Entrevista trata de questões como o racismo estrutural e institucionalizado nas redações do país; entrevistado cita o caso William Waack
18 de dezembro de 2017
“Eu conto nos dedos de uma das mãos quantos negros dividem o mesmo espaço de trabalho numa redação”, afirma Cíntia Cruz, do jornal Extra, em entrevista a Gabriele Roza, repórter da Pública. Além de Cíntia, a conversa que tratou de jornalismo e racismo contou com a presença do jornalista Pedro Borges, do Alma Preta e Filó Filho do Cultne. A seguir, os principais trechos do papo realizado na Casa Pública, no Rio de Janeiro.
Gabriele Roza – Pedro, você acha que a imprensa nega a existência do racismo estrutural no Brasil?
Pedro Borges – Quando vou fazer essa análise, são três pilares para nossa própria produção de conteúdo dentro do portal Alma Preta, que é uma diferenciação entre preconceito, discriminação racial e racismo. O preconceito é aquela pré-concepção que se tem em relação ao negro, aquele esteriótipo, aquela pré-imagem construída a partir de uma sociedade racista e escravocrata.
É aquilo, por exemplo, que o William Waack verbalizou. A discriminação racial pode ser motivada pelo preconceito, mas não só. A discriminação racial pode ser simbólica na medida em que você faz uma ofensa racista. Ela pode ser física na medida em que você agride uma pessoa. Ela pode ser espacial na medida em que você tem barreiras em determinados espaços que praticamente impossibilitam a chegada da população negra.
As universidades públicas brasileiras são o melhor exemplo de uma discriminação racial nesse nível espacial. Existe praticamente uma barreira que impossibilita a entrada dessa população negra.
A gente tem que combater, denunciar, enfrentar tudo que foi dito por essas pessoas. A maneira como a gente enfrenta colabora para ruir esse que é o principal problema da população negra no Brasil, que é o mito da democracia racial. Quando essas coisas aparecem, vêm à tona, elas ajudam a ruir esse que é o mito de que não existe racismo. Mas o mito da democracia racial não é só constituído a partir desse mito de que não existe racismo. Ele também se alimenta, e também é muito perigoso, na medida em que a gente entende o racismo como um desvio de conduta. Como uma pessoa que é escrota, que falou aquilo. A verdade — e eu acho que a nossa construção enquanto jornalista — é entender onde está essa questão racial na pauta do jornalismo.
Gabriele Roza – Agora para a Cíntia: Como você percebe esse racismo estrutural, institucionalizado nas redações e no dia a dia?
Cíntia Cruz – O que eu observo é que não tenho par. Eu não vejo os meus pares ganhando espaço no jornalismo de forma geral. Eu conto nos dedos de uma das mãos quantos negros dividem o mesmo espaço de trabalho. Percebo que as matérias que envolvem os negros representam uma questão de audiência. O que vende? Semana da Consciência Negra. Vamos fazer matérias sobre negros, mas eu procuro fazer da minha vida enquanto profissional o ângulo da consciência negra. Para mim, é a jornada da consciência negra. Tem que saber colocar isso dentro do perfil do meu trabalho porque senão vou virar a repórter chata que só sugere matéria de negro. O meu sonho é ter uma editoria sobre o negro dentro do grande jornal em que eu pudesse falar que as mulheres negras são as que mais morrem nos hospitais. Em relação ao jornalismo, eu sinto um pouco essa falta. Não estou falando especificamente da minha empresa, isso é uma coisa que acontece em várias empresas e sobretudo no jornalismo.
Gabriele Roza – Filó, eu queria que você contasse um pouco da história do início da sua produção audiovisual. Quando você percebeu que era necessário produzir e registrar o conteúdo negro?
Filó Filho – Minha primeira relação de comunicação começa em 1972. Naquele momento eu tinha uma presença forte dentro do movimento Black Rio. Que era o movimento do soul. Utilizavam a black music como uma maneira de formação de identidade. Principalmente a questão racial. Naquele momento, começo de ditadura, nós tínhamos que buscar estratégias para nos comunicarmos, até porque éramos perseguidos. Nossas ações eram todas monitoradas pelo sistema. Nós conseguimos burlar essa vigilância a partir de uma ação concreta jornalística. Naquele momento, nós tínhamos um movimento que tinha uma relação comercial muito forte porque gerava recursos. Dez mil pessoas num baile. E os jornais, na época, tinham aqueles tijolinhos, e nós começamos a anunciar nesses tijolinhos os nossos bailes. Criamos uma relação com esses jornais. Eles gostaram disso: “Vamos buscar mais espaço pra vocês se comunicarem”. Criamos uma coluna com o personagem chamado Jota Black. Ele existiu, éramos três jornalistas. Na verdade, eu não sou um jornalista. Sempre exerci, mas não tenho o título de jornalista. Não me deixaram buscar esse título porque eu trabalhei na imprensa escrita, falada, televisada e tive esse direito, nos anos 1980, de ter esse título. Mas, em função daquele momento lá de trás da ditadura, não me deram esse título. O Jota Black falava mal da gente e falava bem da gente. E a ditadura não conseguia nunca identificar quem era esse Jota Black. Com isso nós conseguimos, dentro do jornal Última Hora, um posicionamento concreto incomodando essa mídia.
Nos anos 1980, com o advento do VHS, nós começamos a fazer imagem. Nós conseguimos registrar vários momentos da comunidade negra entre eles. Momentos fantásticos.
Gabriele Roza – A Cíntia falou um pouco sobre a falta de jornalistas negros na redação. Eu queria que você falasse para a gente um pouco como isso afeta você como jornalista em uma redação extremamente branca. Como isso afeta o seu dia a dia? Como isso afeta nas pautas?
Cíntia Cruz – Você não se enxerga. Também tem coisas curiosas que acontecem na rua. Eu estava cobrindo uma briga de trânsito entre dois policiais e um matou o outro em Caxias. Eu sou setorista da Baixada Fluminense. Era bem próximo à comunidade do Lixão. Os moradores vieram para ver. Eu tinha que esperar a polícia chegar, fazer a perícia… Enfim, e eu estava lá esperando e peguei o celular para fazer um vídeo. O delegado apontou um fuzil para mim porque não podia filmar a perícia. Eu estava sem crachá, acho que tirei o crachá na hora, alguma coisa assim ou ele não viu, não lembro. Eu sei que ele apontou um fuzil para mim porque eu estava filmando. Ele tinha me confundido com uma moradora da comunidade. Eu me identifiquei, disse que era uma repórter e contei isso depois para um colega e ele achou graça. Isso não tem a menor graça. São por atitudes como essa que os negros morrem todos os dias. Outra questão foi fazendo matéria numa escola, a mãe de um aluno duvidou. Você é jornalista mesmo?
Gabriele Roza – Quais seriam os principais desafios e dificuldades de uma jornalista negra em uma redação tradicional?
Cíntia Cruz – Ter mais irmãos negros dentro da redação. Principalmente nos cargos de chefia, e que eles se reconheçam e saibam a importância de uma pauta sobre negros. Que não seja o chefe do tráfico, não seja o dono do morro na pauta. Estamos avançando muito devagar, mas a ideia é que tenha um equilíbrio dentro da redação. A questão da militância, já me chamaram de repórter das minorias. Essa coisa de você trazer à tona e tentar mudar de editoria.
Gabriele Roza – Pedro, você acha que o jornalismo precisa de ações afirmativas também para melhorar esse cenário?
Pedro Borges – A imprensa negra tem um histórico muito grande, né? A imprensa negra talvez seja a primeira imprensa que não seja a dita oficial ou hegemônica que surgiu no Brasil. Em 1808, surge a imprensa no Rio de Janeiro e em 1833 se tem o jornal Homem de Cor aqui no Rio. Desde então, você tem um intervalo de dez anos que não tem o histórico da imprensa negra. Então, temos hoje as mídias digitais, fazemos mídia negra, mas a gente não está inventando a roda. Mídia negra sempre existiu e ela sempre influenciou essa juventude. Antes, os jornais da imprensa negra eram muitas vezes veiculados e divulgados, entregues na frente dos bailes black. Esses jornais faziam sempre esse movimento de contato. Hoje, a gente tem uma outra plataforma e a gente faz esse contato com essa juventude também. Eu acho que é legal essa popularização da técnica, aquilo que o Milton Santos falava… porque nas redes sociais determinados conteúdos que a gente coloca viralizam mais do que conteúdo da Globo.
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