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sábado, 20 de janeiro de 2018

Que tal juntar francesas e americanas?

Umas querem proteger as mulheres dos homens, as outras querem que elas sejam livres para correr riscos. Talvez não sejam ideias excludentes

IVAN MARTINS
17/01/2018
Sendo homem, o bom senso sugere que eu deveria ficar calado diante do manifesto das artistas e intelectuais francesas contra as feministas do #MeToo. Muita gente já falou sobre o assunto e percebo nas redes sociais uma certa impaciência das mulheres com as vozes masculinas se metendo nesse tema. Mesmo assim, acho inevitável voltar a ele.

(Para você que estava em Marte nos últimos dez dias, um resumo: uma centena de mulheres francesas importantes, entre elas a atriz Catherine Deneuve, publicaram no jornal Le Monde, na semana passada, um manifesto contra o que consideram o “puritanismo” das feministas americanas por trás da onda de acusações de assédio que sacode Hollywood e adjacências. As franceses dizem que muitas dessas acusações não se sustentam e que os homens que paqueram as mulheres de forma “insistente” não cometem crime, e que eles têm, sim, o direito de “importunar”.) 
Além de ter causado enorme polêmica, o manifesto trouxe à luz uma novidade que tem muito a ver com o que eu escrevo: enquanto o movimento feminista americano discute como evitar a violência contra as mulheres, as francesas parecem preocupadas em permitir a aproximação entre mulheres e homens. Enquanto umas falam em proteger, as outras falam em arriscar e permitir.
Quem tem razão? Ao meu ver, as duas.
Entretanto, as autoras do manifesto francês estão sendo muito maltratadas pelo feminismo dominante, sob a alegação de que criticar movimentos como o #MeToo neste momento equivale a abrir espaço aos machistas e retroceder no terreno duramente conquistado da luta feminina.
Quem identificou no documento delas alguma crítica ou ponderação importante está falando baixo, porque posicionar-se publicamente a favor de algum aspecto do documento, sobretudo nas redes sociais, sobretudo entre as mulheres, pode provocar reações agressivas e levar ao isolamento: não é hora de sacudir o barco!
Em qualquer movimento social, sempre haverá quem queira silenciar dissidências até o triunfo da  causa comum. Agora, esse dilema chegou ao feminismo, trazido pelas francesas. 
Mas o que diz, afinal, o manifesto delas? Cada um terá a sua interpretação do texto. A minha é simples: se trata de um panfleto contra a regulamentação das relações sociais entre homens e mulheres com base no medo da violência sexual. Ou, posto de outra maneira, enquanto o feminismo americano tenta imaginar formas cada vez mais rígidas de proteger as mulheres dos homens, as francesas se preocupam em permitir a aproximação entre eles, mesmo que implique riscos.
O que o manifesto francês e as entrevistas de Catherine Millet, uma de suas promotoras, têm acentuado é que não se deve permitir que o risco da violência sexual paute a atitude das mulheres em relação aos homens, e, muito menos, a relação das mulheres consigo mesmas. Não deveríamos, diz ela, fomentar uma cultura feminina que tenha em seu centro a ideia da mulher como vítima dos homens e nem conceber uma sociedade que tenha como preocupação essencial proteger o corpo feminino do olhar, da palavra e do toque masculino.
Ela não nega, imagino, que a violência contra as mulheres existe de forma epidêmica. A violência do assédio, do estupro e da morte. As estatísticas são eloquentes a esse respeito e revelam uma situação dramática. Muitos homens, no mundo inteiro, e enfaticamente aqui no Brasil, ainda acham que têm direito a se servir na marra do corpo das mulheres. Isso é um crime inaceitável. Campanhas como o Chega de Fiu-Fiu e Meu Primeiro Assédio serviram, entre nós, para revelar a dimensão da revolta feminina e para inibir comportamentos machistas, dentro e fora dos ambientes de trabalho.
O manifesto francês – erroneamente, a meu ver – não enfatiza a violência que ainda persiste contra a mulher e nem o resultado positivo que campanhas como a do #MeToo têm obtido em ampliar a consciência geral (e das mulheres em particular) a respeito dela.
Mas ele sugere outra coisa, que me parece importante: que, na tentativa de eliminar toda violência física e simbólica contra a mulher, uma parte do movimento feminista preconiza um mundo asséptico, no qual as relações entre homens e mulheres seriam rigidamente controladas, regradas e combinadas.
Há um trecho ambíguo do manifesto em que se diz que mesmo uma cantada “insistente ou desajeitada” não é delito, e outro, ainda mais provocativo, que sugere que uma mulher pode escolher ignorar uma encoxada no metrô, se assim o desejar. Para quem convive no Brasil com a violência e a onipresença do assédio (nas ruas, no trabalho, no transporte público), essas palavras podem ter parecido delírio. Ou escárnio.
Mas, descontadas as diferenças culturais (a violência pública contra as mulheres na França deve ser menor do que no Brasil), acho que as francesas tentaram, com essas declarações polêmicas, atrair atenção para uma zona cinza de ambiguidades onde ocorre parte importante das interações entre homens e mulheres, e na qual se abrigam elementos vitais da subjetividade humana.
Sem uma certa tensão, sem algum tropeço, nenhuma aproximação real entre homens e mulheres é possível. Humanos são internamente fraturados e suas interações são fadadas a ser problemáticas, regidas por leis que não operam conscientemente. Para que elas funcionem minimamente, é preciso haver liberdade e espontaneidade – além de um grau elevado de respeito mútuo, claro.
Ao tentar eliminar a ambiguidade das propostas e comportamentos sexuais, ao tentar retirar todo risco físico e simbólico das aproximações entre homem e mulher, abre-se a possibilidade de robotizar e controlar mais um aspecto do comportamento humano, já tão cerceado pelas rotinas normativas da família, da escola, do trabalho, da religião, do mercado. É nesse sentido, eu acho, que o manifesto francês acusa as feministas do #MeToo de serem vitorianas.
Depois de décadas lutando para obter liberdade sexual e agir sem restrições no campo erótico e afetivo, as mulheres são convidadas a abrir mão de parte imponderável dessa mesma liberdade para adotar um minueto de relações cautelosas e reguladas com o sexo masculino. A francesas dizem, nas entrelinhas do seu texto, que essa segurança pode ter um preço existencial e psíquico elevado, para todos os envolvidos.
É importante lembrar, como faz o manifesto, que não se deveriam julgar as escolhas subjetivas de cada mulher. Se ela deseja se engajar em relações masoquistas, problema dela. Se ela quer ser o objeto de um homem, o prazer é dela. Se ela tem fantasias coletivas de vídeo pornô, quem tem direito a legislar sobre isso? O fundamental é garantir que todas, em todos os momentos, tenham direito de dizer não a qualquer um, em qualquer circunstância, sem sofrer represálias de qualquer espécie.
É claro – e aí reside outra falha do manifesto – que há mulheres que precisam de proteção. Nem todas são, como Millet, capazes de lidar de forma destemida com a sexualidade e com a agressividade masculina. Nem todas são capazes de dizer não. Muitas não conseguem se defender da lascívia inescrupulosa de parentes, vizinhos, chefes, colegas ou estranhos, e carregam pela vida traumas e marcas debilitantes. Além de sofrer a violência, culpam-se por sua própria incapacidade de reagir, embora a passividade feminina tenha sido cuidadosamente construída por séculos de educação e repressão machistas.
Sim, existem vítimas reais no mundo inteiro, assim como existem predadores. Mas é de se perguntar se as relações entre todos os homens e mulheres do planeta devem ser codificadas tendo vítimas e predadores como parâmetro, em vez de homens e mulheres livres e iguais. Acho que o manifesto francês lança um olhar didaticamente cético sobre a utopia feminista que pode emergir dos novos códigos de conduta e dos esculachos virtuais.
Como homem, como simpatizante do movimento das mulheres, acho que não faria mal a ninguém se as ideias divulgadas pelas 100 francesas no Le Monde fossem discutidas como uma contribuição oportuna e corajosa ao debate feminino, e não como ataque inimigo. A mim, as duas correntes de pensamento parecem complementares.
Diante da enorme violência contra as mulheres, é necessário denunciar e criminalizar os abusos, como querem as americanas. Ao mesmo tempo, como desejam as francesas, é preciso conciliar esse movimento com a liberdade essencial ao encontro erótico e afetivo entre homens e mulheres.
Se ninguém tentar impedir o debate das ideias, acho que todas as mulheres sairão ganhando desse embate. Entre elas as brasileiras, que, por afinidade cultural, têm muito mais a ver com a sensibilidade francesa do que com a rigidez dos comportamentos americanos.

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