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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Sor Juana Inés de la Cruz, uma feminista barroca


No ensaio Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé, o poeta Octavio Paz interpreta a obra da freira poeta como reflexo das contradições do México colonial

RUAN DE SOUSA GABRIEL
19/01/2018

BARROCA Retrato de Sor Juana Inés de la Cruz,freira e poeta mexicana.Ela deixou uma das líricas mais originais em língua espanhola (Foto: Album / Joseph Martin)
Em 1689, apareceu em Madri, na Espanha, um volume de poesia de uma freira mexicana com um título pomposo: Inundación castálida. Na mitologia grega, a Fonte Castália ficava nos arredores do Santuário de Apolo. Aqueles que bebiam de suas águas eram abençoados com inspiração poética. A autora dos poemas era sor Juana Inés de la Cruz, que vivia enclausurada no convento de San Jerónimo, na Cidade do México, então capital do Vice-Reino da Nova Espanha. Os poemas de sor Juana cruzaram o Atlântico e foram publicados na capital do Império Espanhol graças a María Luisa Manrique de Lara y Gonzaga, a condessa de Paredes, vice-rainha da Nova Espanha entre 1680 e 1686 – seu marido, Tomás de la Cerda y Aragón, era o vice-rei, a maior autoridade da colôniaInundación castálida estava cheio de poemas de amor dedicados à condessa de Paredes, chamada nos versos de “divina Lysi”.
Alguns poemas eram um pouco assanhados: Así, cuando yo mía/te llamo, no pretendo/que juzguen que eres mía,/sino sólo que yo ser tuya quiero (Assim, quando minha/te chamo, não pretendo/que julguem que és minha,/só que eu ser tua quero, em tradução literal). Nas primeiras páginas do livro foi impressa uma “Advertência” para assegurar ao leitor que, apesar dos versos inflamados, a amizade entre a freira e a vice-rainha era casta. O editor escrupuloso afirmava que o que causara “na poeta um amor a Sua Excelência (a vice-­rainha) com puro ardor” não eram inclinações homoeróticas, mas grata admiração e compatibilidade astrológica. A nota do editor blindava a poeta de acusações que podiam acender as fogueiras da Inquisição. Mas também mostra os riscos de se debruçar sobre a obra de sor Juana à procura de pistas que esclareçam as lacunas de sua biografia.
Sor Juana Inés de la Cruz foi um dos expoentes da poesia em língua espanhola no século XVII, o “Século de Ouro Espanhol”. Sor Juana manejou como ninguém os maneirismos do barroco – a retórica elevada, o virtuosismo linguístico, o gosto pela contradição e pelo exagero. Compôs poemas, comédias teatrais, defendeu o direito da mulher à educação e se envolveu num acirrado debate teológico com o padre Antônio Vieira, expoente do barroco luso-brasileiro. Em seus últimos anos, renunciou às letras devido à perseguição das autoridades católicas. A vida íntima da freira poeta, no entanto, permanece envolta em mistério. Na falta de documentos – a vasta correspondência de sor Juana se perdeu –, não foram poucos os que fizeram leituras detetivescas de sua obra para decifrar seus enigmas biográficos e diganosticar os tormentos de seu coração. Foi assim que ela ganhou diversos rótulos: “mística”, “neurótica”, “feminista”. Um dos mais bem-­sucedidos nessa empreitada foi Octavio Paz (1914-1998), poeta mexicano e Nobel de Literatura. Em 1982, Paz publicou Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé, um ambicioso ensaio que tenta responder a algumas perguntas que intrigam os leitores da freira poeta: “Por que escolheu, sendo jovem e bonita, a vida de freira? Qual a verdadeira índole de suas inclinações afetivas e eróticas? Por que renunciou à paixão de todas de toda a sua vida: as letras e o saber?”. Depois de anos fora de catálogo, Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé voltou às livrarias no fim do ano passado, numa tradução de Waldir Dupont, publicada pela Ubu.
INTELECTUAL A atriz espanhola Assumpta Serna em cena de Eu,a pior de todas.A fotografia do filme busca inspiração nos constrastes do barroco (Foto:  Reprodução)
Trecho de poema dedicado à condessa de Paredes. Tradução de Teresa Cristófani Barreto (Foto: Época)
Juana Inés de Asbaje nasceu em 1648 (ou 1651), em Nepantla, e morreu em 1695, na Cidade do México. Era filha bastarda de uma criolla (nascida na América de pais espanhóis) e de um fidalgo basco. Nunca conheceu o pai. Aprendeu a ler aos 3 anos e, ainda menina, pediu à mãe que a disfarçasse de homem para frequentar aulas na universidade. Juana Inés aspirava ao saber restrito aos homens naquela época. Leu toda a biblioteca do avô e, aos 15 anos, foi enviada para a Corte da Cidade do México para servir de dama de companhia a Leonor de Carreto, a marquesa de Mancera, vice-­rainha. Juana Inés, uma órfã sem fortuna, conquistou a simpatia da vice-rainha, a quem chamava de Laura em seus poemas amorosos: De la beldad de Laura enamorados/los cielos la robaron a su altura... (Da beleza de Laura apaixonados/os céus a roubaram para sua altura). Em 1669, aos 21 anos, ingressou no convento de San Jerónimo, onde ganhou o título de “sor” (irmã). Muito se especulou se uma desilusão amorosa encaminhou Juana Inés à vida religiosa. Paz, no entanto, afirma que as dificuldades para arrumar um bom casamento (era pobre e bastarda) e o amor às letras a levaram a vestir o hábito. “O caminho da cultura, para a poeta, não só passava pela masculinização como entranhava a neutralização da sexualidade”, escreve. Juana Inés renunciou à vida cortesã e escondeu seu sexo sob um hábito negro para poder se dedicar ao estudo e à escrita, atividades masculinas, restritas às universidades e às ordens religiosas.
Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé (Ubu, 608 páginas, R$ 108) (Foto: divulgação)
Os conventos eram parte da vida social da Nova Espanha, espaços culturais onde aconteciam tertúlias, apresentações teatrais e bailes. A casa das jerônimas era reservada às moças das melhores famílias. As freiras viviam em sobrados espaçosos, tinham criadas e escravas, podiam usar joias e receber visitas. Lá, sor Juana encontrou refúgio para compor versos, estudar astronomia, filosofia e mitologia e devorar livros proibidos pela Inquisição. E lá floresceu a “amizade amorosa” entre a freira poeta e a condessa de Paredes, uma mulher bonita e sensível às artes e ao conhecimento, para quem sor Juana escreveu versos suspeitos: Ser mujer, ni estar ausente,/no es de amarte impedimento;/pues sabes tú, que las almas/distancia ignoran y sexo (Ser mulher, nem estar ausente,/não é de amar-te impedimento;/pois você sabe que as almas/distância ignoram e sexo). Os poemas eróticos dedicados à vice-rainha alimentaram especulações sobre a natureza da relação entre as duas: era uma grata amizade, um flerte inocente ou um relacionamento homossexual?
Essas especulações folhetinescas guiam o roteiro da série mexicana Juana Inés, exibida pelo Netflix, na qual sor Juana é apresentada como “uma poderosa freira feminista, que se envolve em um caso de amor proibido com uma mulher e encara a opressão no México do século XVII”. A trilha sonora é baseada em violinos estridentes e o enredo é recheado de intrigas palacianas e conflitos amorosos, no estilo “dramalhão mexicano”. A cabeleira revolta, a insolência e o desejo de conhecimento da jovem Juana Inés (Arantza Ruiz) são um contraste gritante com o servilismo e a rebuscada arquitetura dos penteados das damas da Corte. A marquesa de Mancera (Lisa Owen), a primeira vice-rainha, se encanta com a beleza e a inteligência de Juana Inés e passa a assediá-la. “Desnuda mi cuerpo”, diz a vice-rainha, que pede para a jovem esfregar óleo de amêndoa em seus seios. Em outro episódio, ela invade a cama de Juana Inés. A série também carrega nas tintas ao retratar o amor entre a sor Juana madura (Arcelia Ramírez) e a belíssima condessa de Paredes (Yolanda Corrales). Numa cena constrangedora, o confessor de sor Juana, o padre Antonio Núñez de Miranda (Hernán del Riego), pergunta à freira se ela e a vice-rainha recorrem a “algum instrumento” quando “se tratam carnalmente”.
O filme Eu, a pior de todas (1990), da cineasta argentina María Luisa Bemberg, é mais sutil. A bela fotografia, assinada por Félix Monti, busca inspiração nos contrastes do barroco. Os cenários são sombrios e a luz converge para os rostos dos personagens. O filme aborda a “amizade amorosa” entre sor Juana (Assumpta Serna) e a condessa de Paredes (Dominique Sanda) e a censura que a freira sofreu após criticar o padre Antônio Vieira. As insinuações sexuais se concentram em algumas cenas nervosas: sor Juana afrouxa, com as mãos tímidas, o espartilho da vice-rainha. Na cena mais erótica do filme, a condessa de Paredes ordena que sor Juana tire o véu. Como se despisse o corpo inteiro, a freira se livra lentamente das várias camadas que lhe cobrem a cabeça. “Esta Juana é minha. Somente minha”, diz a condessa antes de beijá-la.
Trecho de poema satírico. Tradução de Vera Mascarenhas de Campos (Foto: Época)
Em seu ensaio, Octavio Paz oferece outra interpretação: o amor entre sor Juana e a vice-rainha não era carnal, mas platônico. Quase um gênero literário. Os poemas amorosos dedicados à condessa de Paredes se inserem na tradição da poesia cortesã, que remonta às Cortes medievais, onde trovadores de origem humilde professavam seu amor a damas nobres. Em seus versos amorosos, sor Juana não confessava um amor proibido, mas escrevia segundo as regras de um gênero literário. Os críticos, escreve Paz, tratam os poemas de sor Juana como um diário amoroso porque teimam em ler “com olhos românticos um texto barroco”. A poesia como confissão dos sentimentos íntimos do poeta, lembra Paz, só apareceu um século depois de sor Juana, com o Romantismo. No período Barroco, o que importava era adequar os versos a formatos complexos regidos pela lei dos contrastes. O Barroco era um estilo capaz de comportar contradições – como uma freira poeta que escrevia poemas de amor para uma mulher. Paz também registra que quase um terço dos poemas de sor Juana foi encomendado. São versos de “adulação cortesã” e homenagens a poderosos ou em louvor de dias santos que asseguraram a sor Juana privilégios junto à Corte e à Igreja e conferiram prestígio ao convento das jerônimas. Nada disso, porém, depõe contra a qualidade literária dos versos de sor Juana, que resistem como uma das líricas mais originais em língua espanhola.
CORTESÃ A atriz mexicana Arantza Ruiz na série Juana Inés.A freira poeta é apresentada como uma feminista que vive um amor proibido com outra mulher (Foto:  Divulgação)
Paz apresenta sor Juana como uma personalidade que refletia e superava as contradições de sua sociedade. A Nova Espanha era uma contradição insolúvel. Embora nascida da expansão ultramarina que marcou o início da modernidade europeia, a Nova Espanha repetia, num cenário tropical, a velha ordem aristocrática derrotada na Europa pelos ideais da Reforma Protestante e de pensadores modernos como Descartes, Galileu e Copérnico – autores que sor Juana conhecia, apesar da vigilância da Inquisição. O feminismo da freira poeta, expresso em alguns versos satíricos, reagia a sua realidade histórica, que mantinha as mulheres afastadas do saber e em condição de inferioridade. Em O labirinto da solidão, sua obra-prima de 1950, Paz afirma que sor Juana foi a figura que melhor encarnou as contradições do México colonial por “conciliar ciência e poesia, barroquismo e iluminismo”. O próprio Paz abarcava muitas contradições. Neto de um apoiador do caudilho Porfirio Díaz e filho de um aliado do revolucionário Emiliano Zapata, trazia no sangue os acidentados caminhos do México rumo à modernidade. Como poeta, navegou entre a escrita automática e desregrada dos surrea­listas e a poesia barroca de sor Juana de la Cruz. Em seus ensaios, mobilizou um vasto repertório crítico e uma inabalável convicção democrática para investigar a alma dilacerada dos latino-americanos.
A prosa elegante e sedutora de Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé é uma tentativa de investigar a alma dilacerada de uma freira poeta que viveu numa sociedade incapaz de comportar seu talento e desejo intelectual. O escritor peruano Mario Vargas Llosa, outro Nobel de Literatura, afirmou que Paz escreveu o melhor livro de crítica literária da América Latina e que, graças à análise cuidadosa do poeta mexicano, conseguiu terminar de ler Primero sueño, um longo poema metafísico de sor Juana. A volta de Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé às livrarias pode despertar nos leitores brasileiros esse mesmo desejo de mergulhar na poesia barroca da freira mexicana. Mas há aqui uma contradição: quase não existem edições brasileiras da obra de sor Juana. Nos anos 1980, a editora Iluminuras publicou Letras sobre o espelho, uma breve coletânea de prosa e poesia de sor Juana. Algumas traduções assinadas pelo poeta Manuel Bandeira circularam nos anos 1950 e 1960. Está tudo fora de catálogo.

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