A incapacidade dos legisladores de acompanhar a evolução da tecnologia continua causando danos ao combate do que poderia ser definido como crime. Nos EUA, por exemplo, o lado indecente da Internet tem um novo artifício: colocar rostos de celebridades nos corpos de atrizes de vídeos pornográficos, com ajuda de tecnologias que usam algoritmos de aprendizado de máquina e inteligência artificial. Mas não é crime. Como se sabe, não há crime sem lei anterior que o defina, nem há pena sem prévia cominação legal.
Assim, é possível ver um vídeo pornográfico pretensamente estrelado pela “Mulher Maravilha”. No vídeo, a atriz Gal Gadot, que representa a Mulher Maravilha, tem relações sexuais incestuosas com seu irmão. Mas é um vídeo falso — ou um fake vídeo, que divide espaço na Internet com notícias falsas (fake news).
As atrizes Daisy Ridley, Scarlett Johansson, Maisie Williams, Taylor Swift e Aubrey Plaza estão entre as vítimas da troca de rostos em vídeos pornográficos postados no site Reddit, por um “redittor” que se autodenomina “deepfakes”.
O editor não precisa ser um gênio para falsificar vídeos, dizem os sites Motherboard e Wired. Qualquer um com conhecimentos de algoritmo de aprendizado de máquina, inteligência artificial, códigos de fonte aberta e ferramentas como o TensorFlow, que a Google disponibiliza gratuitamente, pode fazê-lo.
Os vídeos ainda são de baixa qualidade. Às vezes as imagens não são perfeitas e ocorrem constantes desconexões entre o movimento da boca das atrizes e o som de suas falas. Mas é uma questão de tempo para que os vídeos consigam ser convincentes até para especialistas.
Discussão jurídica
Para os profissionais de Direito ouvidos pelos sites, a lei não protege as vítimas de vídeos falsos, em que seus rostos foram colocados nos corpos de atrizes pornográficas. Há um sentimento de desconsolo ou até mesmo de angústia, porque a Justiça parece estar de mãos atadas, disse aos sites a professora de direitos fundamentais e tecnologia da Faculdade de Direito da Universidade de Miami, Mary Anne Franks.
A primeira coisa que se pensa é usar a legislação que pune violação de privacidade. Mas a troca de rostos em um vídeo pornográfico, apesar de ser profundamente humilhante para a vítima, não é uma questão de privacidade. Diferentemente da publicação de uma foto ou vídeo verdadeiros que foram surripiados de um celular, por exemplo, o vídeo em que os rostos foram trocados é um material falsificado.
“Você não pode processar alguém por expor coisas íntimas de sua vida, quando não é sua vida que estão expondo”, disse Mary Anne Franks, que também serve como consultora técnica e legislativa da Iniciativa dos Direitos Civis Cibernéticos.
A professora de Direito da Universidade de Maryland, Danielle Citron, disse ao Wired que uma das razões que é difícil processar os autores de vídeos falsos é o de eles não deixam de ser uma criação artística. Retirar os vídeos da Internet à força pode ser considerado censura e uma violação da liberdade de expressão.
As celebridades poderiam processar os autores do vídeo por uso indevido de imagem, na Justiça civil. Porém, isso normalmente só se aplica em contextos comerciais, como o de alguém que captura uma foto de uma atriz para promover um clube de striptease sem seu consentimento.
Outra alternativa considerada seria a de processor os autores do vídeo por difamação (ou crime contra a honra). No entanto, a legislação atual precisaria ser atualizada pelos legislativos estaduais para se aplicar ao caso dos vídeos falsos. Não existe lei federal nos EUA que defina, criminalize e penalize crimes contra a honra.
Além disso, possíveis autores de uma ação contra os sites pornográficos terão dificuldades de provar, como requerem as leis em geral, que os criadores dos vídeos falsos tiveram o propósito de lhes causar danos emocionais. Até agora, parece que os deepfakes criaram os vídeos mais para a própria diversão, do que por pretender humilhar as celebridades. Legalmente, é preciso demonstrar o dano, não apenas alegar que os vídeos são repulsivos.
Os EUA não têm uma lei que garanta ao cidadão o chamado direito ao esquecimento, dizem as professoras de Direito entrevistadas pelo site Wired. Com essa lei, as vítimas dos sites pornográficos poderiam pedir, por exemplo, a retirada dos vídeos da Internet.
Uma provável solução temporária é a de que o Google prometeu retirar de seu mecanismo de busca os nomes das vítimas, quando relacionados à pornografia não consensual.
Outra possível tangente para combater esse suposto crime seria atacar a desenvolvedora do aplicativo que é usado para falsificar os vídeos. A lei da Comissão Federal do Comércio proíbe atos ou práticas injustas ou enganosas no comércio ou que afetam o comércio. A criadora do aplicativo poderia, tecnicamente, ser responsabilizada. Isso porque o aplicativo está usando os dados de alguém para transformá-la em outra pessoa.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
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