Publicado 28 de Julho, 2016
Por Rede Feminista de Juristas
Patrícia Mannaro
Procuradora Municipal, membro da Comissão de Direitos Humanos - OAB/SP, membro da REDE Feminista de Juristas
No ano do décimo quinto aniversário da Lei 10.948 de 05/11/2001, do Estado de São Paulo (que trata das penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual), nada temos a comemorar. Isso porque ainda temos que nos deparar com um conceito de Direitos Humanos às avessas, apesar de uma vasta coletânea legislativa internacional que visa à criminalização da homofobia e à proteção à orientação sexual e identidade de gênero.
Diante de um Estado Democrático de Direito, onde nos é assegurado a igualdade de direitos dentro de uma sociedade garantista, não podemos e não devemos nos calar diante do incoerente “Estatuto da Família”, Projeto de Lei 6583/13. Além de excludente e preconceituoso, esse projeto ignora premissas máximas de nossa Magna Carta, como os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da laicidade estatal. Claramente, o conceito de núcleo familiar fechado, moralista e heteronormativo ali previsto segrega âmbitos sociais de crianças que não estejam inseridas nesse contexto, preterindo àquelas, e se distanciando da extensão normativa que cria reconhecimentos e direitos sociais.
Após inúmeras discussões, o projeto fora aprovado em meados de outubro do ano findo pela comissão especial do Estatuto da Família, formada por uma base política fundamentalista religiosa, vinculada e articulada pelo Deputado Eduardo Cunha, tramitando em caráter conclusivo, devendo seguir ao Senado durante este ano. O projeto tem em seu corpo a definição de família como sendo a união entre homem e mulher, excluindo a união homoafetiva, monoparentais, dentre outras formas familiares possíveis.
Não podemos ignorar que o conceito de família é cada vez mais plural, pois os núcleos criados não estão mais vinculados exclusivamente ao matrimônio, e sim aos laços de afetividade. Essa nova concepção, que retrata a realidade mundial, veio estabelecer o reconhecimento ao núcleo familiar como algo mais abrangente, recepcionando famílias homoafetivas, famílias monoparentais, adoções, a paternidade socioafetiva, famílias de casais inférteis, os vínculos de tutelas e curatelas, e outras diversas formas de relações familiares com vinculação afetiva.
Não há qualquer argumento jurídico plausível para retirar de quaisquer dessas entidades familiares o status de família e não conceder a elas de forma irrestrita todos os direitos abarcados por entidade familiar, previstos na Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente, e demais legislações vigentes.
O moralismo social e recalque fundamentalista religioso não podem, dentro de um Estado Democrático de Direito e, portanto, laico, legislar de forma excludente e desigual dentro de um conceito de afetividade familiar.
A compreensão socioafetiva das relações familiares é a base do Direito de Família moderno e não pode ser ignorado, pois devemos superar o dogmatismo acrítico do modelo monolítico e excludente, para dar vazão à aplicabilidade constitucional ampla, beneficiando os laços afetivos sobre a relação axiomática pungente equivocada de família heteronormativa exclusiva.
O conceito restritivo de família agride de forma visceral o art. 227, CF, visto que retira de crianças e adolescentes que não se enquadram nesse moralismo espúrio e preconceituoso direitos e garantias que devem ser absorvidas de forma plural e igualitária. A aprovação desse projeto pelo Senado criará uma lesão jurídica sem precedentes, autorizada pelo próprio Poder Público.
A limitação do conceito de família, além e temerário, é imoral, pois fechar os olhos juridicamente a esse retrocesso é negar proteção a todas as estruturas familiares presentes na sociedade moderna. E o uso de mecanismos jurídicos que supostamente visariam à concessão de direitos e garantias rasga as bases constitucionais às vistas dos próprios operadores do direito.
Dignidade humana é o direito do ser humano, como bem asseverou Kant, e esse direito está inserido no contexto de laços familiares. De acordo com o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), “Direito de Família, assumiu como seu núcleo axiológico, a pessoa humana como seu cerne a dignidade humana. Isso significa que todos os institutos jurídicos deverão ser interpretados à luz desse princípio, funcionalizando a família à plenitude da realização da dignidade e da personalidade de cada um de seus membros. A família perdeu, assim, o seu papel primordial de instituição, ou seja, o objeto perdeu sua primazia para o sujeito. Seu verdadeiro sentido apenas se perfaz se vinculada, de forma indelével, à concretização da dignidade das pessoas que a compõe, independentemente do modelo que assumiu, dada sua realidade plural na contemporaneidade”.
Ressaltamos que o Estatuto da Família exclui várias entidades familiares, em termos numéricos. Conforme dados do IBGE de 2014, só na região Sudeste há 32.202 casais homoafetivos, seguida pela Nordeste, com 12.196 casais. A Região Norte contava com 3.429; seguida pela Centro-Oeste, com 4.141. A Região Sul tem pouco mais de 8 mil casais homossexuais. Ou seja, falamos em mais de 60 mil casais homossexuais, identificados e declarados que não possuem respaldo jurídico algum, segundo esse projeto de lei (sempre lembrando que existem casais que ainda não se declaram).
O discriminatório Estatuto, de súbito, apresenta-se contrário à jurisprudência atual e ao entendimento do próprio STF que já reconheceu a União Homoafetiva em seus julgados recentes. No mesmo sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assegurou o direito ao casamento homoafetivo, e nossos Tribunais tem se inclinado em muitos casos ao direito constitucional de adoção por casais homossexuais, baseados inclusive, no art. 1º da Lei 12.010/09 (garantia à convivência familiar) e art. 43 do ECA.
A instabilidade jurídica causada por esse projeto vem por criar novamente lesão a direitos adquiridos juridicamente por casais homoafetivos, protegidos pela Constituição Federal, além de causar uma segregação social e danos irreparáveis a crianças que crescem em núcleos familiares dessa natureza, estigmatizando-as e impedindo o reconhecimento social e jurídico às suas famílias.
Caso esse projeto seja aprovado pelo Senado, a resposta que o Estado transmitiria é o não reconhecimento legal de núcleos comprovadamente existentes, tornando uma grande massa da população invisível ao manto da justiça, descumprindo de forma leviana as premissas de nossa lei maior, impingindo rupturas severas na contextualização dos direitos e garantias fundamentais.
Ao ser questionado sobre a elaboração do Estatuto, o Deputado Anderson Ferreira (PR-PE), alega que não existe homossexual cristão. E assim, continuamos usando a fé para dirimir direitos fundamentais. Ignoramos o Estado Laico, ignoramos a diversidade religiosa em nosso país, composta de inúmeros credos, ignoramos os direitos dos núcleos sociais com vínculos de afetividade e receptividade das famílias LGBTs, e usamos o poder para disseminar segregação. Retrocedemos na seara dos Direitos Humanos aos arrepios de uma normatização vergonhosamente preconceituosa, que suja de sangue, incita o ódio.
É essa sociedade nociva que queremos?
Aos arrepios de uma legislação coerente e legalista, fica evidente que o problema que aqui se apresenta, não é normativo, é fundado em preconceito, preceito esse excludente e proibitivo em nossa legislação.
Devemos fundar as bases do Estado Democrático de Direito no igualitarismo, a todas as famílias e que nossa Constituição seja respeitada e se sobreponha ao fundamentalismo religioso e arcaico, que desrespeita as próprias leis formadoras de nosso Estado.
Legislação brasileira pertinente para consulta: Projeto de Lei Estadual – 26 de Maio de 1999 – Bahia, Lei Estadual 3406 de 15 de Maio de 2000 – Rio de Janeiro, Lei Estadual 11872 de 19 de Dezembro de 2002 – Rio Grande do Sul, Lei Estadual 2615/2000 – Distrito Federal, Lei Estadual 14170/02 – Minas Gerais, Lei Estadural 10948/01 – São Paulo, Decreto 55.589/2010 – Regulmenta a Lei 10948/2001 – São Paulo, Lei Estadual 3.157/05 – Mato Grosso do Sul, Lei Estadual 5431/04 – PI, Constituição do Estado do Pará, Lei Estadual 6971/2007 – Pará, Lei Estadual 7309 – Paraíba, Emenda constitucional Nº 23/2001 – Alagoas, Lei Estadual 8444/2006 – Maranhão, dentre outras.
Este texto reflete a opinião da Autora, baseado em pesquisas e estudos científicos sobre o Estatuto da Família, com algumas alterações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário