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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

GUEST POST: FEMINISMO E MATERNIDADE

A J. me enviou este texto polêmico e me pediu para que fosse publicado anonimamente. Não briguem comigo! (aliás, quem quiser contestar este texto, é só mandar um guest post pra cá). 

Lola, fiquei muito intrigada com uma discussão secundária que permeou um guest post publicado no seu blog e resolvi me posicionar, dando o meu testemunho. Aviso, desde já, que para legitimar minhas escolhas não pretendo desqualificar as demais. Falo por mim, e só.

Venho de uma família de mulheres intelectualmente proeminentes. Minha avó cursou medicina, nos idos de 1930. Exerceu de fato a profissão, embora com adaptações convenientes à época: atendia senhoras e crianças, e seu consultório funcionava em casa. Era também mestra e doutora.  Minha mãe, de igual forma, exerceu com muito sucesso a medicina. Formei-me em direito e fui aprovada em muitos concursos públicos. Hoje exerço uma função pública relevante, disputada por concurso, para o qual estudei incansavelmente, dedicando todo o meu tempo disponível durante um ano.

Paralelamente a tudo isso, casei com um homem que amo e tive dois filhos. Eles nasceram saudáveis e de parto cesáreo. Tirei as licenças maternidade a que tive direito, amamentei o quanto pude, estruturei minha casa com pessoas de confiança e com muita vigilância e voltei a trabalhar, imensamente feliz por fazer algo de que gosto tanto, por que tanto lutei, com tanto amor, e que tanto contribui para a distribuição da justiça na sociedade.

Hoje me espanta  a quantidade de discursos panfletários de mulheres que fizeram outras opções de vida e querem convencer a todxs de que aquele é o único caminho a seguir. Qualquer parto cesáreo equivale a uma “violência obstétrica” ou “extração cirúrgica do bebê”. Nem parto é mais! A mãe que trabalha e/ou contrata creches ou babás “terceiriza a infância dos filhos”. Até um novo verbo surgiu para explicar esse fenômeno, da renúncia à vida própria e do resgate da função de cuidadora da família: maternar. O certo, então, é largar a profissão, o emprego, e se dedicar com exclusividade a cuidar de marido, casa e filhos, sob pena de se causar dano irreparável à criança.

E os riscos que essa opção traz? Qualquer relacionamento é maduro ou democrático o suficiente para suportar essa desigualdade financeira, em que um dos parceiros depende integralmente de outro? O feminismo já está tão absolutamente consolidado em nossa sociedade, a igualdade entre mulheres e homens já é tão inquestionável, que a mulher já pode se dar ao luxo (novamente!) de depender do seu marido, sem risco de submissão e inferiorização? 

Seu relacionamento é assim, mulher “empoderada” (esse é o termo utilizado nas redes sociais de mães  para definir a mulher que “retomou as rédeas da criação dos filhos”)? Beleza! Deite e role, sem medo de uma separação conjugal em condições desiguais, pois para você não há riscos ao abdicar de uma carreira, para cuidar de casa e filho.

Mas essa não é a realidade de todas as mulheres brasileiras... Nem todas podem se dar ao luxo de viver como as suas avós (ou bisavós, no meu caso), sob pena de correrem o sério risco de pagar um alto preço, no futuro, por suas escolhas de hoje.

Se já senti culpa por não ter tido parto normal? Nenhuma! Não me sinto vítima de qualquer tipo de violência obstétrica, não me sinto iludida pelo sistema, que supostamente me condicionou a fazer uma opção inconsciente, não sinto que fui persuadida a sofrer uma intervenção cirúrgica desnecessária, não sinto que a minha obstetra tenha sido desleal ou preguiçosa, apenas para se “livrar do incômodo” de conduzir um parto normal.

Absolutamente! A escolha foi minha, e se dela pudesse derivar qualquer prejuízo para mim ou para meus filhos, tenho médicos que me amam em número suficiente na minha própria família para me convencer a fazer outra opção. Tive bebês grandes, com mais de quatro quilos, e preferi mil vezes a intervenção cirúrgica sofrida do que as possíveis consequências do parto normal a longo prazo (dentre as quais cito o prolapso de útero/assoalho pélvico, incontinência urinária e por aí vai). Por favor, parem de tentar me incutir uma culpa que não sinto!

Se me sinto culpada por trabalhar fora e deixar meus filhos sob o cuidado de terceiros? De jeito nenhum! Me realizo profundamente com o meu trabalho, e reconheço a sua importância social. Sou a melhor mãe que posso ser. Embora não execute pessoalmente todas as atividades do cuidado com crianças, delegando parte dessas tarefas às minhas ajudantes, permaneço atenta e vigilante, emocionalmente disponível, tenho muita paciência com eles  e sei que não há nenhuma sombra de dúvida em suas mentes acerca da intensidade do meu amor. 

Quero que eles tenham um modelo igualitário de mulher, que aprendam, em casa, comigo, que a mulher é tão capaz quanto o homem, que sintam orgulho da mãe deles, que sejam meus amigos e que usufruam de conforto, boa educação e boas oportunidades, para os quais a minha remuneração  é indispensável. Cresci assim, tendo como modelo uma mulher forte, intelectualmente ativa, que sempre trabalhou fora e que, ainda hoje, é a pessoa com que mais conto na vida. Nenhum trauma, só motivo de orgulho da mãe que tenho e da mãe que sou.

Percebo, contudo, que a dúvida acerca das próprias escolhas faz com que muitas mulheres que hoje abdicam de suas carreiras em prol da família passem a questionar a conduta daquelas para as quais a “queima de sutiãs” há mais de cinquenta anos atrás não foi em vão.  

Minha breve resposta: Eu defendo que as mulheres (as que têm escolha, o que por si só já é um enorme privilégio) trabalhem fora. Acho arriscado ser financeiramente dependente de alguém. Mas ninguém nunca verá neste blog um post meu condenando uma mulher (ou um homem) que fez a opção de abdicar da carreira para cuidar da família.

Eu acho temerário que o Brasil seja recordista mundial no número de cesáreas. Países bem mais avançados que o nosso insistem que cesáreas só devem ser realizadas em casos excepcionais, ou seja, em menos de 15% dos partos, e não na imensa maioria deles, o que acontece por aqui por motivos culturais. Creio que, como feministas, devemos questionar um sistema que força as brasileiras a fugir do parto normal. 

Mas ninguém nunca verá neste blog um post meu condenando uma mulher que fez cesárea de ser "menos mãe" ou qualquer coisa que o valha. 

E por aí vai. Eu critico o sistema, não as pessoas afetadas pelo sistema. E acho que, como feministas, devemos sempre questionar o status quo. No Brasil, o que é o status quo? Quem faz cesárea ou quem faz parto normal? 

Mas o que eu acho é que não precisamos brigar. Não há um modelo de mulher nem o jeito certo de viver a vida. Mulher que é mãe e cuida dos filhos, mulher que é mãe e trabalha fora, mulher que opta por não ter filhos, mulher que faz cesárea, mulher que tem parto normal, mulher que amamenta, mulher que não amamenta -- o feminismo pode ser empoderador para todas nós.

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