Silvia Chakian
Promotora do MP-SP, coordena Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica
Promotora do MP-SP, coordena Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica
31/12/2015
Se por um lado 2015 se despede sem deixar saudades, seja pelo agravamento da crise política, econômica e fundamentalmente, ética, seja pelos crimes ambientais de proporções inimagináveis, incêndios, aumento do desemprego, da violência e outras tantas notícias que envergonham a humanidade, por outro, desponta como um ano produtivo e relevante para a luta pela equidade de gênero. São esses fenômenos paradoxais, inexplicáveis, que transformam os seres humanos e nos levam à reflexão sobre nossa existência. Tempos de Luz e Trevas, para rememorarmos Charles Dickens.
Para as mulheres, o ano começou com a aprovação da Lei do Feminicídio, inegável aprimoramento legislativo que permite a qualificação específica do assassinato de mulheres por razões de gênero, conferindo visibilidade a esse fenômeno crescente no Brasil e que deve proporcionar a adoção de políticas públicas estratégicas de enfrentamento.
Nos meses subsequentes, nunca se falou tanto sobre feminismo, relações de gênero e todas as formas de violência contra a mulher.
A mídia convencional e principalmente a internet, por meio das redes sociais, estas movimentadas pelo chamado "feminismo jovem", trouxeram para o debate a questão do assédio e abuso sexual contra a mulher, de forma mais persuasiva a partir do episódio da menina participante do programa Master Chef Júnior, da Rede Bandeirantes de Televisão.
A origem dessa mobilização se deu após os comentários de cunho sexual feitos em redes sociais e direcionados a uma participante de apenas 12 anos. Milhares de mulheres se encorajaram a compartilhar episódios de assédio que sofreram, motivadas pela campanha #primeiroassédio criada pelo ThinkOlga).
No mesmo mês, com a aprovação do famigerado PL 5069 de Eduardo Cunha, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, que dificulta o já sofrido e traumático caminho da vítima de violência sexual que procura o Sistema de Saúde, milhares de mulheres ocuparam as ruas contra o retrocesso, gritando palavras de ordem como "meu útero é laico", "meu corpo, minhas regras" e "Cunha sai, a pílula fica!". E a sociedade passou a refletir como nunca antes sobre temas como estupro, autonomia do corpo, direitos sexuais e reprodutivos.
Nos dias 24 e 25 de outubro mais de sete milhões de alunos do ensino médio que fizeram a prova do Enem, tiveram que refletir sobre a célebre frase de Simone de Beauvoir "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher" e consequentemente sobre a questão de gênero.
Também tiveram que dissertar sobre "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira", o que exigia a análise das causas sociais desse tipo de criminalidade, aspectos do patriarcado e do machismo estruturante.
A repercussão do tema sofreu intenso ataque por parte dos conservadores, que trataram de manifestar repúdio à apelidada "imposição da ideologia de gênero", com propagação de boatos permeados pela desonestidade intelectual.
Mas o tiro saiu pela culatra e todo esse debate acabou despertando ainda mais a sociedade para a importância de tratar das questões de gênero em todas as esferas, sobretudo na educação.
Paralelamente a isso, no cenário mundial, o ano foi de discursos inflamados pela equidade de gênero nas premiações do Oscar e Emmy Awards, especialmente pelas atrizes Patricia Arquette e Viola Davis, cujas reivindicações por igualdade de salários e representatividade no cinema, respectivamente, foram replicadas milhares de vezes nas redes sociais.
As protagonistas de 2015 foram as mulheres, acho que disso ninguém duvida.
Mas que mulheres?
O grande destaque do filme As Sufragistas que passou a ser exibido no Brasil este mês (não vou me aprofundar nas críticas, mas desde já concordo com aquelas relacionadas à falta de representatividade da mulher negra e imigrante) é ter contado a história da luta pelo direito do voto feminino sob a perspectiva das mulheres anônimas, que aderiram ao movimento e efetivamente fizeram toda a diferença.
Da mesma forma, ao final de um ano de muito trabalho pelos direitos das mulheres e tendo acompanhado diversas iniciativas anônimas, que tiveram a importância de mudar a vida de milhares de meninas e mulheres, dando-lhes a oportunidade de escolha por uma vida livre de discriminação e violência, me parece justo dizer que em 2015, foram elas, essas mulheres desconhecidas, que não têm acesso à mídia e não estão na mira de holofotes, que protagonizaram grandes transformações na busca por uma sociedade mais igualitária. E a elas direciono toda minha admiração.
Minhas eleitas são as ativistas que trabalham diariamente nas periferias mais esquecidas deste País, sem qualquer estrutura, com o objetivo de orientar meninas e mulheres sobre seus direitos.
As educadoras que reconhecem desde sempre a importância de trabalhar as relações de gênero nas escolas e universidades, como forma de respeito à diversidade e prevenção da violência.
As promotoras de justiça, juízas, delegadas, defensoras públicas e advogadas de todo o País, que muitas vezes precisam enfrentar o machismo dentro de suas próprias instituições, para lutar pelos direitos humanos de mulheres em situação de violência ou vulnerabilidade social.
As assistentes sociais, psicólogas e outras técnicas, agentes comunitárias e profissionais da área da saúde, que trabalham diariamente nos serviços de atendimento à mulher, quase sempre precarizados.
As guardas civis do Projeto Guardiã Maria da Penha, que diariamente visitam casas de mulheres que sofreram violência por parte de seus parceiros ou ex-parceiros, proporcionando acolhimento, orientação e fiscalização do cumprimento de medidas protetivas concedidas judicialmente.
As meninas dos coletivos feministas das universidades que enfrentam todo tipo de preconceito para lutar pelo fim dos atos de discriminação contra a mulher no ambiente universitário.
As muitas ativistas digitais e blogueiras que são responsáveis por mobilizar milhares de mulheres em torno de temas feministas e campanhas de conscientização.
As publicitárias que começam a provocar uma nova forma de fazer propaganda, que não objetifica, idiotiza ou sexualiza a mulher.
E, por fim, todas as mulheres que sofreram qualquer ato de discriminação e violência e conseguiram romper com o silêncio, buscar ajuda, denunciar e, com isso, motivar outras tantas mulheres, assim como impulsionar as políticas públicas de enfrentamento.
O ano de 2015 é delas e todos os méritos das conquistas que tivemos também.
Então que venha 2016. E sem paradoxos.
Menos caótico, turbulento, cruel no cenário político, econômico, ambiental, social e ético, para erradicarmos os rompantes de Trevas, ao mesmo tempo em que amplie os espectros de Luz para novos avanços rumo à equidade de gênero.
Com a esperança de que as sementes plantadas no ano que se vai se revertam em resultados efetivos para todas as mulheres.
HuffPost Brasil
Se por um lado 2015 se despede sem deixar saudades, seja pelo agravamento da crise política, econômica e fundamentalmente, ética, seja pelos crimes ambientais de proporções inimagináveis, incêndios, aumento do desemprego, da violência e outras tantas notícias que envergonham a humanidade, por outro, desponta como um ano produtivo e relevante para a luta pela equidade de gênero. São esses fenômenos paradoxais, inexplicáveis, que transformam os seres humanos e nos levam à reflexão sobre nossa existência. Tempos de Luz e Trevas, para rememorarmos Charles Dickens.
Para as mulheres, o ano começou com a aprovação da Lei do Feminicídio, inegável aprimoramento legislativo que permite a qualificação específica do assassinato de mulheres por razões de gênero, conferindo visibilidade a esse fenômeno crescente no Brasil e que deve proporcionar a adoção de políticas públicas estratégicas de enfrentamento.
Nos meses subsequentes, nunca se falou tanto sobre feminismo, relações de gênero e todas as formas de violência contra a mulher.
A mídia convencional e principalmente a internet, por meio das redes sociais, estas movimentadas pelo chamado "feminismo jovem", trouxeram para o debate a questão do assédio e abuso sexual contra a mulher, de forma mais persuasiva a partir do episódio da menina participante do programa Master Chef Júnior, da Rede Bandeirantes de Televisão.
A origem dessa mobilização se deu após os comentários de cunho sexual feitos em redes sociais e direcionados a uma participante de apenas 12 anos. Milhares de mulheres se encorajaram a compartilhar episódios de assédio que sofreram, motivadas pela campanha #primeiroassédio criada pelo ThinkOlga).
No mesmo mês, com a aprovação do famigerado PL 5069 de Eduardo Cunha, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, que dificulta o já sofrido e traumático caminho da vítima de violência sexual que procura o Sistema de Saúde, milhares de mulheres ocuparam as ruas contra o retrocesso, gritando palavras de ordem como "meu útero é laico", "meu corpo, minhas regras" e "Cunha sai, a pílula fica!". E a sociedade passou a refletir como nunca antes sobre temas como estupro, autonomia do corpo, direitos sexuais e reprodutivos.
Nos dias 24 e 25 de outubro mais de sete milhões de alunos do ensino médio que fizeram a prova do Enem, tiveram que refletir sobre a célebre frase de Simone de Beauvoir "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher" e consequentemente sobre a questão de gênero.
Também tiveram que dissertar sobre "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira", o que exigia a análise das causas sociais desse tipo de criminalidade, aspectos do patriarcado e do machismo estruturante.
A repercussão do tema sofreu intenso ataque por parte dos conservadores, que trataram de manifestar repúdio à apelidada "imposição da ideologia de gênero", com propagação de boatos permeados pela desonestidade intelectual.
Mas o tiro saiu pela culatra e todo esse debate acabou despertando ainda mais a sociedade para a importância de tratar das questões de gênero em todas as esferas, sobretudo na educação.
Paralelamente a isso, no cenário mundial, o ano foi de discursos inflamados pela equidade de gênero nas premiações do Oscar e Emmy Awards, especialmente pelas atrizes Patricia Arquette e Viola Davis, cujas reivindicações por igualdade de salários e representatividade no cinema, respectivamente, foram replicadas milhares de vezes nas redes sociais.
As protagonistas de 2015 foram as mulheres, acho que disso ninguém duvida.
Mas que mulheres?
O grande destaque do filme As Sufragistas que passou a ser exibido no Brasil este mês (não vou me aprofundar nas críticas, mas desde já concordo com aquelas relacionadas à falta de representatividade da mulher negra e imigrante) é ter contado a história da luta pelo direito do voto feminino sob a perspectiva das mulheres anônimas, que aderiram ao movimento e efetivamente fizeram toda a diferença.
Da mesma forma, ao final de um ano de muito trabalho pelos direitos das mulheres e tendo acompanhado diversas iniciativas anônimas, que tiveram a importância de mudar a vida de milhares de meninas e mulheres, dando-lhes a oportunidade de escolha por uma vida livre de discriminação e violência, me parece justo dizer que em 2015, foram elas, essas mulheres desconhecidas, que não têm acesso à mídia e não estão na mira de holofotes, que protagonizaram grandes transformações na busca por uma sociedade mais igualitária. E a elas direciono toda minha admiração.
Minhas eleitas são as ativistas que trabalham diariamente nas periferias mais esquecidas deste País, sem qualquer estrutura, com o objetivo de orientar meninas e mulheres sobre seus direitos.
As educadoras que reconhecem desde sempre a importância de trabalhar as relações de gênero nas escolas e universidades, como forma de respeito à diversidade e prevenção da violência.
As promotoras de justiça, juízas, delegadas, defensoras públicas e advogadas de todo o País, que muitas vezes precisam enfrentar o machismo dentro de suas próprias instituições, para lutar pelos direitos humanos de mulheres em situação de violência ou vulnerabilidade social.
As assistentes sociais, psicólogas e outras técnicas, agentes comunitárias e profissionais da área da saúde, que trabalham diariamente nos serviços de atendimento à mulher, quase sempre precarizados.
As guardas civis do Projeto Guardiã Maria da Penha, que diariamente visitam casas de mulheres que sofreram violência por parte de seus parceiros ou ex-parceiros, proporcionando acolhimento, orientação e fiscalização do cumprimento de medidas protetivas concedidas judicialmente.
As meninas dos coletivos feministas das universidades que enfrentam todo tipo de preconceito para lutar pelo fim dos atos de discriminação contra a mulher no ambiente universitário.
As muitas ativistas digitais e blogueiras que são responsáveis por mobilizar milhares de mulheres em torno de temas feministas e campanhas de conscientização.
As publicitárias que começam a provocar uma nova forma de fazer propaganda, que não objetifica, idiotiza ou sexualiza a mulher.
E, por fim, todas as mulheres que sofreram qualquer ato de discriminação e violência e conseguiram romper com o silêncio, buscar ajuda, denunciar e, com isso, motivar outras tantas mulheres, assim como impulsionar as políticas públicas de enfrentamento.
O ano de 2015 é delas e todos os méritos das conquistas que tivemos também.
Então que venha 2016. E sem paradoxos.
Menos caótico, turbulento, cruel no cenário político, econômico, ambiental, social e ético, para erradicarmos os rompantes de Trevas, ao mesmo tempo em que amplie os espectros de Luz para novos avanços rumo à equidade de gênero.
Com a esperança de que as sementes plantadas no ano que se vai se revertam em resultados efetivos para todas as mulheres.
HuffPost Brasil
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