Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

quarta-feira, 20 de julho de 2016

QUANDO ESCOLHER É UM DIREITO

O ABORTO É PERMITIDO NO BRASIL EM TRÊS SITUAÇÕES, ENTRE ELAS O ESTUPRO. MESMO ASSIM, A MAIORIA DAS MULHERES  DESCONHECE O SERVIÇO, E GRANDE PARTE DOS MÉDICOS SE RECUSA A FAZER O PROCEDIMENTO. EM SANTA CATARINA, A SITUAÇÃO É AINDA MAIS GRAVE. EM 2015 O ESTADO REGISTROU 38 INTERRUPÇÕES LEGAIS DE GRAVIDEZ FRENTE A 1.704 NO PAÍS

Há três nomes fictícios nesta reportagem, Tamara*, Patrícia* e Laudelina*, para  preservar a identidade das entrevistadas.

Dois deles são de mulheres que influenciaram a luta pelos direitos femininos no  Brasil: Laudelina de Campos Melo e Patricia Rehder Galvão (Pagu)

Laudelina* não quis parir um filho com quem iria compartilhar o próprio pai. Rejeitou uma gravidez resultante de uma série de estupros cometidos dentro de casa que colocaria no colo dela um filho-irmão. A jovem de 24 anos natural do Maranhão reagiu a uma realidade que, infelizmente, é comum no país: ser violentada sexualmente por pessoas próximas. Conforme dados de 2014 do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea), 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos da vítima.

– Por ser interior, é costume lá. Eu tenho uma prima que engravidou do pai. Todo mundo olha para a criança e diz: ah, é a tua cara! Todo mundo se parece lá. [Denunciar] não dá em nada. Teve uma mãe que denunciou, e a família expulsou de casa.

Cansada de ser abusada, fugiu para Santa Catarina na companhia de uma prima. Depois de um ano estudando segurança do trabalho, trabalhando em um restaurante e construindo nova vida em Florianópolis, voltou à cidade natal no Nordeste para visitar a mãe acamada. Foi, então, novamente estuprada pelo pai. Preferiu, mais uma vez, esquecer o sofrimento longe dali e não procurou a ajuda que poderia livrá-la de doenças sexualmente transmissíveis e da gestação. Paralisou de medo e vergonha.

Para desespero de Laudelina*, em novembro do ano passado a menstruação atrasou. Testes de farmácia e sanguíneo comprovaram a gravidez, fruto da relação incestuosa. A mesma certeza tinha em relação à gestação: nenhuma outra opção além de não ter a criança a tranquilizava. Lembrar a concepção daquele ser que crescia em seu ventre era como se fosse violentada mais uma vez.

– Quando a gente toma essa decisão, a gente tem medo de ser criticada pelos outros. Porque eu sou de família católica. É uma coisa que eles não aceitam. Você pode ser mãe solteira, mas abortar, nunca. Preferem te humilhar a vida toda do que te apoiar em uma decisão que vai te fazer feliz.

Até a 18ª semana, já com uma barriga saliente de quase cinco meses, pensou em procurar clínicas clandestinas de aborto. Mas, mesmo sem conhecer amplamente seus direitos, instintivamente mudou de ideia. Não queria correr o risco de morrer por algo que não teve culpa e encorpar a estatística que coloca o aborto como a quinta causa de mortalidade materna no Brasil, conforme o Conselho Federal de Medicina. O Sistema Único de Saúde (SUS) carrega o peso desse número ao realizar cem vezes mais procedimentos pós-aborto do que abortos legalizados há três anos.

– Fui no postinho e me encaminharam para cá [Hospital Regional de São José], direto na maternidade. Pelo apoio que não tive com a minha família e tive com eles, decidi que era a coisa certa a fazer. Claro que lembro que era uma criança, que não tinha culpa de nada. Mas eu não ia conseguir olhar para essa criança e saber que é meu irmão-filho, não ia conseguir amar uma criança que eu não quis  – diz a moça.

Laudelina* é uma das cinco mulheres que abortaram de maneira legal uma gestação forçada no Hospital Regional de São José, na Grande Florianópolis, desde que a unidade de saúde aderiu ao programa de interrupção de gravidez dentro da lei, em 2012. Duas filhas que eram mantidas em cárcere privado pelo próprio pai, em Rio Negrinho, também puseram fim à gestação violenta no mesmo local. No caso mais recente, em junho deste ano, outra moça violentada pelo padrasto evitou um filho não desejado.

Desde 1940, o artigo 128 do Código Penal Brasileiro isenta de punição o médico que realizar aborto para salvar a vida da gestante ou se a gravidez resultar de estupro. Mais recentemente, em 2012, casos de anencefalia fetal também foram incluídos nesse rol em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Mas é a lei 12.845, de agosto de 2013, que orienta o atendimento dos profissionais de saúde no serviço público focado na interrupção da gestação dentro dos meios legais. A padronização da assistência e dos procedimentos adotados nesses casos é definida em duas normas técnicas do Ministério da Saúde: Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes e Atenção Humanizada ao Abortamento.

A reportagem do Diário Catarinense esteve nas quatro instituições referenciadas para realizar o aborto previsto em lei no Estado: Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis; Hospital Regional de São José Dr. Homero Miranda de Gomes; Maternidade Darcy Vargas, em Joinville; e Hospital Santo Antônio, em Blumenau. Em todos eles, a maior parte dos poucos casos de aborto já realizados tem origem no estupro, conforme dados dos próprios hospitais. Os órgãos de saúde catarinenses não têm um banco de dados que centralize as estatísticas de aborto. A transparência não é o forte em relação aos dados públicos sobre o aborto, que acabam restritos a algumas entidades em nível nacional.

Pouquíssimos médicos alocados nas unidades referenciadas em Santa Catarina iniciam o atendimento das vítimas de violência sexual que não querem levar a gestação adiante em razão do trauma sofrido – no Regional de São José, por exemplo, só dois fazem frente a uma equipe composta por 40 médicos. Os que se recusam se apoiam na chamada objeção de consciência, garantida pela legislação médica, em que podem alegar questões religiosas, morais e éticas – argumentos que dificultam a efetivação de um direito das mulheres. O cenário, que se repete no país, é agravado pela falta de divulgação do aborto legal, que tira o aspecto público e social de uma política que não chega a quem precisa.

Ultrapassado o muro do silêncio em relação à denúncia, as vítimas têm de encontrar amparo praticamente sozinhas, porque não há sequer uma cartilha que mencione a interrupção de gestação como uma possibilidade legalizada.

Os três casos em que o aborto pode ser feito
Aproximadamente 7% dos casos de estupro resultaram em gravidez no ano de 2011 no Brasil. A estatística, que é a mais recente, foi levantada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Se a porcentagem parece pequena, o mesmo estudo ainda escancara o problema: 67,4% dessas gestantes que carregam filhos de um abuso não tiveram acesso ao serviço de aborto legal – mesmo a mulher podendo ser atendida em qualquer estabelecimento público de saúde que possua obstetrícia, conforme nota enviada pelo Ministério da Saúde.

Em Santa Catarina, esse contexto é mais grave. No ano passado, a Secretaria de Segurança Pública registrou 2.292 casos de estupro consumados. Seguindo a tendência apontada pelo Ipea, é provável que 160 mulheres tenham engravidado a partir dessas violências. Mas o Ministério de Saúde só registrou 38 abortos legais no Estado, frente a 1.704 em todo o país. Dessa forma, é possível estimar que 76,25% das mulheres possivelmente tenham ficado sem acesso à interrupção da gravidez indesejada.

A primeira justificativa para isso está dentro do próprio hospital. A maioria dos médicos se recusa a iniciar o aborto legal. Eles alegam objeção de consciência por motivos pessoais, éticos e, principalmente, religiosos. No Hospital Regional de São José, por exemplo, apenas 5% do corpo clínico faz a interrupção da gestação decorrente de estupro.

– Dos quase 40 médicos, só dois iniciam o procedimento. Eu não sei se esses que fazem vão estar lá sempre. Mas uma vez iniciado, tem que ir para frente, porque é um risco para a paciente – detalha o médico responsável, Rodrigo Dias Nunes.

A dificuldade é evidente na avaliação do ginecologista responsável pelo serviço na Maternidade Darcy Vargas, em Joinville, Valdir Martins Lampa:
– Para a vítima, isso pode ser uma emergência, mas para nós é considerado eletivo. Nós ainda temos que procurar o médico que possa oferecer esse trabalho. Mesmo como diretor técnico eu não tenho como obrigar ninguém a fazer isso.

A ginecologista Tamara* é outra que se abstém. Apesar de reconhecer o direito das mulheres, fica claro o desestímulo em seu discurso:
– Pela minha convicção religiosa, eu não me sinto à vontade para fazer. É ela que quer interromper essa gravidez. Não concordo, talvez porque dentro da nossa lei ou da maneira com que é conduzido, é alguém da equipe de saúde que vai matar esse bebê. Ela poderia receber a medicação e fazer. Muitas vezes, o fato de ela não precisar fazer tira a culpa dela de estar provocando esse aborto.

A plantonista, que prefere não ser identificada, não se opõe à prática quando se trata de risco de morte materna e anencefalia do feto:
– Fico muito mais tranquila, porque aí penso que esse bebê realmente não tem chance [com anencefalia]. Eu só estou dando a oportunidade à mãe de não precisar adiar esse luto. E no risco de morte da mãe, normalmente não é uma indicação médica absoluta. O casal tem que ajudar nessa decisão.

Tamara* atua com Patricia* no plantão da maternidade em um dos hospitais catarinenses referenciados para o atendimento. Justamente porque uma faz o aborto, e a outra não. A ginecologista Patrícia*, que igualmente mantém a identidade em sigilo, lamenta que sua postura própria seja minoria no quadro de médicos que atende mulheres violentadas:
– O estupro é uma agressão muito grande para a mulher. Deixá-la por nove meses com um fruto dessa agressão extrema é algo que nenhuma mulher merece. Não dá para as nossas convicções pessoais interferirem nisso. Porque é legal. Respeito [quem alega objeção de consciência], mas às vezes eu considero hipocrisia.

Enquanto os médicos apresentam maior resistência, é entre o restante da equipe multidisciplinar que a mulher encontra amparo. A assistente social de Joinville Zaira Alchieri, que - acompanhada de uma psicóloga - faz a acolhida inicial das mulheres da região Norte, rebate a objeção de consciência ao lembrar que toda a documentação exigida tem valor legal e, portanto, resguarda os profissionais.

– É um atendimento superimportante para a mulher, que chega com um sofrimento bastante grande. Isso é algo que deve ser indiferente dos meus valores. Não interessa se eu sou católica. Eu tenho que atender. Nós, profissionais da saúde, não temos o direito de julgamento.

Outra provável explicação para o baixo número de procedimentos no Estado está na pouca – ou nenhuma – divulgação nos hospitais.

– Nosso maior desafio hoje é a baixa incidência de procura. Quisera fosse porque tem pouca gestação por estupro, mas a gente sabe que não é. O que impede é a desinformação. As pessoas não sabem que isso existe. A divulgação é uma coisa cheia de melindres, porque o Estado não quer dizer que tem uma política de aborto. E aí nós trabalhamos muito aquém da nossa capacidade. Mas precisamos trabalhar o tema com todas as pessoas da unidade de saúde, porque essa mulher circula em todos os espaços  – conta Salete Marques Dias,  assistente social do Regional de São José, que trabalha com o tema há 20 anos em Santa Catarina.

Falta serviço estruturado em Santa Catarina
Apesar de Santa Catarina ter quatro hospitais-referência para atendimento de aborto legal, não existe uma ala ou um setor destinados à interrupção de gestação nas instituições. Também significa que a mulher violentada concorre com gestantes e parturientes, por exemplo, já que costumeiramente é atendida na emergência da maternidade. Há, inclusive, quem tenha receio até de pronunciar a palavra aborto, mesmo que trabalhe com isso. Os casos de abortamento legal que envolvem estupro são encaminhados pelos centros de atenção às vítimas de violência sexual — mantidos no hospital ou prefeituras em postos de saúde — e executados por equipes de plantão nas maternidades. Outro agravante é que os hospitais concentram-se no litoral, Vale do Itajaí e Norte do Estado, deixando desassistidas as regiões Sul, Meio-Oeste e Oeste.

No Hospital Universitário da UFSC, onde de duas a três vítimas de violência sexual são atendidas por mês, está o serviço estruturado há mais tempo. Psicólogas, assistentes sociais, enfermeiras e médicas acolhem mulheres abusadas em um processo que dura cerca de três horas. As gestações são interrompidas com no máximo 19 semanas, e não 22, como diz o Ministério da Saúde. Desde 2005, profissionais do HU ouvem os relatos de violência, recolhem a documentação necessária e marcam o aborto, que é feito por indução medicamentosa ou aspiração na Emergência da maternidade. Em 2014, quando se estruturou a Rede de Atenção Integral às Vítimas de Violência Sexual (Raivs) no HU, o número de interrupções por estupro foi o maior: 12.

– Recebemos até pacientes de outros Estados. Todos atendem para que não fique mistificado, por exemplo, que a Lígia é a enfermeira do abortamento. Porque a gente já tem esse título, tá? Há a objeção de consciência para o ato em si, dentro da sala de parto, não para o acolhimento – observa a enfermeira responsável pelo serviço, Lígia Dutra.

Após o procedimento, a paciente pode ficar em observação e recebe apoio psicológico por até seis meses. O atendimento, que vem junto com consultas médicas agendadas no hospital, pode continuar por quanto tempo a paciente quiser. A médica ginecologista da rede do HU, Emarise Paes de Andrade, reforça a importância do acompanhamento:
– A paciente tem necessidade também psicológica. Muitas têm dificuldade até de fazer o exame físico. Precisamos acolher e mostrar que no momento que acaba o abortamento não acaba a vida dela. Elas voltam para as consultas, e não para novos abortos. O bom atendimento torna a paciente uma disseminadora pelo fato de ela se proteger mais.

Esse pós-atendimento não é garantido no Hospital Regional de São José, cuja Comissão de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual, estabelecida em 2007, não dispõe de ambulatório para oferecer o serviço. O hospital só aderiu ao programa Aborto Legal em 2012, conforme lembra o médico ginecologista responsável Rodrigo Dias Nunes, que contabiliza cinco procedimentos abortivos desde então.

– Ao longo do atendimento, essas pacientes são sempre estimuladas a não abortar, porque podem se arrepender – fala Rodrigo, que alega objeção porque é espírita.

Princípios pessoais também tendem a guiar a atuação dos profissionais dos outros dois hospitais catarinenses credenciados para o aborto legal. Em Blumenau, as vítimas são inicialmente atendidas na Policlínica de Referência e Especialidades Lindolf Bell, que faz um filtro.

– Atendemos vítimas de estupro. O abortamento é só um braço do atendimento. Espero que elas não venham aqui porque engravidaram, mas porque sofreram violência sexual, porque temos uma capacitação especial focada nisso – contextualiza o médico do posto, Gerson Mattos.

Quando confirmada a necessidade de interrupção da gestação, elas são levadas até o Hospital Santo Antônio, distante seis quilômetros dali, onde dois médicos foram capacitados, mas apenas um atua hoje. Entre 2006 e 2016, houve quatro abortamentos previstos em lei provocados por violência sexual, conforme a Secretaria Municipal de Saúde. Um caso foi negado, e o hospital alegou divergência de informações.

Apesar de tampouco dispor de centro de atenção à vítima de violência sexual e depender das prefeituras para essa triagem inicial e acompanhamento posterior, a falta de boletim de ocorrência para comprovar o estupro é o aspecto que mais incomoda os profissionais que atuam em casos de aborto legal na Maternidade Darcy Vargas, em Joinville, embora o B.O. não seja necessário desde 2005 por meio de norma do Ministério da Saúde. Nessa unidade, foram cinco casos atendidos pela equipe, que atua desde o fim de 2014 e conta com 22 médicos (10 com objeção de consciência).

– O que mais nos assusta é a maneira como as coisas se apresentam, ou seja, não precisa nenhuma autorização judicial, boletim de ocorrência, nada. Somente o relato da vítima. Será que nós estamos atendendo uma pessoa que foi realmente violentada? Nossa preocupação é de que é algo legal, que não deveria ser tão legal assim – explica o ginecologista responsável pelo serviço de aborto legal da Maternidade Darcy Vargas, Valdir Martins Lampa.

Estado reconhece falha na divulgação do programa
A coordenadora das Políticas de Saúde da Mulher da Secretaria de Estado da Saúde, Maria Simone Pan, lembra que a objeção de consciência para o aborto legal e qualquer outro procedimento é um direito da classe médica. Mas ela reforça que cabe ao médico objetar, não ao hospital:
— Não tem como obrigar ninguém a fazer. O que tem que ficar claro é que a objeção é do profissional, não da instituição. O profissional não está acima da instituição.

Ela acrescenta que a secretaria nada tem a fazer a respeito. Já em relação à divulgação, Maria Simone reconhece falhas e afirma que o órgão estadual depende do apoio dos meios de comunicação.

Religião influencia, assume CRM
A conselheira do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC) Sheila Koettker Silveira diz que não há uma solução para a questão da objeção de consciência.
– Porque isso é uma coisa de cada pessoa. O médico tem direito de se negar a fazer o aborto se ele acredita que aquilo vai contra os seus princípios éticos.

Sobre a religião, a representante do CRM-SC também acredita que exerça influência nas escolhas dos profissionais.
– Algumas decisões o médico vai tomar com base naquilo que ele acredita.

Ela, que é médica ginecologista do HU da UFSC, reconhece que o assunto não é muito discutido entre os médicos.

Mulheres não podem temer cadeia ou morte

Há apenas 37 serviços de referência para o aborto legal em funcionamento em todo o país. Em sete Estados, não há nenhum ativo. Há 15 deles que realizaram menos de 10 procedimentos nos últimos 10 anos, mesmo que quatro deles estivessem localizados em capitais e fossem os únicos da região. Para a antropóloga Débora Diniz, os dados revelam uma violência institucional que é perpetuada por quem deveria acolher as mulheres vítimas.
– O aborto já é um evento reprodutivo comum na vida das mulheres. A Pesquisa Nacional do Aborto mostrou que uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez pelo menos um aborto no Brasil. Atentar a esse dado é reconhecer que as mulheres precisam ter condições de tomar suas decisões reprodutivas sem temer cadeia ou morte – contextualiza Debora, também vinculada ao Anis, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

A médica catarinense Halana Faria, que atuou em 2015 no primeiro hospital do país a realizar o aborto legal, o Hospital do Jabaquara, endossa o que Débora chama de “regime de suspeição à história da violência sofrida pela mulher”.
– Quando a mulher consegue encontrar um profissional capacitado e ele está no seu dia de plantão, ela ainda passa por um verdadeiro interrogatório institucional. Os profissionais de saúde precisam entender que não são polícia e não precisam ficar tentando determinar se aquilo que ela está falando é verdade ou não — diz Halana.

A garantia do aborto legal em caso de estupro está diretamente relacionada à manutenção da sanidade da mulher estuprada, conforme analisa a secretária-executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, Clair Castilhos:
– A questão da saúde mental é básica, e não só na gravidez resultante de estupro, mas em qualquer uma. Porque às vezes a mulher quer o filho, teve um aborto espontâneo, chega ao hospital para fazer a curetagem, eles partem do princípio de que foi um aborto provocado e ficam acusando a mulher. Elas precisam ser atendidas de forma adequada, humanizada e competente, porque esse contexto é efetivamente um problema de saúde pública. O aborto é um dos maiores determinantes da mortalidade materna, principalmente daquelas que interrompem de forma clandestina.

Além de os órgãos de saúde divulgarem mais um serviço que é legal e de a categoria médica discutir a questão da objeção de consciência, fica clara a necessidade de se criar estratégias mais pragmáticas. Estabelecer, em editais de seleção de profissionais nos hospitais públicos, a necessidade de fazer o aborto legal é uma possibilidade. Em Belém do Pará, a medida surtiu efeito, e o Estado do Norte apresenta número razoável de procedimentos: 279 de 2012 a 2015. A médio e longo prazo, a virada também pode estar nas universidades: preparar profissionais de saúde empáticos à saúde da mulher.

Projeto em tramitação no Congresso quer tornar crime o aborto legal

A mulher que deseja interromper uma gravidez decorrente de violência sexual é uma mentirosa. Esse é o pensamento dos autores do projeto de lei 5.069 de 2013, que torna crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante ao aborto. O texto teve parecer aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados e, em defesa, o então presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), disse que “sem medo da polícia, (elas) atravessam portas de hospitais, inventam histórias descabidas de estupro e pedem o direito ao aborto legal”.

Ao tentar impor barreiras no acesso aos serviços de abortamento nos três casos permitidos em lei, o Poder Legislativo mostra desconhecimento acerca de uma realidade que já é inóspita para as vítimas.
Para a psicóloga e mestra em Ciências da Religião da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, Rosângela Aparecida Talib, o avanço do projeto de lei é uma reação ao texto sancionado em 2012 que dá base ao atendimento que é, ainda que minimamente, prestado em hospitais públicos brasileiros.

 - A (presidente afastada) Dilma sancionou a lei que diz que todos os hospitais públicos devem atender as vítimas de violência sexual, incluindo o aborto legal quando necessário. Isso gerou um protesto imenso na Câmara com a frente parlamentar pela vida e antiaborto. Eles dizem que essa lei institucionaliza o aborto no Brasil. Era bom se fosse, né? Não é uma questão religiosa, é uma questão de saúde pública que tem recorte social, uma vez que afeta mais as mulheres pobres e negras. Essa aura da criminalização é um impeditivo muito grande.

Santa Catarina aparece nas últimas posições em ranking de abortos legais realizados no Brasil

São Paulo lidera a lista de realização do procedimento legal nos últimos quatro anos. Santa Catarina aparece nas últimas posições desde 2012. No ranking abaixo, aparecem os três estados do Sul e o Estado mais populoso das outras regiões Sudeste, Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

"Eles inventam milhares de mentiras para não atender"

ENTREVISTA
OSMAR RIBEIRO COLÁS
coordenador do projeto Mais 30, do Ministério da Saúde
Em passagem por SC, Osmar Ribeiro Colás, coordenador do projeto Mais 30, do Ministério da Saúde, que projeta criar 30 novos serviços de aborto legal no país, conversou com a reportagem do Diário Catarinense sobre o desafio de implementar serviços para o atendimento de interrupção da gestação nos casos previstos em lei nos hospitais brasileiros.

Como foi estruturado o programa Aborto Legal no Brasil?
Em 1989, o movimento feminista quis montar um programa de atendimento oficial, público, para a realização dos abortos nos casos previstos em lei. Principalmente nos casos de estupro, que a lei de 1940 já dizia que a mulher tinha direito. Como nós tivemos uma prefeita feminista em São Paulo [Luiza Erundina], foi muito fácil criar um documento que teoricamente obrigava todo hospital do município a realizar o procedimento. Então começou lá no Jabaquara [Hospital Arthur Henrique Saboya]. Foi difícil, levou muito tempo. Nós, eu e o doutor Jorge Andalaft [Neto], fizemos o primeiro aborto legal em junho de 89. Dentro da prefeitura, propus que todos os hospitais fizessem o treinamento e eles fizeram, mas isso não era suficiente.

Por quê?
Porque infelizmente nós temos um vício, em que os diretores dos hospitais acham que o hospital é deles. A gente cobrava e eles diziam assim: “no meu hospital não vai ter isso”. Isso continua até hoje. Nós brigamos muito para implantar. Existem leis que dizem que todo hospital deveria atender violência sexual da mesma maneira com que atendem uma gripe. Deveria ser normal. Não é assim, parece que eles têm resistência. Os gestores preferem fazer de conta que não há lugar para atender e que não há médicos que querem atender. Isso é uma mentira, porque não precisa de lugar para atender, não precisa de material, e nós, enquanto gestores, temos maneiras de seduzir o médico a fazer isso, nem que seja pagando horas suplementares. Os gestores não fazem porque não querem.

E como foi o primeiro aborto legal que o senhor atuou?
Foi de uma freira, em 1989, lá no Jabaquara. Ela foi estuprada por três homens e chegou no hospital pela psiquiatria, porque ela estava com tendências suicidas. Qualquer pessoa pode passar por isso. Eu não esqueço mais disso. Fiquei mal. Também fui parar na psicóloga. Porque eu pensei: “será que estou fazendo certo?” E depois ela chegou para mim e disse: “doutor, o senhor salvou a minha vida”. Aí ela me fez enxergar tudo de maneira diferente. A lei dos homens, a lei do diretor do hospital, a lei do médico não podem recriminar ou permitir que essa mulher sofra.

O que pensa sobre a objeção de consciência?
Objeção de consciência é um direito, só que tem alguns vieses que nós precisamos levar em conta. Se diz “eu sou contra o aborto porque eu acho que é tirar uma vida”, eu respeito. Mas seguindo essa lógica, se for com você, você também não vai fazer. Se for a sua filha com risco de morte, você também não vai fazer. Porque você está protegendo o feto. Em caso de má-formação ou risco de vida materna eu faço, mas por estupro eu não faço? Isso, na realidade, é porque você está rotulando o estupro e o aborto por estupro como duvidoso. E essa dúvida nós sabemos qual é. É aquela dúvida machista, que diz que a mulher mente que foi estuprada para fazer o aborto. Eu respeitaria a objeção de consciência se ela fosse integral. Para quem alega só em caso de estupro, significa que o feto tem valor em algumas situações, mas em outras, não. Essa objeção de consciência é falha e discutível. Nos casos de aborto legal, o médico pode escolher não fazer, mas o serviço tem a obrigação de encontrar outro que faça. Então a objeção de consciência não é de serviço. Diretor de hospital não tem direito à objeção de consciência. Chefe de ginecologia não tem objeção de consciência. Isso que é o ético. Infelizmente isso não acontece. Nós, que visitamos esses locais, vemos que eles inventam milhares de mentiras para não atender.

As capacitações são o caminho para que se avance na garantia desse direito?
Programas são desenvolvidos quando temos a sorte de ter pessoas sensíveis à causa, como o nosso projeto que capacita os alunos de 30 hospitais universitários. Posso garantir para você que os alunos não são tão resistentes. São professores, diretores de hospital que fazem isso. Infelizmente os nossos gestores, todos eles, são totalmente despreparados. Deveria haver uma cartilha. Sabemos que o [ex] presidente da Câmara fez lobby contra o processo para descriminalizar o aborto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário