Quinta maior causa de morte materna no Brasil, o aborto permanece ilegal no país, com raras exceções. A restrição põe em xeque a saúde pública de cerca de 800 mil mulheres por ano, e pode ficar ainda mais severa se projetos de lei no Congresso forem aprovados

Maria (nome fictício para preservar a fonte) nunca se esquecerá de agosto de 2010. Depois de terminar um relacionamento abusivo de dois anos com seu namorado, ela, que sofria inúmeras agressões físicas e psicológicas durante brigas e que, por três vezes, teve de impedi-lo de cometer suicídio, descobriu que estava grávida de três semanas.

Confusa, com medo de retaliações por parte do ex-companheiro e preocupada com o futuro dela e da criança, Maria, aos 22 anos de idade, tomou a decisão que considerou mais difícil de sua vida: retirar o feto. “Seis anos se passaram e ainda me lembro de cada segundo, foi um momento muito marcante que nunca esquecerei”, diz. “Foi a única saída. Se continuasse com a gravidez, as consequências seriam gravíssimas. Talvez eu não estivesse mais viva.”

Por ser ilegal no Brasil – exceto em casos de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal –, com penas previstas na Constituição de um a três anos de regime fechado para as gestantes, Maria, então, se expôs ao risco de uma prática abortiva considerada por médicos como insegura. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma mulher morre a cada dois dias no Brasil vítima de um aborto mal realizado. Essa é a quinta maior causa de morte materna no país.

Embora tenha recebido apoio de pessoas próximas, foi difícil para a jovem conter o pânico ao ler relatos de outras mulheres na internet, principalmente pelas consequências. Segundo Thomaz Gollop, obstetra do Hospital Israelita Albert Einstein e membro da equipe médica do Hospital e Maternidade Leonor Mendes de Barros, do Pérola Byington, um procedimento inseguro causa sobretudo infecção, perfuração de órgãos como útero e, eventualmente, intestino, esterilidade e hemorragia.

Após dias pesquisando sobre a melhor forma de interromper a gravidez, Maria encontrou uma pessoa de confiança que fornecia o medicamento Cytotec (misoprostol). O remédio é proibido no país pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por induzir o aborto até a nona semana de gestação e ter comprovação científica de 90% de chances de sucesso. “Há muita gente vendendo remédios falsificados, tive a sorte de encontrar alguém em quem pudesse confiar”, afirma. O procedimento em si custou R$ 600 à jovem.

Drama disseminado
A história de Maria não é algo isolado no Brasil. Estima-se que anualmente, em média, 800 mil mulheres praticam o aborto inseguro por essa intervenção não ser legalizada no país. Desse total, segundo o Sistema Único de Saúde (SUS), cerca de 200 mil mulheres são internadas em hospitais da rede para fazer a curetagem. Por ser um procedimento caro (na cidade de São Paulo, por exemplo, o valor pode variar de R$ 500 a R$ 6.000), as mulheres de baixa renda são as que mais sofrem consequências.

Para a antropóloga Debora Diniz, professora de direito da Universidade de Brasília e responsável por vários estudos sobre o aborto no Brasil, esse tema, que é propriamente reativo à saúde das mulheres, não é compreendido como tal no país. “O direito ao aborto é uma necessidade em saúde pública e um direito da mulher, não é uma prática que se possa banalizar”, diz.

A falta de acompanhamento especializado às mulheres que se submetem ao aborto insegu­ro também gera aos cofres públicos um gasto em torno de R$ 150 milhões por ano. Para Debora, o acesso à informação e um diá­logo amplo sobre os direitos sexuais e reprodutivos poderiam reduzir a demanda por abortos. Ela reitera, porém, que o direito de escolha deve ser da mulher. “As complicações decorrentes da tentativa de um aborto inseguro demandam mais do sistema de saúde do que os procedimentos necessários para o aborto legal.”

Entre 2010 e 2016, os abortos legais no Brasil foram autorizados para 9.469 mulheres, ao custo de R$ 1,99 milhão. “O argumento de que o SUS não tem dinheiro para cuidar dessa situação é completamente falho, no momento em que cuida dessa situação depois que a mulher já fez o aborto”, observa Gollop.

Pode piorar
No início de 2016, o Brasil se deparou com o grave surto de microcefalia, doença que deixa a cabeça da criança menor que o tamanho ideal para sua idade, o que impede seu desenvolvimento. Até abril, o Ministério da Saúde registrou 1.168 casos em 22 estados. A crise reabriu o debate do aborto, como em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal legalizou a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos. Em estados como Pernambuco, por exemplo, onde as taxas de bebês com microcefalia são maiores, além de algumas mães não terem condições para criar a criança, passou-se a notar o abandono por parte dos pais ainda durante a gestação. Atualmente, o Brasil conta com 67 milhões de mães, das quais 20 milhões são solteiras.

O aumento no número de casos de microcefalia também estimulou projetos de lei que inibissem ainda mais a prática abortiva. Com um Congresso mais conservador desde a volta do Brasil à democracia, ao menos dois projetos recentes de lei tramitam na Câmara para restringir ainda mais a possibilidade de abortos legais. Em fevereiro, o deputado Anderson Ferreira (PR-PE) apresentou o projeto de lei no 4.396, que pretende mudar o código penal para elevar de um terço até a metade da pena a prática de aborto em razão da microcefalia ou qualquer anomalia do feto.

Antes dele, em outubro de 2015, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o projeto de lei nº 5.069, de 2013, que prevê penas mais rígidas e específicas a gestantes que usarem remédios abortivos, além de passar a exigir exames de corpo de delito e comunicação à autoridade policial se a mulher alegar ter engravidado por estupro. A proposta de lei foi feita pelo então presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e outros líderes do governo, como André Moura (PSC-SE).

Se aprovada, a lei pode dificultar a interrupção de gestações como a do emblemático caso de abuso sexual em Pernambuco. Em 2009, médicos do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros descobriram a gravidez de gêmeos de uma menina de 9 anos, após ser estuprada pelo padrasto, Jaílson José da Silva, de 23 anos. “Avalio que todos os dispositivos que visam dificultar o acesso da mulher a um aborto seguro – no caso dos já autorizados por lei – podem ser contestados à luz da Constituição”, diz Luciana Boiteux, professora de direito penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Enquanto isso, no mundo
Desde 1998, o instituto internacional Center for Reproductive Rights atualiza um mapa virtual para comparar o status das leis de aborto no mundo. Segundo a instituição, o status legal do aborto é um importante indicador da capacidade das mulheres em desfrutar seus direitos reprodutivos. Assim, é possível avaliar quais nações protegem e quais negam a liberdade reprodutiva feminina. Em 2015, por exemplo, o estudo aponta que, na América do Sul, o aborto é proibido por países como Brasil, Chile, Paraguai, Venezuela e Suriname. Apenas Guiana Francesa, Guiana e, recentemente, Uruguai permitem a prática sem restrições. “O Brasil é, sem dúvida, um dos países ocidentais mais atrasados em termos de lei de aborto”, afirma Luciana.

Na contramão do continente sul-americano, o ex-presidente uruguaio José Mujica deu um grande apoio para a legalização da prática no país. Aprovada em 2012, a lei permitiu que todas as mulheres obtivessem o direito de abortar, desde que passassem por uma ampla avaliação médica, com consultas com assistentes sociais, psicólogos e ginecologistas, assim como um momento de reflexão, conhecido por “cinco dias de reflexão”. O argumento do governo era a de que, com maior educação entre as gestantes e os métodos corretos, a saúde da mulher seria preservada e, ao contrário do senso comum, abortos poderiam ser evitados.

Os resultados apareceram. Dados do governo mostram que, no primeiro ano de vigência da lei, foram feitos 6.676 abortos sem a morte da mãe. Em apenas 50 casos (0,007%) houve complicações leves. De 2013 a 2014, o número de uruguaias que decidiram levar adiante a gravidez após solicitar um aborto legal cresceu 30%. “A legalização do aborto é uma reivindicação histórica das mulheres”, diz Djamila Ribeiro, secretária-adjunta de Direitos Humanos de São Paulo. “Respeitar seu direito de escolha e garantir condições dignas para ela poder exercê-lo é essencial para sua autonomia.” (Leia trechos da entrevista abaixo).

“Nunca é uma escolha fácil”
Três perguntas para Djamila Ribeiro, pesquisadora na área de Filosofia Política e secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo

Por que é tão complicado tratar o aborto como questão de saúde pública no Brasil?
A legalização do aborto é uma reivindicação histórica das mulheres, porque o que está em jogo é a saúde daquelas que não têm acesso à informação, apoio e serviços. É uma questão que prejudica, principalmente, as mulheres de baixa renda. Respeitar o direito de escolha da mulher e garantir condições dignas para ela poder exercê-lo é essencial para sua autonomia. A criminalização do aborto não significa que as mulheres não vão fazê-lo, mas que o fazem sem os cuidados devidos.

Por que a religião está tão presente nessa discussão?
É preciso entender que o Brasil é um estado laico, então tem de existir imparcialidade na gestão pública e a crença religiosa não pode influenciar. As pessoas podem ter qualquer crença ou religião, mas isso não pode ser levado em consideração quando o assunto são políticas públicas.

Por que existe a crença de que a legalização poderia banalizar a prática?
Pensar que a prática do aborto poderia ser banalizada com a sua legalização é ignorar todo o contexto que leva uma mulher a realizá-lo. Não se trata de um tipo de método contraceptivo. Nenhuma mulher faz um aborto porque quer. A mulher que decide fazê-lo está inserida em uma situação específica e essa nunca é uma escolha desejada ou fácil.

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