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domingo, 7 de outubro de 2012


Encontro com sem-teto pode ser melhor que dar esmola


Depois de 10 anos se reunindo com sem-teto de são paulo, a psicóloga crava: há encontros que podem transformar a vida de quem vive na rua

por Vanessa Vieira
Editora Globo
Foco certeiro: Para investigar o conceito de resiliência,
a pesquisadora procurou quem mais enfrenta dificuldades
(Foto: Daniela Toviansky)

De 1993 a 2003, a psicóloga Aparecida Magali de Souza Alvarez se reuniu ao menos duas vezes por semana com dois grupos de moradores de rua que ocupavam uma pracinha no centro da capital paulista. Os primeiros encontros foram parte de sua pesquisa de mestrado, que pretendia explorar o conceito de resiliência — capacidade de lidar com dificuldades e sair fortalecido. “Tudo o que eu vinha investigando na teoria estava concretizado naqueles moradores de rua”, diz. O tema se prolongou para um doutorado e um Ph.D.

A principal conclusão de Aparecida é de que, mesmo diante de todo tipo de adversidade e desprovido de estima, o ser humano pode transformar sua existência. “Essa capacidade é despertada quando as pessoas vivem situações que dão sentido às suas vidas”, afirma. A pesquisadora acaba de publicar o livro Transformações Humanas: Encontros, Amor Ágape e Resiliência sobre suas experiências e visões em torno do tema, um tabu para nossa sociedade, tratado de maneira ímpar.

GALILEU: Como foi a pesquisa de campo? 
Foi desenvolvida na Faculdade de Saúde Pública da USP, que tem a tradição de trabalhar com estatística e cruzamento de dados para analisar fenômenos. Mas meu objetivo era descrever questões como o poder transformador do amor ágape — termo usado pelo sociólogo francês Luc Boltanski que diz respeito ao amor que aceita o outro de maneira plena, não se importando com quem ele é ou com o que já fez. Por isso fui a campo. Nos 5 primeiros anos, trabalhei com um grupo de 5 moradores de rua e um bebê, que nasceu nesse meio tempo. Depois, no doutorado, pesquisei outro grupo de 6, composto mais por homens, alguns ex-presidiários ou ligados às drogas. Analisei o relacionamento desses moradores com uma professora aposentada que lhes dava aulas de alfabetização. Queria entender o impacto que isso tinha na vida deles. 

* Como foi a aproximação? 
Precisei ser introduzida por alguém em quem já confiavam. No primeiro caso, isso foi feito pelo Grupo da Sopa, que distribuía refeições. No segundo, fui apresentada por um membro do grupo anterior. Só assim consegui autorização para entrevistar, fotografar e filmar. 

* Que mudanças você observou? 
As transformações vieram de encontros em que prevalecia o amor ágape e eram capazes de despertar a resiliência dos moradores de rua. Havia um rapaz que vivia nas ruas, alcoólatra inveterado, que teve um filho. Depois de 6 meses, a mãe abandonou o bebê a seus cuidados. Com um sentido para viver, ele conseguiu deixar o alcoolismo para trabalhar. Outros moradores a quem pediu ajuda para cuidar da criança também largaram o álcool. Outro exemplo é o do Soviético, um ex-presidiário que não conseguia aprender a ler e escrever mas que, graças à postura plena de amor ágape daquela professora, que não questionava os crimes que ele havia cometido e o aceitou como ele era, passou a contar sua história com desenhos. Um dos sinais da transformação vem quando o Soviético resolve trabalhar — e não roubar — para comprar um presente para a professora. 

* Que estereótipos foram caindo? 
O de que a pessoa não sai da rua porque não quer. Essas pessoas não estão no exercício pleno de sua vontade. Estão sob escombros sociais, psicológicos. Elas também introjetam a visão que a sociedade tem delas — de que são um nada — e deixam de acreditar em sua capacidade. Outra questão é achar que o morador de rua é vagabundo porque dorme de dia. Na verdade, esse é o horário mais seguro. Também é falsa a ideia de que eles não têm vergonha da situação. Muitos se escondem atrás de uma barba, de uma roupa suja, deixando-se morrer, porque nem eles mesmos acreditam em uma mudança. 

* Por que é tão difícil ficarem em um abrigo, onde teriam cama e comida? 
Muitos teriam de se separar, por exemplo, do seu cão. Parece secundário, mas, no estado de abandono emocional em que vivem essas pessoas, aquele cão é essencial até para a sanidade mental. Em outros casos, têm uma relação amorosa, que precisariam deixar. Há ainda a dependência química. Se não for tratada, como a pessoa vai ficar em um local sem a droga? 

* A prefeitura de São Paulo quer proibir a distribuição de sopa para moradores de rua fora dos pontos oficiais. O que você acha disso? 
O trabalho desenvolvido pelas ONGs que levam alimento aos moradores de rua não se limita a uma simples distribuição de comida. Um processo de contato humano se desenvolve nessas ações, promovendo os chamados encontros transformadores. Proibir essas ações seria perder um valioso recurso para a mudança dessas pessoas. 

* Como deveriam ser pensadas as políticas para esse público? 
É preciso conhecer a realidade psicoemocional dos moradores de rua. Construir uma relação de confiança com eles leva tempo. Com uma vida tão exposta, eles não se abrem facilmente. Tem a ver com um sentido de autopreservação, de proteger a última coisa que é realmente íntima — sua história. Os técnicos que farão o contato direto com os moradores de rua precisam acreditar no potencial deles. É isso que os fará recuperar a esperança. A transformação vem ao reconquistar o sentido da vida.

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