A temporada de premiações nos EUA iniciou. Não foi de forma tranquila, ao que parece a cada ano um aspecto do status quo existente na industria do entretenimento, ano passado a Academia respondeu ao protesto iniciado por Jada Pinkett-Smith, Spike Lee e a tag #OscarSoWhite em 2016. Houve aquela atrapalhada na hora de entregar a premiação para o melhor filme do ano, é inesquecível lembrar da equipe de La La Land constrangida por que quem tinha que estar lá em cima era a equipe de Moonlight.
Mas é perceptível o quanto a empatia do grosso da sociedade, em especial quem acompanha o mundo do entretenimento, tem visivelmente dois pesos e duas medidas para temas relacionados a gênero e raça. Como se as duas coisas não estivessem intimamente ligadas como parte da estrutura de opressão que vivemos em nossa sociedade. Isso já era perceptível em 2015, quando Selma havia obtido apenas uma indicação ao Oscar e sido um dos filmes com menos publicidade das indicações da Academia. A diferença de como foi recebido, naquele momento, o discurso genial de John Legend contra o encarceramento em massa e o também forte discurso de Patrícia Arquette sobre igualdade salarial era algo visível.

Domingo (07/01) o Golden Globes 2018 iniciou a nova temporada de premiações. A premiação foi perpassada pelos temas da inclusão de gênero, igualdade salarial e combate ao assédio sexual nos locais de trabalho. Uma ação chamada de #TimesUp e que levou o grosso das mulheres que foram ao Bervely Hilton prestigiar o evento que premia as melhores produções para TV e Cinema se vestiram de preto, não apenas as indicadas ou acompanhantes, mas as equipes que cobriam o Golden Globes também estavam de preto em um sinal de protesto contra a série de denuncias que eclodiram no final de 2017 sobre assédio sexual envolvendo o produtor Harvey Weinstein e o ator Kevin Spacey.
O impacto foi tanto que o tema da cobertura do tapete vermelho ao conversar com as mulheres não era o estilista do vestido, como de costume, mas sim os motivos para que tantas atrizes, diretoras e produtoras estarem usando o preto em uma das principais noites de premiação da industria hollywoodiana. A E! Entertaiment foi cobrada ao vivo pelo fato de não pagar igualmente apresentadores e apresentadoras do canal. A cobrança veio durante entrevista feita com Eva Longoria e Debra Messing.
Podemos fazer o questionamento que for a industria de entrenimento e qual consciência coletiva ela privilegia manter, mas o impacto que ações como este protagonizadas por mulheres com referência mundial de outras mulheres não pode ser visto de forma leviana. #TimesUp conseguiu modificar a pauta do tapete vermelho do Golden Globes para o tema da campanha e não a velha pauta do vestido, estilista e afins. Isso não é qualquer coisa.
Mas vamos aos incômodos, por que não apenas de tombamento se fez essa noite. O primeiro de todos foi a cobrança sobre presidente da Hollywood Foreign Press Association, Meher Tatna, sofreu nas redes sociais por não estar vestida de preto como as outras mulheres. Ora, Tatna é uma mulher não-branca de Mumbai e em sua cultura momentos de celebração não se veste preto. Tudo bem, ela é a presidente da organização responsável pelo Golden Globes, mas também é uma mulher não-branca que tem suas próprias tradições culturais junto a sua família e povo e isso precisamos entender antes de qualquer questionamento que apenas traduza uma perspectiva ocidental sobre a cultura.
O segundo ponto é que mesmo com o discurso maravilhoso de Elisabeth Moss sobre a história das mulheres ser a história que realmente deva ser contada, pois é a história de parte considerável da população mundial, e a Barbra Streissand lembrando que é a única mulher a já ter ganho um Golden Globe como melhor diretora. O grosso da premiação foi profundamente branco, as duas únicas pessoas não-brancas a receberem o prêmio em categorias foram Sterling K. Brown por This is Us e Aziz Ansari por Master of None.
Por fim, ainda tivemos que ver algumas figuras notoriamente acusadas de assédio em Hollywood figurarem pelo Bervelly Hilto: James Franco, Casey Affleck, Gary Oldman, Hugh Grant, Kirk Douglas e tantos outros atores consagrados em momentos chave da premiação.
É por conta dessas coisas que o discurso de Oprah Winfrey ao receber o Cecil B. DeMille se torna tão mais potente e necessário. Winfrey foi a única mulher negra a ser premiada na noite e fez um discurso sobre violência sexual de constranger a qualquer hipócrita presente no recinto. O debate racial nos EUA ganha novos contornos ano após ano, só vermos o crescimento da campanha por desencarceramento encabeçada por John Legend, as importantes movimentações contra Heritage no sul dos EUA e o trabalho desenvolvido pelo Black Lives Matter nos últimos anos. De forma brilhante Winfrey deu uma resposta ao conservadorismo que toma forma no país, constrangeu os hipócritas de plantão presentes na platéia e ainda fez a necessária localização sobre o quanto a pauta racial anda de forma indissociada da pauta feminista.
Oprah Winfrey foi certeira em seu discurso, localizou a violência machista andando de mãos dadas com o racismo ao relatar o caso de estupro de Recy Taylor que foi um baque importante pra comunidade de mulheres negras dos EUA e teve como principal investigadora a ativista Rosa Parks.
“Rosa Parks se tornou a principal investigadora em seu caso e juntas elas procuraram justiça. Mas justiça não era uma opção na era de Jim Crow. Os homens que tentaram destruí-la nunca foram processados. Recy Taylor morreu dez dias atrás. Ela viveu, como todos vivemos, muitos anos numa cultura quebrada por homens brutalmente poderosos. Por muito tempo, mulheres foram desacreditadas se ousavam falar suas verdades contra o poder desses homens. Mas o tempo deles acabou. E eu só espero que Recy Taylor tenha morrido sabendo que sua verdade, como a verdade de tantas outras mulheres que foram atormentadas naqueles anos, e que são até hoje atormentadas, continua viva. Estava em algum lugar no coração de Rosa Parks, quase 11 anos depois, quando ela tomou a decisão de ficar sentado no ônibus em Montgomery, e está aqui com todas as mulheres que escolhem dizer ‘eu também’. E em cada homem que escolhe ouvir. Na minha carreira, o que sempre tentei fazer, seja na televisão ou no cinema, é dizer algo sobre como homens e mulheres realmente se comportam. Dizer como vivenciamos vergonha, como amamos e como nos enfurecemos, como falhamos, como recuamos, perseveramos e como superamos. Entrevistei e mostrei pessoas que resistiram às coisas mais feias que a vida pode jogar em você, mas a qualidade que todas elas parecem compartilhar é a capacidade de manter a esperança por uma manhã mais brilhante, mesmo durante nossas noites mais sombrias. Então eu quero que todas as garotas assistindo aqui, agora, saibam que um novo dia está por vir! E quando esse novo dia finalmente chegar, será por causa de muitas mulheres magníficas, muitas das quais estão aqui conosco nesta noite e alguns homens bastante fenomenais, lutando para garantir que se tornem os líderes que nos levem ao tempo em que ninguém nunca mais precise dizer ‘eu também’.” (Tradução retirada do M de Mulher)
Falou da importância que foi quando ela viu Sidney Poitier ganhar um Oscar, e olha que Poitier sempre foi muito criticado pelo movimento negro dos EUA. Falou do que significa ser uma mulher negra em um mundo racista e misógino. A noite era de Winfrey e com #TimesUp rolando e a baixíssima representatividade negra indicada nas categorias só tornou o momento mais importante e relevante.
Sim, a temporada de premiações de 2018 iniciou em um gás muito diferente das outras temporadas. A pauta das mulheres está no centro do debate, não apenas nas manchetes sensacionalistas, não falando apenas de Hollywood, mas falando sobre o quanto o machismo nos atinge de todas as formas. #TimesUp localiza muito bem isso, pois a fala sistemática das atrizes é sobre o quanto a violência machista em todos os seus graus atinge a todas as mulheres no mundo. Eu realmente espero que esse vigor de denuncia e enfrentamento seja visto nas outras premiações da temporada, principalmente no Oscar, assim como espero que o discurso de Oprah Winfrey ecoe nos próximos eventos da temporada e tenhamos não apenas premiações com alto teor de denuncia do machismo na industria, mas também do racismo.
Que venham o Critics ChoiceSAG e Oscar, pois nunca fiquei tão entusiasmada com uma temporada de premiações.