Um artigo que narra um encontro com o criador de ‘Master of None’ dividiu tanto leitores quanto colunistas e abriu uma nova fronteira no debate pós-Weinstein: a do consentimento
El País
GUILLERMO ALONSO
17 JAN 2018
Os artigos que detalham assédio sexual, comportamento inadequado ou estupros por homens poderosos na indústria do entretenimento contra mulheres se multiplicaram desde outubro. O debate alcançou todas as esferas da vida pública e levou a movimentos como #MeToo ou #TimesUp. Para muitos, sua normalização na imprensa também apresenta o perigo de que a mensagem se torne inócua. "Se tudo é um escândalo, então nada é um escândalo", disse Lee Drutman.
Este fim de semana, o site feminista Babe publicou a história anônima de uma fotógrafa de 23 anos que, durante um encontro com Aziz Ansari (Carolina do Sul, 1983), o premiado protagonista e criador da série Master of None, se considerou vítima de um comportamento sexual inapropriado por parte do ator.
Grace, o nome fictício usado pela mulher no artigo, diz que conheceu Ansari em uma festa realizada após a entrega dos prêmios Emmy em 2017 (ou seja, em setembro passado) e que marcaram um encontro uma semana depois, em Nova York. Jantaram ostras em um charmoso restaurante em um barco no rio Hudson e depois foram para o apartamento dele, localizado em Tribeca.
Uma vez em seu apartamento, ele queria ir além do que ela queria e, segundo Grace, ignorou seus sinais verbais e não verbais, indicando que ela não pretendia ir adiante com o rumo sexual que a noitada estava tomando. Ele se despiu, tirou as roupas dela, houve sexo oral mútuo e a beijou várias vezes de forma "forçada", segundo seu relato.
Finalmente, quando ela expressou mais explicitamente que queria ir embora, ele não se opôs e chamou um táxi para buscá-la. No dia seguinte, enviou-lhe uma mensagem que dizia: "Ei, nosso encontro ontem à noite foi divertido". Ela respondeu: "Seria divertido para você, não foi para mim. Quando fomos para sua casa, você ignorou meus sinais não verbais e seguiu em frente. Deveria ter percebido que não me sentia confortável".
Algumas das respostas ao tuíte publicado pela conta oficial do site questionaram a verdadeira natureza do que aconteceu. Aqui publicamos três:
"Honestamente, isso foi apenas um encontro ruim. Entendo que ela tenha se sentido desconfortável no momento, mas histórias como esta apenas minimizam a importância de fatos reais de assédio sexual."
"Não vou dizer que é culpa dela ou que merecia. Mas direi que ela teve muitas oportunidades para interromper aquilo rapidamente e escolheu não fazê-lo. E ela não pode em absoluto culpá-lo por interpretar mal a ausência de recusas. Parece, pela rapidez com a qual ele encerrou o jantar, que ele só queria transar.”
"Não suporto Aziz Ansari, mas isso é absurdo. Ela foi para o apartamento dele no primeiro encontro. Ela se despiu (Ah, desculpe, ela diz que ele tirou a roupa dela, por favor!) Como ela própria admitiu, ela não foi muito clara ao expressar seu desejo de parar. E depois se arrepende.".
Editoriais em jornais como The Guardian e sites de conteúdo viral como o Mashable se apressaram a contrapor essas opiniões. "O que torna este caso especialmente difícil é que obrigará os homens a examinar seu próprio comportamento de uma maneira que não fizeram até agora", escreve a jornalista Emily Reynolds no The Guardian. "Alguém que cometeu vários abusos sexuais e estupros é facilmente caracterizado como um predador, um monstro que se senta a milhares de quilômetros da vida e do comportamento de homens bem-intencionados que estão tentando se conectar com esse momento cultural. Mas o suposto comportamento de Ansari, pelo contrário, atinge muito mais de perto."
No site Mashable, outra mulher, Rachel Thompson, aponta duas palavras que considera fundamentais nesta história: "As respostas [escritores de opinião anônimos e profissionais do jornalismo] à história desta mulher estão cheias de deveria. 'Ela deveria ter dito não'; 'Ela deveria ter ido embora'; 'Ela não deveria ter tirado a roupa'; 'Ela nem deveria ter ido ao apartamento dele'. Essas respostas, disseminadas de forma inquietante, não só culpam e responsabilizam a mulher, mas também fracassam quando se trata de reconhecer uma verdade importante. Para muitas mulheres, pronunciar um explícito 'não', não é tão fácil ou tão direto quanto possamos pensar".
Especialmente comentado é o artigo de opinião do The New York Times, o mais recente a analisar este caso. A jornalista Bari Weiss assina um férreo ataque ao artigo original publicado no Babe intitulado "Aziz Ansari é culpado... de não saber como ler mentes". Weiss se refere ao artigo publicado no Babe como "a pior coisa que aconteceu ao movimento #MeToo".
Um artigo de opinião no The New York Timescriticou duramente o depoimento da mulher. “A solução não é perseguir os homens com tochas, mas ser mais diretas. Dizer ‘isso é o que excita’ ou ‘não quero fazer isso’.
"Aziz Ansari pareceu ser um homem agressivo, egoísta e desagradável naquela noite", escreve a colunista. "Não é deprimente que homens (especialmente aqueles que se apresentam publicamente como feministas) geralmente se comportem dessa maneira privadamente? Não deveríamos tentar mudar essa cultura sexual fraturada? E não dá raiva que as mulheres sejam educadas para serem dóceis e acomodadas e para colocar os desejos dos homens antes dos delas? Sim. Sim. Sim", escreve Weiss. "Mas a solução para esses problemas não começa com as mulheres perseguindo com tochas homens que não tenham sido capazes de entender seus sinais não verbais; a solução começa em sermos mais diretas. Dizer: 'Isso é o que me excita'. Dizer: 'Eu não quero fazer isso'. E, sim, às vezes dizer: 'Cai fora'".
Nesta mesma linha, escreve outra mulher (Caitlin Flanagan) no The Atlantic, com o artigo "A Humilhação de Aziz Ansari". "Aparentemente, há um país cheio de mulheres jovens que não sabem como chamar um táxi, e que passaram muito tempo escolhendo roupas bonitas para encontros que esperavam que seriam noites para recordar. Estão bravas e temporariamente poderosas, e ontem à noite destruíram um homem que não merecia isso."
“No momento em que um homem começa a se comportar de uma forma que você não esperava num primeiro encontro, não sabe aonde ele pode chegar, de modo que você prefere fazer o que pede para evitar uma situação pior”VIOLETA ALCOCER, PSICÓLOGA CLÍNICA
Se é ou não um caso de assédio, talvez o debate seja complexo demais. No entanto, mais simples é tentar encontrar uma resposta ao que todas as vozes críticas em relação à protagonista dessa história estão se perguntando: por que ela não foi embora? A psicóloga clínica Violeta Alcocer diz que a situação descrita por Grace levou a um ambiente “de encurralamento, em que temos visto muitas mulheres, várias vezes, e onde é realmente difícil reagir com rapidez e ir embora. No momento em que esse homem se comporta de uma forma que claramente ultrapassa os limites, você entra num estado que a psicologia chama de dissonância cognitiva. Acontece quando você precisa gerenciar dois pensamentos-emoções contraditórios sobre o mesmo fato: ‘Este garoto me parece adorável e por isso vim até aqui, mas está se comportando como um estuprador, o que não faz sentido.”
“O sistema nervoso não costuma resolver essa equação com rapidez”, prossegue a psicóloga. “A surpresa (‘por um lado parece um cara mau, por outro sinto que posso estar em perigo’) produz paralisia e embotamento cognitivo – uma maneira que o cérebro tem de ganhar tempo para tentar compreender qual das suas percepções está errada. Além disso, no momento em que um homem que você acaba de conhecer começa a se comportar de um jeito que não esperava, você não sabe aonde ele pode chegar, de modo que prefere fazer o que ele te pede para evitar uma situação pior. Depois, na sua casa, você pode pensar que deveria ter saído correndo, mas por algum motivo seus músculos não foram ativados para fazer isso. É um dos três tipos de respostas de nosso sistema límbico ante uma ameaça: luta, fuga ou – como nesse caso – paralisia.”
Apesar da polarização de opiniões sobre se a história deveria ter sido divulgada, todos (inclusive os que defendem Ansari) concordam que a atitude dele não foi correta na esfera privada e que, seja ou não assédio sexual, levanta um debate sobre o consentimento sexual e os sinais que conduzem a ele. Um debate que talvez seja impossível de propor se não borramos também as fronteiras que separam a experiência íntima do que vale a pena ser transformado em relato público. Alcocer não tem dúvidas: “Essa mulher não podia ter feito mais do que fez: contar o que aconteceu quando pôde contar, quando se livrou do assombro, da vergonha e da culpa.” O debate, certamente, continuará durante dias.
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