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sexta-feira, 22 de julho de 2016

Qandeel: estrangulada por questionar o papel da mulher no seu país

21.07.2016
Paula Cosme Pinto

Qandeel Baloch era, acima de tudo uma figura controversa. Apelidada por muitos como a “Kim Kardashian do Paquistão”, já há algum tempo que vinha a chocar a sua sociedade pela ousadia da sua postura nas redes sociais. Ousadia essa que para muitos de nós não passaria de atos banais, que tantas mulheres e miúdas do mundo ocidental fazem diariamente. Publicar fotos sensuais, partilhar vídeos com dicas de maquilhagem, fazer comentários jocosos sobre celebridades e, mesmo assim, ser seguida por milhares de pessoas. Havia quem a considerasse uma cabeça oca, mas nos últimos meses a suposta “mulher fútil” começara a revelar um tendência bem inteligente para o ativismo. Para questionar as leis e os políticos do seu país, para pôr em causa sistema patriarcal e religioso que castra a mulher na sociedade paquistanesa, para quebrar regras e tradições. E isso – como se veio a provar há poucos dias - era um risco sério.

Basicamente, Quandeel deixou de ser apenas uma estrela fútil das redes sociais para se transformar numa voz ativa, que insistia em contrariar os dogmas de um país que necessita de evolução urgente. Publicamente contou como foi forçada a casar aos 17 anos e como esse casamento resultou em cenas constantes de violência doméstica, incluindo ameaças de ataques com ácido sulfúrico. Cenário a que sobreviveu apenas porque fugiu para um abrigo, perdendo a custódia do filho bebé. Na altura, a sua caixa de email encheu-se de mensagens de pessoas que a criticavam por estar a fazer um “drama” da situação e que isso só ajudava a denegrir a imagem do Paquistão. Nenhuma das ofensas e ameaças a demoveu de continuar.

Há poucas semanas a BBC entrevistou-a, considerando-a um género de líder feminista, uma heroína nacional no que tocava à defesa dos direitos das mulheres ainda tão menosprezados no Paquistão. A porta-voz das mulheres da sua geração. A postura provocadora não passava de uma estratégia para atrair a atenção e depois poder espalhar a sua mensagem sobre o fim dos estereótipos do que as mulheres deviam ser ou não. Seguida por muita gente que a aplaudia de pé, mas também por muitos outros que a odiavam e a consideravam uma vergonha para o país, há uns dias foi morta pelo próprio irmão, que diz sem pudor ter orgulho no que fez “porque o lugar das mulheres é casa a tomar conta da família”. E se há quem tenha assistido à notícia do seu estrangulamento com horror, há muitos que aplaudem este homem que, com as suas próprias mãos, calou para sempre uma voz que se tornava incómoda. Devolvendo a honra à família e, é claro, a todo um país.

CRIMES DE HONRA CONTINUAM A AUMENTAR
Voltamos ao problema dos supostos crimes de honra, que muita gente insiste em não compreender que são simplesmente crimes. A realidade é transversal a vários países, maioritariamente muçulmanos, e muitas vezes ainda protegida pela própria lei. Culturalmente é aceite. Aliás, as famílias que o fazem são mal vistas. Como já falámos por aqui anteriormente, mortes como a de Qandeel Baloch não são raras no Paquistão, bem pelo contrário. Aliás, números revelados no fim de abril mostram que em vez de diminuírem, estes têm vindo a aumentar nos últimos anos. Ou, pelo menos, a denúncia dos mesmos às autoridades subiram.

De acordo com a Comissão para os Direitos Humanos do Paquistão, só no ano passado 1096 mulheres (e 88 homens) foram mortas por familiares que acreditavam que estas tinham desonrado o nome da família. Quase 200 destas vítimas eram menores de idade. Em 2015 tinham sido à volta de 1000 e em 2013 cerca de 870. Números demasiado elevados - embora devam ser apenas a ponta do icebergue -, que continuam a contar com a proteção de uma lei deficitária e incompreensível, que permite que o perdão familiar dado ao criminoso em casos destes seja o suficiente para que justiça não seja feita. E cuja alteração o Parlamento insiste em chumbar.

UMA LEI QUE PERMITE “BATER LIGEIRAMENTE” À MULHER
O Paquistão é o mesmo país onde ainda há poucos meses o Conselho de Ideologia Islâmica decidiu apresentar ao Parlamento um documento de 163 páginas, onde descrevia o que deveria ser esperado da conduta feminina, pedindo que a lei fosse alterada. Lei essa que deveria prever a possibilidade de um homem “bater ligeiramente” na mulher em situações como recusa de relações sexuais, quando elas não se lavam depois do coito ou quando elas não se quiserem vestir conforme a opinião e desejos do marido. Quando isto é proposto enquanto futura lei, não é de estranhar que o Paquistão esteja entre os países mais perigosos para uma mulher viver.

Esta semana isto aconteceu no Paquistão, mas lembra-nos a história que mortes como esta repetem-se um pouco por todo o mundo e em diferentes religiões. Muitas foram as mulheres que ao longo do últimos cem anos (nem precisamos de ir mais atrás) foram brutalmente silenciadas quando exigiram direitos tão simples como, por exemplo, poderem votar. Podemos não gostar de admitir isto, mas o caminho e a evolução da vida, direitos e oportunidades das mulheres ao longo do tempo tem sido feito de mártires, que raramente são lembradas como tal. Qandeel Baloch é, infelizmente, uma delas. Quando disserem que o feminismo já não faz sentido nos tempos de hoje, lembrem-se dela.

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