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sábado, 28 de setembro de 2013

Fêmea: Levar um fora

130924-Tristeza

Ela não sabia, mas talvez precisasse ou quisesse afundar um pouco. Entrega e tristeza: duas obras de transformação, duas companheiras

Por Fabiane M. Borges | Imagem: Elmyr de Hory

“Muito bacana saber que você pode
ser jogada nessa altura da vida para o espaço
embora caindo na Terra abra um terrível rombo
e o viva um pouco como um abismo sem fundo”

Lygia Clark, em carta a Hélio Oiticida

“Post coïtum animal triste”… Esse filme ( França, 1997) realmente me marcou. A mulher se apaixonou por um desses viajantes bons amantes, cheios de boas intenções, que faz projeto solidário na África. Todo bonito, inteligente, encaracolado. Ela já com a vida a tope, sustentando autores nobres com sua linha editorial. Lia muito, escrevia texto, crítica no jornal, filhos adolescentes, casamento tradicional, tudo encaixado como deveria ser para uma mulher de meia idade, reconhecida na cidade e no mundo todo. Não digo rica, mas abastada, respeitada, admirada, solicitada, ocupada, a vida em riste, a vida em comida boa, em cultura fina, sucesso, sucessagem! Champanhe!

Foi numa dessas crises de um dos seus autores que apareceu o rapaz galante bom amante, que a enlouqueceu. Ela ficou animada, tarada, trepou, pirou, não quis saber de mais nada. Eu amo você!!! Eu amo você!!

Tantos filmes sobre amor no mundo e esse me deixa assim, em estado de suspensão. Porque ela virou um animal, ela se entregou de um jeito que nem ela sabia ser possível. Ela desejou aquilo pra dentro da sua vida. Era poesia, metafísica, era pathos, paixão, buraco no chão, era mais real do que uma ostra, ela queria aquilo com toda a força.

Seu marido e seus dois filhos tiveram que assistir às cenas de sua decadência. Ela sucumbiu quando o moço lhe deu um fora. Foi para a África, seguir a vida. Ela se deprimiu. Sua casa virou um enxame de ratos, seu trabalho: trapo, sua comida: verme, sua estabilidade: lixo, sua dignidade: raspa. Ela não tinha mais nada. Os amigos, os chegados, todos preocupados, querendo tirá-la do buraco onde se enfiou, mas nada conseguia combater aquela anarquia instaurada nas pupilas encharcadas, nas axilas fedorentas, nas gargalhadas exageradas. Seu sofrimento era grande, enorme, destamanhado. Ela sofria.

Como uma mulher de meia idade cai desse jeito no fosso da gravidade? A Terra puxava-a para baixo 49 vezes mais forte do que qualquer outro ser na superfície. Ela teve essa sensação de abismo sem fundo, como diz Lygia Clark.

Mas a coisa de ter meio século. Qualquer uma já teria aprendido a medir o passo, a não pisar em falso, a suportar o tranco, se segurar no barranco, não pisar na beira da cacimba, não perder o salto na esquina. Qualquer uma com seu status, já teria aprendido a dizer não pra todo esse alarde, esse chamarisco, essa conversa pra boi dormir. Não era porque não tinha experiência que se entregou desse jeito. Não era. Era outra coisa.

Sofrer assim uma falta, uma foda, uma felicidade. Não comportar nenhum excesso, desaguar por completo, um sentimento que vinha com sentido, como sina, senha, saída. Precisava descarrilhar para rearranjar alguma outra forma de vida, por ter a outra já esgotada? Um sofrimento que dá inveja de tão presente, tão centro de tudo, tão astro, tão fogo. Ela não sabia mas no fundo talvez precisasse, ou quisesse afundar um pouco, sofrer por amor era um jeito de poder sentir a vida mais presente e o sofrimento também é transformação.

Não é piegas, talvez seja piegas, mas sofrimento muda as coisas. Depois de um sofrimento bem curtido na água salgada, no cheiro ruim, na comida podre, na taquicardia, na respiração apertada, no suor frio, na vontade de nada, depois de se passar por tudo isso, algo se transforma e a tristeza, companheira das horas difíceis, parte. Intermitente, mas não mais tão presente.

Quero me deter só um pouco nessas duas coisas: a entrega, a tristeza.

Duas forças de resistência.
Duas obras de transformação.

Duas companheiras.

Porque da entrega sabe-se que é dada à vida, mas que pode matar, como qualquer imersão, salto das alturas.

Porque com a tristeza se pode acessar dados que os outros estados de humor não dão. Mais rente ao chão, dentro do chão, mais perto da desintegração, mais perto da morte, mas é também ponto de resgate.

Levar um fora tem dessas coisas. Dessas companhias…

E por falar de saltos e abismos, no final do filme tem essa cena belíssima, feita em Lesbos, na ilha de Safo. Segundo algumas lendas, há uma montanha em Lesbos onde diz-se que Safo se suicidou. Os amantes, os apaixonados não correspondidos, os que levam um fora, têm naquela rocha uma espécie de desafio. Se atirar de um lugar tão alto e sobreviver nas águas lá embaixo quer dizer que se atingiu o ponto de mutação. Algo se transforma. No filme, ela se atira sozinha de cima da rocha e sobrevive. Foi feito o rito de renovação. Ela sobreviveu a Safo, algo tão importante para as mulheres, e para qualquer pessoa.

E depois, o que não diz no filme, ela talvez tenha tido essa sensação que Lygia Clark teve, ao falar sobre uma paixão não correspondida que viveu na França: “Muito bacana saber que você pode ser jogada nessa altura da vida para o espaço embora caindo na Terra abra um terrível rombo e o viva um pouco como um abismo sem fundo. Foi graças a isso tudo que pude recomeçar a trabalhar, pois tive uma enorme e profunda necessidade de expressão”.

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