete anos. Mas a violência passou a ser parte de sua vida e, se não fosse a ajuda e a paciência da amiga Ligia*, Carla talvez não tivesse conseguido escapar dessa relação.
É que quando Carla se mudou para o Rio, o casal enfrentava uma crise mais ou menos silenciosa. Ele, que é um ator de novelas conhecido do Brasil, andava manifestando comportamentos agressivos ligados à dependência de álcool e à perigosa combinação de bebidas e remédios psiquiátricos.
Ela, que tentava apoiá-lo como podia, descobriu uma traição com uma colega de elenco, que frequentava a casa dos dois. Essa foi a gota d’água para detonar a briga que deixou marcas físicas e psicológicas profundas em Carla. Ele nunca foi denunciado. Pode até ser um ídolo de quem lê este relato.
Tudo começou com gritos e ameaças
Antes de que Carla se desse conta da dimensão dos abusos que vivia, se sentiu incomodada com o parceiro em ocasiões pontuais: quando ele gritava com ela ou, às vezes, falava bem pertinho e raivoso para intimidá-la durante discussões cotidianas. Ele também esmurrava e lançava objetos para descontar a raiva, mas Carla ouviu da própria psiquiatra do ator que isso não era culpa dele. As manifestações de violência eram, para a especialista, sintomas da dificuldade de discernimento que ele atravessava naqueles tempos, há aproximadamente dois anos.
Na ocasião em que descobriu a traição, Carla cobrou o comprometimento do parceiro e, em troca, recebeu chutes nas pernas. Ficou em estado de choque e sentiu que talvez não fosse hora de conversar. Na segunda tentativa de discutir a traição, ela foi agarrada pelos braços e lançada sobre móveis da casa, até cair sob um espelho, quando o próprio agressor se assustou e parou de agredi-la. No dia seguinte, foi trabalhar cheia de roupa, apesar do calor, para cobrir as marcas.
“Ofereci apoio e respeitei o ritmo dela”
Lígia*, que na época tinha passado pelo divórcio, acabou encontrando em Carla uma parceira para conversar. Entre uma conversa e outra, Carla se sentiu à vontade para dividir a angústia da violência doméstica. “Carla não contava para ninguém o que estava acontecendo na casa dela, mas quando me ligou chorando e desesperada porque estava com hematomas, eu disse que ela estava sofrendo violência e perguntei qual seria o limite dela, porque as pessoas que passam por isso muitas vezes relativizam a culpa do agressor”, contou Lígia.
“Então, ofereci apoio caso ela quisesse denunciar e respeitei o ritmo dela, porque acredito que, juntas, podemos encorajar umas às outras a sairmos da prisão de relacionamentos abusivos”, diz.
Após o segundo episódio de agressão física, Carla saiu de casa praticamente fugida, contando com o apoio da amiga: esperou o ex sair, recolheu suas coisas rapidamente, bloqueou o ator em todos os seus contatos e comunicou à família dele que estava saindo de casa, temendo que ele surtasse e a culpa recaísse sobre ela na visão dos sogros.
Ela não contou que foi agredida nem para a família dele e nem para a própria família, também querendo evitar retaliações desnecessárias. Atualmente, só a mãe dela e algumas poucas familiares mulheres conhecem a verdadeira motivação do divórcio. Aos homens, ela ocultou os detalhes da violência com medo de que eles quisessem vingança contra o agressor.
“Ainda tenho medo de encontrar com ele [o ex] andando por aí. Nunca mais nos vimos nem nos falamos depois que saí de casa. Acredito que ele não tenha me procurado por medo de arruinar a carreira na televisão e, em alguma medida, me sinto protegida por essas circunstâncias, mas não totalmente. Nunca mais me apaixonei ou confiei em homens. Felizmente, tenho a oportunidade de fazer terapia, falar com uma profissional sobre isso e dar o melhor de mim para cicatrizar essa ferida”.
Carla não quis levar o caso à Justiça. O motivo é o mesmo pelo qual ela nunca denunciou o ator e pelo qual pediu que esta reportagem garantisse seu anonimato: qualquer busca no Google revela fotos do casal e ela tem medo de ser culpabilizada por tudo.
Culpa de quem?
A culpabilização das vítimas de violência não acontece apenas na arena midiática. Muitas vezes (e mesmo sem querer) a própria rede de apoio da vítima acaba julgando a situação com base em visões de mundo muito pessoais, esquecendo que o primeiro e mais importante mandamento, nesse caso, é escutar o que a pessoa agredida tem a dizer: seus medos, sua relação de dependência com o parceiro – que pode ser de ordem social, financeira, psicológica ou um misto de tudo isso.
Outro ponto importante de silenciamento vem da vergonha instantânea que vítimas de agressão sentem, mesmo quando acreditam que nada justifica esse tipo de ataque. Pessoas agredidas costumam duvidar da própria razão por conta do trauma.
Silvia Chakian, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), alerta que o mais comum é que as vítimas de abusos físicos e psicológicos não acionem a Justiça por medo de descaso e represálias.
Isso costuma ter um efeito rebote perverso: de acordo com uma recente pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nos últimos 12 meses, 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil, enquanto 22 milhões de brasileiras passaram por algum tipo de assédio. Entre os casos de violência, 42% dos casos ocorreram no ambiente doméstico. Após sofrer uma violência, mais da metade das mulheres (52%) não denunciou o agressor ou procurou ajuda.
Muitas mulheres morrem porque as agressões vão escalando em nível de gravidade quando o autor não é denunciado. Nesse cenário, o apoio e ajuda das pessoas próximas pode ser essencial para salvar suas vidas.
Sei de um caso de violência doméstica. O que fazer?
Chakian dá alguns conselhos de como intervir de forma efetiva e sem colocar a vítima em risco ainda maior.
1. Pergunte
Se suspeita que algo está acontecendo, não fique quieta. Pergunte para ela se algo está acontecendo e diga que você está disponível para ouvir e ajudar quando ela quiser falar. Talvez ela não se sinta pronta no momento, mas vai lembrar de você quando quiser ajuda.
2. Escute, mesmo que você discorde
O papel de alguém que quer apoiar não é julgar, mas aceitar que as dificuldades da pessoa abusada são diferentes das suas.
3. Informe
Assim como Carla no começo, muitas mulheres não conseguem reconhecer a violência que vivem. Então informar é essencial. Você pode falar, se tiver abertura, ou mandar reportagens e materiais educativos. Histórias e depoimentos de mulheres que passaram por algo parecido também podem ser muito úteis. Sempre tomando cuidado para não “revitimizar” a pessoa, sendo direta e carinhosa, mas sem tratar a mulher como criança.
4. Apoio incondicional
Ofereça apoio incondicional, mesmo que ela não esteja preparada para romper o relacionamento ou denunciar o agressor. Pessoas em situações de violência doméstica costumam se sentir desamparadas. Saber que existe uma amiga pronta para ajudar caso ela passe por novas agressões é a melhor maneira de mostrar que ela não estará sozinha no mundo caso deixe a relação.
5. Ofereça apoio prático
Muitas mulheres não saem de relacionamentos violentos por questões práticas: não têm para onde ir, dependem financeiramente do marido ou têm medo de perder a guarda dos filhos. Então se você tiver condições, ofereça o que puder ou ajude-a a encontrar opções. Ter para onde ir, contar com ajuda de uma advogada ou ter um suporte financeiro pode ser essencial.
6. Crie um código de segurança
É sempre frustrante tentar ajudar uma amiga que está sendo abusada quando sabemos que ela ainda ama ou acredita que ama o agressor e não quer abandonar o ambiente de risco. Nesses casos, o importante é não desistir dessa pessoa e deixar claro que você pode ser contatada a qualquer momento, estabelecendo os meios mais eficazes de mandar uma frase de segurança combinada previamente entre vocês caso a vítima ache que está em risco.
7. Seja cuidadosa
Lembre-se que sua amiga está com uma pessoa violenta e que invasão de privacidade é algo muito comum em relacionamentos abusivos. Então tenha cuidado com as mensagens que envia ou até mesmo com o que diz ao telefone, ele pode estar escutando.
8. Preserve as provas da agressão
Mesmo que a vítima não esteja cogitando denunciar ou se separar do agressor, o papel de uma amiga também é ser a voz da razão em meio ao caos. Você pode e deve ajudar uma mulher que está sofrendo abusos a armazenar e guardar as provas de violência para que ela possa fazer uma denúncia futura ou caso aconteça algo grave com ela. Nesses casos, a ideia é instruir a vítima a documentar as violações, seja fazendo fotos dos hematomas, seja arquivando mensagens com conteúdo ameaçador, tudo importa para proteger a vítima nesses momentos. Ela pode escolher nunca usar as provas, mas é fundamental ter a opção de usá-las quando quiser.
9. Se o risco for iminente, intervenha
O ideal é que a mulher tome a decisão de sair da relação e procure ajuda, por isso, a conversa é essencial. Mas às vezes sela pode demorar demais. Se você percebe que ela já sofre violência física, o melhor é contar pra ela que pensa em denunciar e entender qual é a vontade da pessoa afetada. Só tome a iniciativa de denunciar sem pedido da vítima se perceber que ela corre risco de vida, como, por exemplo, quando o agressor faz ameaças.
10. Nunca tente argumentar com o agressor
O homem que agride a companheira muitas vezes é aquele cara legal da turma ou o parente querido, que ninguém imaginaria que faria algo assim. Por isso, alguns amigos, ao saber da violência, acham que conversar com ele e argumentar para que pare pode ser uma alternativa. Nunca faça isso, pode colocar você e a vítima em risco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário