Em projeto que afasta a guarda do filho de agressor, deputado Flavinho tenta convencer mulheres a abdicar do direito de interromper a gravidez
por Ingrid Matuoka e Tory Oliveira — publicado 25/07/2016
Na terça-feira 12, durante o Seminário Internacional em Defesa da Vida, que reuniu políticos e ativistas contra o aborto, o deputado federal Flavinho (PSB-SP) apresentou o Projeto de Lei 5789/16, sob o argumento de evitar que estupradores tenham qualquer tipo de poder sobre a criança ou a mulher caso ocorra uma gravidez fruto do estupro. A princípio, uma boa intenção. Mais a fundo, outro movimento da bancada religiosa contra a interrupção da gravidez.
O PL pretende alterar a Lei 10.406/2002 e incluir a perda do poder familiar de quem “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, e decorrente desse ato ocorra o nascimento do filho”.
Em outras palavras, o PL retiraria do estuprador a possibilidade de exercer o poder familiar sobre a criança que eventualmente nasça da violência sexual. Uma justa precaução, não fosse o viés antiabortista da justificativa do projeto: “as vítimas de estupro grávidas sentiriam-se muito mais protegidas e propensas a escolher a vida”.
Atualmente, o aborto é permitido no Brasil em apenas três casos: quando a gravidez representa risco à vida da gestante, quando o feto é diagnosticado com anencefalia e em caso de estupro. Em 2014, o Brasil registrou 1.613 abortos legais, 94% por estupro.
De acordo com a pesquisa Serviços de Aborto Legal no Brasil - um estudo nacional, que analisou 1.283 prontuários de mulheres que realizaram o aborto legal em 5 serviços de cada região do país, 15% das mulheres que recorreram ao serviço de abortamento legal tinham de 11 a 14 anos e 62% entre 15 e 29.
A justificativa para o PL não apresenta, porém, qualquer dado sobre conflitos judiciais em que o pai da criança nascida de um estupro tenha solicitado a guarda do menor.
“A armadilha está em forjar um amparo de um sistema para que a mulher seja coagida a ter o filho de um estupro. Esse deputado possui já vários projetos de lei contra o direito da mulher. O que vemos é a atuação da bancada religiosas no sentido de aprovar o Estatuto do Nascituro. Como não conseguem, devido à mobilização da sociedade civil, eles buscam saídas. Esse PL é um exemplo”, afirma Ana Lúcia, da Artemis.
O chamado Estatuto do Nascituro é atualmente um dos pontos de maior inflexão entre os movimentos de mulheres e a bancada religiosa da Câmara dos Deputados. Com 29 artigos, o PL 478/2007 privilegia os direitos do feto desde a concepção e estabelece penas de um a três anos de detenção para quem "causar culposamente a morte de nascituro" e de seis meses a um ano por "fazer publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou". Com isso, o texto praticamente inviabiliza discussões sobre o tema no País.
A criminalização do aborto também permeia todo o PL 5789, apresentado pelo deputado Flavinho, bem como em outros projetos de lei apresentados pelo deputado, analisa a advogada da Rede Feminista de Juristas, Carolina Almeida. Em determinado trecho, ele descreve mulheres que decidem levar a gravidez adiante como “heroínas”. “Trata-se de uma deslegitimação das mulheres que não querem continuar a gravidez”.
A advogada da Rede Feminista afirma que o mais adequado no caso de uma gravidez em decorrência de um estupro, é que essa mulher seja acolhida e possa escolher, por ela mesma, o que quer fazer, o que é melhor para ela. “Esse PL visa só o feto, não a mulher, subjugando-a, e esquecem-se da violência psicológica e emocional que aquela mulher enfrenta ao descobrir a gravidez”.
Vítimas de estupro têm o direito de escolher
Para Eloísa Machado de Almeida, doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, não é possível analisar o PL 5789/2016 dissociado dos esforços dessa frente parlamentar mais conservadora, que busca ativamente a desconstrução dos direitos reprodutivos da mulher já estabelecidos.
Para a jurista, há um problema grave já na justificativa apresentada pelo deputado, já que ela parte da ideia de a mulher que não opta pelo aborto em caso de violência sexual está correta. Quando tal ideia é transmitida dentro do direito, explica, a consequência é criminalizar a mulher que aborta na hipótese de violência sexual.
Ela explica que, em primeiro lugar, o abortamento em caso de estupro é um direito da mulher, mas não uma obrigação. Caso ela opte por não interromper a gravidez, é possível registrar a criança sem o nome do pai e, na eventualidade do agressor solicitar judicialmente algum poder sobre a criança, também já existem mecanismos para impedi-lo.
"Não podemos cair na armadilha de que essa lei seria isenta, que pensa no melhor para a mulher e para a criança. Esses parlamentares tem um objetivo muito claro, que é desconstruir a política do aborto legal, mexendo nas poucas conquistas das mulheres", afirma a professora no programa de pós-graduação em Direito da FGV-SP.
“É uma armadilha porque você traveste o direito de autonomia da mulher com uma suposta proteção. Você diz: vamos passar esse PL em que a mulher e o filho estarão protegidos, não terão contato com o estuprador. Assim, ela não precisa abortar”, diz Ana Lúcia Keunecke, da Artemis.
Atual legislação já afasta a guarda do agressor
“É uma armadilha porque você traveste o direito de autonomia da mulher com uma suposta proteção. Você diz: vamos passar esse PL em que a mulher e o filho estarão protegidos, não terão contato com o estuprador. Assim, ela não precisa abortar”, diz Ana Lúcia Keunecke, da Artemis.
Atual legislação já afasta a guarda do agressor
Para a defensora pública Ana Rita Souza Prata, coordenadora-auxiliar do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, está clara a intenção de oferecer mais um argumento para estimular mulheres que foram vítimas de violência sexual e estão grávidas a não exercer seu direito legal de recorrer ao fim da gravidez.
“Eles argumentam que muitas mulheres fariam o aborto por medo de que o agressor depois tentasse exercer algum poder sobre ela ou o filho. Só que o Código Civil hoje, sem essa alteração proposta, já possibilita que a mulher solicite isso, caso opte por manter a gravidez e não deseje que o estuprador exerça o poder familiar”.
Justamente por não trazer nenhuma novidade – uma vez que já é possível obter essa proteção atualmente – a defensora acredita que a lei servirá principalmente, caso seja aprovada, como um marco importante para quem está tentando construir um arcabouço jurídico para posteriormente retirar as hipóteses de aborto legal previstas na legislação.
“A lei não traz nenhuma novidade porque o código civil permite que a mulher solicite a exclusão do poder familiar desse pai biológico agressor se for o desejo dela, mas traz um argumento que pode ser usado como estímulo às mulheres para que elas não abortem nesse caso - o que hoje é um direito delas”, diz Ana Rita.
Atualmente, para obter a exclusão do poder familiar do estuprador, é preciso que a mulher faça um pedido em juízo. A nova lei faria com que tal procedimento acontecesse de maneira automática. “Mas como? O Projeto de Lei não diz. Mas o direito em si, o direito material, já é possível obter hoje”, diz Ana Rita, ressaltando que a maioria dos agressores acabam por se afastar por medo de outras consequências, inclusive as penais.
Para Caroline Almeida, da Rede Feminista de Juristas, existe uma consequência prática bastante preocupante: afastando judicialmente o estuprador que gerou este filho, afasta-se dele, também, as responsabilidades de custeio. “Esse não é o caminho, porque hoje já se afasta essa pessoa como medida protetiva, e mantêm-se as obrigações, mas segundo esse projeto, ele passa a não ter deveres”.
Na análise da Diretora Jurídica da Associação Artemis, trata-se de mais um PL que trabalha pela criminalização do aborto. “A mulher não precisa de uma lei que lhe garanta que o estuprador eventualmente não ficará perto dela, ela precisa que os tratados internacionais assinados e ratificados pelo Brasil que garantem o direito a autonomia da mulher sejam cumpridos”, afirma.
Frente parlamentar contra o aborto
A luta contra o aborto é uma das principais bandeiras do missionário católico e parlamentar do PSB-SP. Eleito em 2014 com 90 mil votos, o deputado Flavinho já apresentou 89 projetos de lei e outras proposições.
Entre as mais recentes, está a sugestão de promoção de métodos contraceptivos naturais, a retirada da descrição da ocupação de profissional do sexo na Classificação Brasileira de Ocupações (COB), um pedido de suspensão do decreto 8.727, que dispõem sobre o uso do nome social e do reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transsexuais e o PL 4642/2016, que pretende dispor sobre a "prevenção e conscientização dos riscos e consequências relacionadas ao aborto".
Outro projeto de lei sobre o aborto apresentado pelo parlamentar é o 4646, cujo objetivo é tipificar o crime de "auxílio, induzimento ou instigação ao aborto". Flavinho também se posiciona contra inclusão de conteúdos que tratem sobre a discussão sobre gênero na educação.
Ele também já emitiu comentários polêmicos. Durante uma discussão sobre a criação de uma Comissão de Mulheres na Câmara, reagiu aos discursos de outras deputadas sobre a necessidade do empoderamento da mulher:
“Quem quer ser empoderada é feminista. Agora, a mulher de fato que está sofrendo não precisa de empoderamento, ela precisa ser amada e cuidada. E não venham me dizer que nós homens não entendemos de mulher. Entendemos sim. É que as senhoras muitas vezes não entendem o que é ser amada e acham que essas pessoas também não querem ser amadas como as senhoras", declarou.
Em fevereiro deste ano, o deputado do PSB também protocolou um requerimento de moção de repúdio à atuação do órgão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). O motivo seria a manifestação favorável do órgão com relação à liberar o aborto em casos de suspeita de bebês com microcefalia em decorrência do zika vírus.
Referindo-se ao governo de Dilma Rousseff, à época ainda não afastada do cargo, o parlamentar justifica a moção de repúdio afirmando que "não vamos mais tolerar as maquinações e as ações deste governo insano e doente pelo poder, nem destas organizações que querem ceifar a vida de milhares de crianças inocentes e indefesas em nossos país. Se estes bebês no ventre de suas mães não podem gritar e se defender, nós seremos o seu grito e os defenderemos com nossa própria vida se preciso for!"
Em uma postagem em seu perfil oficial do Facebook, Flavinho afirmou que a inspiração para o PL 5789 veio da ativista norte-americana Rebecca Kiessling, que advoga contra o aborto mesmo em casos de estupro.
Durante o Seminário Internacional em Defesa da Vida, marcado pelos discursos de cunho religioso, Rebecca contou sua história pessoal, afirmando que foi concebida em um estupro, e disse lutar contra o preconceito.
"Eu não merecia pena de morte por um crime do meu pai biológico. Castiguem os estupradores, não os bebês". A ativista pró-vida, também afirmou que "deve a sua vida aos legisladores e às leis" durante o evento. As palavras, escreveu Flavinho, o inspiraram a protocolar o projeto.
Na justificativa de duas páginas apresentadas pelo parlamentar para fundamentar o projeto, é citada uma lei aprovada em junho de 2015 pelo presidente Barack Obama (chamada de "Rape Survivor Child Custody Act") que retira do estuprador a possibilidade de obter a custódia da criança judicialmente.
O PL do deputado Flavinho nasceu durante o Seminário Internacional Em Defesa da Vida, que comemorava os 10 anos do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida - Brasil sem Aborto, cuja principal bandeira no Congresso é a aprovação do Estatuto do Nascituro.
Ocorrido no auditório Nereu Ramos da Câmara dos Deputados, o evento foi apoiado pelas bancadas católica e evangélica e contou com palestrantes contrários ao aborto, mesmo nos casos já permitidos pela lei brasileira. Estavam presentes, entre outros, o ex-deputado Luis Bassuma, autor do Estatuto do Nascituro e Alan Rick (PRB-AC), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família e o empresário uruguaio Eduardo dos Santos, que luta contra a legalização do aborto em seu país.
Carta Capital
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