Nova animação da Pixar combina elementos específicos e apelo universal
por Virgílio Souza
O ano passado foi o primeiro desde 2012 sem ao menos uma animação entre as cinco maiores arrecadações nos cinemas dos Estados Unidos*. Além das fronteiras do país, porém, alguns dos lançamentos mais marcantes saíram justamente desse gênero. Continuações como as de “Paddington” e “Tadeo Jones” chegaram em sexto e terceiro lugar nas bilheterias de mercados importantes na Europa (Reino Unido e Espanha, respectivamente), enquanto “Your Name” alcançou um público ainda maior mundo afora depois de se tornar o filme mais visto na história do Japão na temporada anterior.
O caso de “Viva: A Vida É Uma Festa” parece ser parte de um fenômeno semelhante, mesmo que com outras proporções. Em seu país de origem, sede dos estúdios Disney/Pixar, o longa não passou da 14ª posição no ranking de público considerando somente as estreias de 2017. Foi no México, vizinho ao sul, que a produção encontrou a recepção aguardada e chegou ao topo do pódio de todos os tempos logo após completar um mês em cartaz.
Há muitas formas de compreender o sucesso desses títulos individualmente. Olhando para o conjunto, no entanto, é fácil perceber que eles compartilham a habilidade de se comunicar com seus espectadores numa língua própria. São obras com apelo universal, característica quase indispensável na indústria atualmente, mas que apresentam um número suficiente de elementos capazes de provocar respostas positivas específicas em certas audiências — e isso, num cardápio repleto de enlatados, é muita coisa.
A boa recepção tem relação com a identificação imediata da cultura mexicana na tela. As aventuras do garoto Miguel se desenrolam perto do Día de Muertos, data local bastante tradicional em que se celebram as vidas daqueles que já se foram. O filme constrói todo seu esquema visual a partir desse contexto, fazendo com que ele seja parte integral da narrativa, mais do que simples pano de fundo. Assim, as bandeirinhas penduradas pelas ruas, as flores espalhadas para orientar os espíritos e os altares com adereços dedicados a honrar os antepassados enchem “Viva” de energia com cores vibrantes, ao passo que a ocasião serve como oportunidade para o filme encarar temas mais maduros e sensíveis, como perda e memória.
O pacote se encaixa perfeitamente nos moldes da Pixar. Acostumada a oferecer experiências que sejam ao mesmo tempo divertidas para as crianças e envolventes para os adultos, a empresa carrega nos tons de modo a impressionar todas as faixas de público. Em um primeiro nível, o longa é a história de um menino que deseja seguir o sonho de ser músico, inspirado pelo célebre artista Ernesto de la Cruz e contrariando as vontades de família. Em outro, que se foca nos personagens mais velhos e no conflito entre gerações, são questões como perda, esquecimento e mortalidade que ocupam o centro do palco.
O pacote se encaixa perfeitamente nos moldes da Pixar, já que “Viva” carrega nos tons de modo a impressionar todas as faixas de público
As qualidades dos diretores Lee Unkrich e Adrian Molina, que trabalharam juntos em “Toy Story 3”, são bem evidentes durante o primeiro ato, o mais equilibrado deles. A dupla trata as dinâmicas familiares com leveza, pontuando suas ideias mais importantes em diálogos objetivos, e explora o humor físico sempre que possível, como nos trechos agitados em que a avó de Miguel tenta impedir que ele escute música dentro de casa. Aqui, a fantasia surge do cotidiano, desses momentos banais em que os objetos pelo caminho viram instrumentos musicais e ajudam o protagonista a manter o embalo de sua aventura — uma lógica parecida com a do segmento inicial do ótimo “Kubo e as Cordas Mágicas”, embora o filme dos estúdios Laika tome decisões menos convencionais já na largada.
Os problemas de “Viva” só começam a aparecer depois que Miguel chega ao mundo dos mortos. Seu encontro com essa espécie de parque de diversões no além-vida é imaginado com uma riqueza de detalhes de fazer cair o queixo, com direito a encontros emocionantes (com o ídolo e os antepassados) e referências culturais variadas espalhadas por todos os cantos do cenário (de Frida Kahlo a telenovelas). De imediato, o filme ganha em termos de movimento e urgência, mas a seguir esbarra em mais elementos do que seu texto realmente consegue carregar.
Em vários pontos da trama, a direção se mostra tão perdida quanto a de “Divertida Mente” quando apresenta suas “ilhas de personalidade”. Os conceitos são intrigantes e a estética é caprichada, mas falta uma conexão maior com o universo, algo que elimine a barreira entre o garoto e aquelas construções enormes sem que personagens e criaturas tenham que ser adicionados de tempos em tempos para aparar as arestas. É preciso fazer parte das imagens, mais do que simplesmente admirar sua beleza à distância.
Os últimos 15 minutos de projeção, quando o longa volta o foco novamente para a realidade, formam um dos trechos mais poderosos da história da Pixar
Assinado por Unkrich, Molina e outros quatro nomes, o roteiro parece sobrecarregado, sem fôlego para acompanhar o volume de informações apresentadas e a rapidez com que o protagonista passa por elas. Saindo do mundo real, é preciso construir um ambiente distinto, com regras e desafios próprios, além de amarrar subtramas abertas anteriormente, o que provoca algumas quebras de ritmo bruscas. Por outro lado, o humor nunca funciona tão bem quanto aqui, em parte graças à entrada em cena de Hector (dublado por Gael García Bernal nas versões em inglês e espanhol), que brinca constantemente com o próprio esqueleto e dá vazão às possibilidades únicas daquele local.
Grande trunfo dos diretores na comédia, ele também sustenta boa parte do peso dramático do ato decisivo, quando “Viva” finalmente toma suas decisões mais ousadas e parte numa trajetória que remete ao prólogo de “Up: Altas Aventuras” pela capacidade de fazer chorar. Os últimos 15 minutos de projeção, quando o longa volta o foco novamente para a realidade e avalia o significado da jornada de Miguel, formam um dos trechos mais poderosos da história da Pixar. Se a roupagem renovada tem força para levar o público aos cinemas, é essa emoção sem igual que faz com que ele saia da sala de exibição já pensando em voltar para o lançamento seguinte.
* “Moana”, o maior hit do período, foi lançado em novembro de 2016 nos EUA e acabou tendo sua arrecadação dividida entre dois anos. No Brasil, por exemplo, o longa só foi lançado em janeiro de 2017.
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