A perspectiva de gênero é essencial para uma resposta eficaz do Estado diante da mais extrema forma de violência contra as mulheres: o feminicídio. A partir desse diagnóstico e com o objetivo de contribuir para a identificação e eliminação das discriminações com as condições femininas na investigação de cada caso, o Escritório da ONU Mulheres no Brasil e o governo federal lançaram no dia 8 de abril as “Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios”.
As diretrizes são fruto do processo de adaptação do protocolo latino-americano para investigação dos assassinatos de mulheres por razões de gênero (ONU, 2014) à realidade social, cultural, política e jurídica do Brasil, realizado pelas instituições junto a um Grupo de Trabalho Interinstitucional composto por dez profissionais – delegadas de polícia, peritas criminais, promotoras de justiça, defensoras públicas e juízas.
O documento reúne elementos para aprimorar a resposta das instituições públicas nas diversas etapas: desde a investigação policial, ao processo judicial e julgamento das mortes violentas de mulheres até a garantia dos direitos de vítimas sobreviventes ou indiretas. Contribui, ainda, para evidenciar as razões de gênero a partir da análise das circunstâncias do crime, das características do agressor e da vítima, e do histórico de violência.
Visibilizar e conhecer para prevenir
Segundo a especialista Wânia Pasinato, coordenadora sobre acesso à justiça da ONU Mulheres/Brasil, o documento oferece suporte para evidenciar quando há um feminicídio e que este é um crime evitável para o qual o Estado tem a obrigação de formular medidas de responsabilização, proteção, reparação e prevenção, que sejam transformadoras da cultura de violência contra as mulheres.
“Estamos falando de um fenômeno que é perversamente social e democrático, que pode atingir qualquer uma de nós, mulheres, mas que, ao mesmo tempo, tem características particulares que precisam ser compreendidas para promovermos as transformações necessárias” , explica a pesquisadora, lembrando que, segundo o Mapa da Violência 2015, a taxa de mortes violentas de mulheres é mais alta entre as negras e jovens (saiba mais). Por isso, além das discriminações baseadas nos papéis de gênero, as diretrizes abordam ainda as intersecções entre gênero e classe social, geração, deficiências, raça, cor e etnia.
A pesquisadora ressalta que, além de considerar essas intersecções, para ter maior efetividade o documento deve ser adaptado às diferentes realidades em que vivem as mulheres no Brasil. Nesse sentido, cinco estados estão passando por processos pilotos de adaptação das diretrizes nacionais ao contexto regional por meio da formação de grupos de trabalho intersetoriais locais: Maranhão, Mato Grosso do Sul, Piauí, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Também no Distrito Federal o documento foi trabalhado por cerca de 30 agentes da Segurança Pública, Ministério Público, Poder Judiciário e Defensoria Pública, durante um curso de extensão realizado em parceria com a Universidade Nacional de Brasília (UnB).
Capilaridade para a Lei do Feminicídio
Para além dos atores que lidam com a aplicação da lei, o documento pode levar a uma melhor compreensão do problema de um modo geral, uma vez que as diretrizes se somam à tipificação penal penal do feminicídio e aos esforços para dimensionar e conhecer melhor a violência fatal contra as mulheres, visibilizando suas raízes discriminatórias.
Nesse sentido, a secretária especial de Políticas para as Mulheres do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, Eleonora Menicucci, frisa a importância dos gestores e operadores do Direito que estão mais perto da ponta do atendimento e, portanto, podem capilarizar as transformações necessárias em toda a sociedade, garantindo o direito das mulheres a uma vida livre de violência.
“Vivemos em um país em que até a presidenta [Dilma Rousseff] sofre violência de gênero, imagine o que as anônimas sofrem cotidianamente. Não podemos continuar convivendo com esse sexismo na sociedade, como se nós, mulheres, 52% da população brasileira, não fossemos nada. Não existe democracia sem direitos garantidos. Conquistamos a Lei do Feminicídio, sancionada em 2015, e agora entregamos estas diretrizes para a sociedade, para os operadores do Direito e da Segurança Pública”, reforça Eleonora Menicucci.
A lei existe, é preciso aplicá-la
O crime de feminicídio está previsto na legislação brasileira desde a entrada em vigor da Lei nº 13.104/2015, que alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), para prever esta qualificadora do crime de homicídio. Assim, foi nomeado perante a lei o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino, isto é, quando o crime envolve: “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Nomear o problema é uma forma de visibilizar um cenário permanente e grave em que mulheres são mortas cotidianamente no Brasil. Para além de tirar a questão da invisibilidade, a correta aplicação da lei demanda mudanças culturais e de práticas setoriais nas próprias instituições do Estado, para que estas identifiquem e compreendam as condições discriminatórias que precisam ser transformadas para coibir o feminicídio.
Para a secretária nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki, neste cenário, as diretrizes são uma poderosa ferramenta para mudar olhares. “A lei existe, foi sancionada, agora precisamos fazer com que pegue. Temos que levá-la à realidade dos Estados e municípios, para que o gênero seja premissa na investigação, para mudarmos essa cultura machista que ainda está impregnada no país”, frisa a secretária.
A representante da ONU Mulheres Brasil, Nadine Gasman, destaca ainda a importância da implementação dos procedimentos adequados desde os primeiros momentos de uma denúncia. “As autoridades estatais têm obrigação de coletar os elementos básicos de prova e realizar uma investigação imparcial, séria e efetiva por todos os meios disponíveis. Nesse sentido, a perspectiva de gênero pode garantir uma resposta adequada do Estado, com duas finalidades: dar respostas a um caso particular e, ao mesmo tempo, prevenir a perpetuação do feminicídio”, ressalta.
As mortes violentas de mulheres por razões de gênero são fenômeno global. Em tempos de guerra ou de paz, muitas dessas mortes ocorrem com a tolerância das sociedades e governos, encobertas por costumes e tradições, revestidas de naturalidade, justificadas como práticas pedagógicas, seja no exercício de direito tradicional – que atribui aos homens a punição das mulheres da família – seja na forma de tratar as mulheres como objetos sexuais e descartáveis. Pouco se sabe sobre essas mortes, inclusive sobre o número exato de sua ocorrência, mas é possível afirmar que ano após ano muitas mulheres morrem em razão de seu gênero, ou seja, em decorrência da desigualdade de poder que coloca mulheres e meninas em situação de maior vulnerabilidade e risco social nas diferentes relações de que participam nos espaços público e privado (ONU Mulheres, 2012)”.
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