Para a delegada que investiga o estupro coletivo do Rio, a vulnerabilidade e a ausência de balizas morais é tamanha que as vítimas muitas vezes não enxergam a violência

Cristiana Bento começou a despontar na polícia do Rio como delegada da Mulher em Duque de Caxias e em São Gonçalo. Especializou-se em casos de crimes sexuais contra mulheres e menores. Em abril de 2015, assumiu a Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima no Rio de Janeiro
Ela nunca pensou em ser delegada. Seu sonho era ser juíza. Após se formar em direito em 1998, Cristiana Bento era oficial de Justiça enquanto cursava a escola da Magistratura do Rio. “Fiz o concurso de delegados para me avaliar. Passei. Comecei a gostar muito da profissão, e abandonei a ideia da magistratura”, conta ela, 42 anos, mãe de uma garota de 14. Há um ano, ela assumiu a Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima, do Rio. O crime que chocou o país e levou milhares de pessoas às ruas caiu em suas mãos. Cristiana mudou o curso da história de C.B., 16 anos, vítima do estupro coletivo no Rio.
PLANETA – Como avalia o estupro coletivo no Rio?

CRISTIANA – Essa jovem foi exposta de uma forma vexatória. A investigação está lhe devolvendo dignidade. Ela não tinha real noção do abuso sexual que vinha sofrendo. É tudo tão negligenciado, valores morais e sociais tão subtraídos, que ela perdeu a noção. Aos 12 anos, engravidou. Isso em si já foi um estupro.
PLANETA – C.B. tem a visão de que foi estuprada aos 12 anos?

CRISTIANA – Não tem. Para ela foi um relacionamento. Ele era bandido e morreu. Havia o consentimento, mas ela era uma criança. Ela havia sido abusada na comunidade, antes, por outro traficante. E, desta vez, houve o estupro coletivo. E ela era tão negligenciada com ela mesma que não tinha a noção da violência. Se o vídeo não tivesse vazado, ela não teria ido à delegacia. Arriscou sua vida, voltou ao lugar onde foi abusada, não se preocupou com o que poderia acontecer com ela e nos disse: “Minha avó ainda está pagando meu celular”. O bem mais importante para ela era o celular.
PLANETA – Ela se deu conta disso?

CRISTIANA – Ela foi caindo em si. Está provado que ela foi estuprada. Dois vídeos comprovam a vulnerabilidade dela naquele momento. Mas os próprios abusadores muitas vezes não têm consciência de que aquilo é um abuso. Foi colocada em questão a personalidade da vítima: ‘Ela está acostumada’. Mas isso não é motivo para abusar de uma pessoa.
PLANETA – A sra. acredita que houve uma visão machista?

CRISTIANA – Claro. Sou professora licenciada de Processo Penal da Universidade Cândido Mendes. A minha interpretação segue a lei. O primeiro vídeo é claro: uma pessoa desacordada sem condições de oferecer resistência, e outra pessoa manipulando, ali para mim já era estupro. Com o segundo vídeo, não houve mais dúvida. Vimos um homem introduzindo um objeto nela, um batom. Até para aqueles que defendiam a tese de que só a manipulação não era suficiente para comprovar um estupro, essa tese cai por terra.
PLANETA – O que a motivou a se especializar na área?

CRISTIANA – A motivação vem de cada história diária que surge. Sempre vejo assim: pelo menos tentamos salvar uma vida. Houve o caso de uma professora que abusava de crianças. Na última mensagem, o abusador fala para a professora levar a menina de 4 anos até ele. Nós chegamos antes e impedimos uma menina de ser abusada. Há um texto que costumo usar em palestras sobre um poema que fala de um menino pegando conchinhas na praia e devolvendo para o mar. Vemos as conchas como vidas. Não podemos salvar todas. Se salvamos uma criança de um abusador, já está valendo. Não é demagogia. É responsabilidade social.
PLANETA – Por que casos de violên­cia contra a mulher só aumentam?

CRISTIANA – Acredito que os casos não aumentam. As mulheres se sentem mais encorajadas e denunciam mais.
PLANETA – Que caso mais lhe tocou em oito anos de polícia?

CRISTIANA – A maioria dos crimes contra crianças me toca. A maioria dos casos que tratamos aqui infelizmente é de estupro. Uma vez, no meu colo, uma menina de 4 anos me disse: “Ele fez a coisa feia”. Era seu padrasto abusador. Não me esqueço de uma adolescente de 17 anos que chegou à delegacia com o ursinho na mão. Havia um ano, ela queria registrar o abuso do pai, mas não tinha coragem. Ela chegou a entrar na delegacia, mas saiu. Mas a mãe descobriu. Ela pensou que o marido a estava traindo. Pôs um gravador no carro. E gravou o marido tendo relação com a filha. Quando ela me trouxe o áudio, foi um choque. Uma coisa é você ouvir falar que o pai abusou da filha, o que já é, em si, hediondo. Mas ouvir a gravação na hora do ato, ouvir a aflição da filha pedindo para o pai parar, é um horror. Então ela revelou à mãe que desde os 9 anos o pai abusava dela. Ele, caminhoneiro, viajava muito. Mandei chamá-lo à delegacia. Avisei que colocaria um áudio. Quando ouviu, foi desconfigurando o rosto. A única coisa que ele disse foi: “Tenho direito a um advogado?” Eu disse: “O senhor está preso”. Tempos depois, em dificuldades financeiras, mãe e filha voltaram à delegacia. A menina me disse: “Ele fazia isso, mas era um bom pai.” Ela não tinha ideia do que era ser pai. A criança não sabe que está sendo abusada. Demora para entender. Elas se confundem. Uma vez, ouvi de outra adolescente: “Gostava dele como pai. Não gostava dele como namorado.”
PLANETA – A sra. usa um crucifixo. É religiosa? 

CRISTIANA – Ganhei do meu marido. Sou evangélica. Ao acordar, digo: “Senhor, guia meus passos. Me dê sabedoria”.
PLANETA – A sra. se identifica com os casos, pensando na sua filha?

CRISTIANA – Claro, a gente pensa que podia ser um filho. Desde o primeiro momento, vi pessoas criticando essa menina, dizendo ‘ ah, mas ela quis…’. Eu ouvia e retrucava: “Fecha o olho e coloca sua filha deitada ali, com bandidos tripudiando. Seria estupro ou não? Você conceituaria como estupro? Quando é com os outros, é mais fácil julgar. As pessoas têm que ter mais amor pelo próximo e se colocar na pessoa do outro. Sobre a personalidade da menina, o artigo do Código Penal não fala da personalidade da vítima.
PLANETA – É preciso esclarecer o que é estupro hoje?

CRISTIANA – As pessoas não têm esse esclarecimento. Desconhecem o que é estupro hoje. Antes da lei de 2009, estupro era a violência que envolvia a penetração do pênis na vagina. Violência com sexo anal não se enquadrava como estupro. Era ato libidinoso. Com a nova lei, um beijo à força pode ser visto como estupro. Claro que há proporções, e um juiz deve avaliar.

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