Compartilhar a vida não é fácil, mas é bom – e parece ser essencial
IVAN MARTINS
No começo, a gente só compartilha o corpo. Eu ofereço o meu e recebo o seu, cheio de novidades. O que vem depois, logo depois, é compartilhar ideias e sentimentos. Eles parecem vir do corpo como o suco vem da fruta. Decorre disso, claro, que a gente passe a partilhar o mais essencial – o tempo – que se transforma, rapidamente, em partilhar a vida. Só então, quando tudo está posto, passamos a dividir as nossas propriedades. Elas entram no fim, como lhes cabe na ordem de importância das coisas, mas tendem a tornar-se mais relevantes. Às vezes, quando tudo acabou, é sobre as propriedades que se fala, obsessivamente. Se o corpo, os sentimentos e o tempo comum se esgotaram, elas resistem, a nos ligar e nos dividir.
A cronologia das relações tende a ser assim, mas isso não significa que seja fácil.
Nossa natureza, tão pródiga em produzir afeto, resiste a compartilhar. Quer dizer, há coisas mais fáceis que outras de oferecer. Há degraus de relevância e dificuldade. Partilhar nosso corpo, por exemplo, ao contrário do que diz a lenda moralista, é fácil – e pode ser irrelevante. Frequentemente não deixa vestígios. Sexo pode ser feito com estranhos e, frequentemente, se faz. Bem mais difícil é compartilhar ideias e sentimentos. Isso exige afinidade. Somente quando ela é profunda – o que nem sempre acontece – as pessoas se dispõem a partilhar o tempo. As manhãs, os sábados, os verões. Tempo, afinal, é sinônimo de vida. Não é o tipo de coisa que se divida com qualquer um.
Há um aprendizado no processo de compartilhar, sobretudo para os homens. As mulheres fazem isso com mais naturalidade. Talvez sejam menos egoístas. Os homens parecem apegados a si mesmos e às suas necessidades, têm mais dificuldade em se oferecer. Leva algum tempo (às vezes no interior da relação, outras vezes na vida) para que as pessoas aprendam a se dividir. Entre os homens esse tempo parece maior. Afinal, somos voltados a nós mesmos. Ocupamos o centro da nossa vida de uma maneira radical e às vezes exclusiva. É difícil sair da posição de protagonista e partilhar nossa atenção com as realizações e as necessidades do outro. A gente aprende, mas exige esforço. Exige amor também, e talvez alguma maturidade. Anos.
Isso tudo me ocorre porque tive o privilégio, faz alguns dias, de conversar longamente com um casal apaixonado. Recém apaixonado. Bateu, de instantâneo, aquela ponta de inveja diante da felicidade dos outros. Todo mundo sabe como é bom esse começo, a sensação de completude e a fome que emana do outro. Mas a gente sabe que passa. A paixão passa e, dentro dela, se a gente tiver sorte, se engendra a capacidade de compartilhar - o corpo, as ideias, o tempo.
Se a gente tiver sorte, vai se acostumar ao outro corpo sem perder o interesse por ele. Os pés descalços, a pinta nas costas, a dor que reaparece e precisa ser combatida com massagens. Se a gente tiver sorte, vai se acostumar às ideias e a personalidade do outro, se apegar a elas. As descobertas e decepções da outra alma se tornam parte da nossa vida, compartilhadas. Se a gente tiver sorte, e alguma generosidade, vai receber o outro na nossa existência. Vai se acostumar a dividir com ele o tempo precioso, vai observá-lo mudar e amadurecer. Com sorte, a vida dela ou dele vai se tornar também a nossa vida. Por quanto tempo, nunca se sabe. A gente pode ter mais ou menos sorte. O importante é deixar-se tocar pela existência do outro e fazer parte dela. Deixar também que o outro faça parte. Essa é a grande experiência que fica, compartilhada.
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