Simpósio no 4°Seminário Internacional O Mundo
dos Trabalhadores e seus Arquivos' permite trocar experiências sobre a
investigação de documentos e mostrar o resgate de histórias que seriam
apagadas
por Helder Lima, da RBA
publicado
10/06/2016
São Paulo – Vem o inverno e os moradores de rua até
podem receber ajuda solidária, de entidades humanitárias e grupos
voluntários, mas isso não muda sua condição, marcada pela
"invisibilidade" – a pessoa é ignorada nas ruas, vítima de uma atitude
que está naturalizada na sociedade. Da mesma forma, enquanto a mídia e
entidades ambientais defendem o uso do etanol para reduzir os impactos
ambientais dos automóveis, cortadores de cana-de-açúcar, muitos deles
migrantes que trabalham na safra desse combustível, adoecem entre dez e
15 anos de atividade, exauridos por um ritmo cruel e desumano, assentado
na forma de pagamento por produção.
"É preciso tirar esse problema da invisibilidade", diz a pesquisadora
Tainá Reis de Souza, doutoranda da Universidade Federal de São Carlos
(UFScar). Segundo dados que ela cita de outros estudos, um cortador
desfere cerca de 3.500 golpes por dia, trabalhando com frequência
cardíaca de 200 batimentos por minuto, e com queima de 3.500
quilocalorias, o que o obriga a ingerir oito litros de água durante esse
processo.
"Os cortadores perdem sais minerais, sofrem cãibras no corpo inteiro
com frequência, às vezes a cãibra é tão forte que chegam a urinar e
defecar e há até casos de morte por exaustão", afirma a pesquisadora,
destacando que o ciclo de abraçar a cana e golpear o facão consome
apenas 5 segundos para que a produção do cortador seja elevada ao
máximo. "O aumento da produção depende da capacidade física, de quanto
consegue colocar seu corpo à prova", afirmou. Ela diz também que a
mecanização do corte nas usinas não chega a pôr fim na necessidade do
corte manual, ou porque há áreas que a máquina não alcança ou por outra
razão.
Tainá apresentou a experiência de sua pesquisa ontem (9), em um
encontro com pesquisadores de diferentes universidades do país, que
investigam problemas de gênero, raça e classe social no cotidiano dos
trabalhadores. O encontro foi realizado durante o segundo dia do 4°
Seminário Internacional o Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos:
Memória, Verdade, Justiça e Reparação, no Sindicato dos Químicos de São
Paulo. O seminário é promovido pela CUT e pelo Arquivo Nacional, do
Ministério da Justiça, desde quarta-feira e termina hoje (10).
"Nas pesquisas surgem as dificuldades que os trabalhadores passam no
capitalismo, a gente sabe que é um mundo absorvido pela exploração",
afirma a coordenadora do encontro, a pesquisadora Lorena Almeida Gill,
da Universidade Federal de Pelotas, onde atua com o Núcleo de
Documentação Histórica. O núcleo mantém acervos sobre o mundo dos
trabalhadores, como uma documentação da Justiça do Trabalho com 100 mil
processos trabalhistas entre 1941 e 1995, e todo o acervo da Delegacia
Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, entre as décadas de 1930 e
1960. Há ainda o acervo da Laneira Brasileira S.A., indústria de lã
fundada em 1945 em Porto Alegre e transferida para Pelotas em 1948.
"Invisibilidade. É isso o que eu senti porque os ferroviários desapareceram da história local, porque a Rede (Rede Ferroviária Federal S.A.)
foi privatizada", disse a pesquisadora da Universidade Estadual de
Ponta Grossa, Rosângela Petuba. Ela contou que a paranaense Ponta Grossa
era uma cidade profundamente identificada com a categoria dos
ferroviários, mas que com o processo de privatização da empresa iniciado
por Fernando Collor em 1992 e levado a cabo pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso toda a documentação histórica da empresa não pôde ser
mais encontrada. "Os marcos da presença dos ferroviários na cidade vão
se tornando invisíveis", disse, depois de destacar que a cidade tinha
também escola, cooperativa, time de futebol e hospital ligados a esses
trabalhadores. "Collor na tevê chamou os ferroviários de vagabundos",
lembrou.
Para preservar a memória dos trabalhadores face ao poder destrutivo
do processo de privatização, Rosângela teve de optar pela busca de
fontes orais, retomando trajetórias individuais e coletivas. Ela também
consultou atos da Câmara Municipal para identificar e preservar o modo
de viver dos ferroviários. "A elite do passado se tornou o inimigo a ser
abatido", afirmou a pesquisadora, sobre o contexto em que os
funcionários públicos passaram a ser demonizados pela mídia.
"Vícios de pobreza"
Em uma investigação sobre o período do fim da escravidão e o
pós-abolição na cidade mineira Mariana, a historiadora Marileide
Cassoli, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ao buscar
informações sobre proprietários de terra encontrou em Belo Horizonte
autos de corpo de delito da Chefia de Polícia, envolvendo mulheres por
motivo de defloramento. "E todas eram afrodescendentes, voltadas ao
serviço doméstico", disse Marileide. Debruçada sobre a documentação, ela
mapeou a vivência de algumas dessas mulheres, histórias que ela define
como de "múltiplos retratos no contexto de uma conduta moral sobre o
corpo feminino".
Segundo a pesquisadora, as mulheres ex-escravas eram submetidas a uma
visão de que não tinham capacidade para lidar com a liberdade. Pela
análise que fez do arquivo, a pesquisadora pôde identificar como a
educação naquele momento era pautada pelos valores morais das elites. O
código penal de 1890 estabelecia penas diferenciadas para o ato de
violência contra mulheres. "Tratava-se de controlar a vadiagem e a
mendicância e conduzir para o mercado de trabalho", diz Marileide.
Em uma sociedade moldada por "costumes ordeiros", as raparigas, como
eram chamadas, não se adequavam a esses modelos. "Traziam em si supostos
vícios de pobreza, escravidão, lascívia", diz a pesquisadora, usando o
jargão dos documentos históricos. Mas ela também reconhece que esses
preconceitos estão vivos ainda hoje. "Histórias nos remetem a coisas que
deveriam ter sido alteradas e não foram."
Na sua pesquisa, Marileide comparou os ambientes urbanos e rurais nas
relações das mulheres com o mercado de trabalho. Enquanto no campo, a
estrutura favorecia um controle do corpo da mulher, na cidade a
circulação para o trabalho expunha o corpo. Ela também destaca que ante a
autoridade a penalidade do deflorador dependia da honestidade da mulher
deflorada.
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