Maior democracia do mundo e uma das mais destacadas potências emergentes, a Índia é também um dos países mais violentos no que se refere a crimes contra a mulher
Com 1,2 bilhão de habitantes, a Índia é um dos poucos países onde a porcentagem de mulheres é menor do que de homens, devido aos abortos em caso de gestação de meninas. Apesar de ser uma realidade explícita – por todo o subcontinente indiano há casas de acolhimento somente de meninas abandonadas –, a questão de gênero no país é pouco reconhecida e discutida internamente. A forma como os dados estatísticos são organizados pelo governo indiano, por exemplo, costuma confundir mais do que explicar. Segundo o relatório anual do National Crime Records Bureau, da Índia, aconteceram 33,7 mil casos de estupro, em 2013 (veja o gráfico ao final da redação). Para se ter uma ideia, no Brasil, foram 50,09 mil no mesmo ano, e a Índia é seis vezes mais populosa.
Mas, quando o assunto é estupro, é prudente considerar também os números relativos a “sequestros”, o crime violento com maior ocorrência na Índia, sugere a antropóloga Mariana Alves, que está completando o doutorado em sociologia na Índia sobre questões de gênero. “Por definição, na Índia, os sequestros são para fins de casamento, prostituição ou tráfico. Poderíamos assumir, então, que a grande maioria desses casos poderia entrar na conta de estupro, sim.”
A situação é ainda mais delicada porque, depois de violentada ou raptada, a indiana precisa ainda enfrentar o desprezo da sua comunidade e da própria família, por não ser mais “pura”. Uma questão muito forte na cultura indiana, presente já no mito de Sita e Rama, passando pela literatura e, até hoje, nas grandes produções de Bollywood (a Hollywood indiana, instalada em Mumbai, a maior cidade do país). Sita, casada com o príncipe Rama, é raptada por Ravana, rei de Lanka. Mesmo após recuperar a esposa (numa batalha descrita no épico Ramayana), Rama não a aceita mais, por ela ter sido de outro homem.
“Diversão” no campo
O sistema de castas ainda subjacente na sociedade indiana, na base do qual estão os dalits (“intocáveis”, pessoas consideradas “não respeitáveis”), intensifica ainda mais a violência contra a mulher. Um caso emblemático disso foi o espancamento e estupro coletivo, seguido de morte, de Jyoti Singh, em 2013, em um ônibus, pelo fato de ser dalit e estar “sozinha na rua” às 21h. A companhia de um amigo não bastou – aliás, ele também foi espancado, mas sobreviveu.
O caso, acontecido na capital, Nova Délhi, gerou uma onda de manifestações no país e no mundo. Os grandes centros urbanos do país, entretanto, não são o ambiente mais perigoso para as representantes do sexo feminino. É na área rural indiana que se concentra a maior parte das ocorrências de abuso. Homens das cidades vão frequentemente às zonas rurais para “se divertir com as mulheres” (leia-se violentá-las). Em meio a tudo isso, os indianos costumam apresentar como prova de que o país não é machista o fato de ter tido uma primeira-ministra antes de qualquer outro do mundo: Indira Gandhi. Mas Mariana ressalva que Indira era filha de Jawaharlal Nehru, um dos grandes líderes da independência, primeiro governante do país e que não teve filho homem.
Diante dessa realidade, Mariana procurou ir à raiz do problema. “Por que as mulheres são entendidas como objeto sexual e não agentes?” A explicação não foi encontrada na colonização britânica nem no capitalismo. “De onde vem essa moral? A questão preponderante é a religião. Isso não é só na Índia, mas em qualquer lugar do mundo”, afirma. Outra característica que se repete em todo o globo é que a maioria dos crimes contra a mulher é cometida por pessoas próximas a ela. Apesar de alguns avanços pelo mundo, a situação indiana não tende a melhorar. Em 2014, o partido fundamentalista hindu Bharatiya Janata assumiu o governo do país. Como mais de 80% da população indiana é hinduísta, as ideias relativas à violência contra a mulher devem persistir por mais algum tempo.
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