Diretor mexicano leva o prêmio de melhor direção no Globo de Ouro por ‘A Forma da Água’, história de amor entre um ser anfíbio e uma faxineira muda
CARMEN COCINA
Sitges
El País
Outro mundo – um verdadeiramente fantástico – é possível. Guillermo del Toro (Guadalajara, México, 1964), deu sua contribuição para aproximar esse desejo à realidade ao fazer com que um filme de gênero (fantástico) se levante como vencedor absoluto em um dos quatros grandes festivais de cinema do mundo (Veneza) e vença o Globo de Ouro de melhor direção (além de melhor trilha sonora). Um feito para a História e um tapa na cara do núcleo duro da crítica ancorado em uma ultrapassada concepção da sétima arte, segundo a qual o fantástico não é suficientemente sério.
Mas aí está: a história de uma faxineira muda que se apaixona por um maltratado anfíbio humanoide nos corredores cinzas de um laboratório norte-americano durante a Guerra Fria disparou os níveis de empatia e venceu o grande prêmio do último Festival de Cinema de Veneza. Só isso. Falamos, claro, do novo filme de Del Toro, A Forma da Água, que estreia em 1 de fevereiro no Brasil.
O diretor mexicano, um outsider, vê tudo com calma: “Não acredito que um só caso mude algo a nível geral”. Mais conciliador do que categórico, mas sempre com as ideias claras, seu discurso em A Forma da Água precisa ser entendido menos como um chamado à insurgência (mas também é) e mais como uma reivindicação da diferença individual frente à asfixiante uniformidade institucional. Algo sobre o que um inconformista como Del Toro fala com prazer durante essa entrevista.
Pergunta: A Forma da Água é o primeiro filme fantástico a obter o prêmio de melhor filme no Festival de Veneza. Acha que se aproxima uma certa abertura em relação ao não poucas vezes subvalorizado cinema de gênero?
Resposta: Não sei se é para tanto. Com melhores e piores resultados, estou há um quarto de século fazendo-o. Em minha carreira existe uma coerência que permite que as pessoas digam: “Bom, isso é o que ele faz, não importa como se chama”. Em todo caso, o gênero nos deu algumas das imagens primigênias e primordiais do cinema: Nosferatu, o Frankenstein de James Whale, Lon Chaney... O cinema nasce com duas vocações: a da crônica, encarnada pelos Lumière, e a de fábula, por Méliès. Inevitavelmente, ambas se combinam. Tolkien expressou uma máxima preciosa em seu ensaio Sobre Contos de Fadas: “É preciso fazer o mundo suficientemente reconhecível para nos ancorar em uma realidade e suficientemente mágico para nos transportar para fora dela”.
P: Sua obra é prolixa em monstros e fantasmas. De onde vem essa inclinação?
R: Já começa na minha infância. Em meu país existe uma tendência à fabulação, o que chamamos de alebrijes: mundos fantásticos que se aproximam do mágico o máximo possível. Cresci nos anos sessenta, vendo o cinema fantástico da Universal e o de terror da Hammer, assim como uma enorme invasão de caricaturas e filmes de ficção científica japoneses. Foi um momento muito rico e tudo isso convergiu em minha imaginação de garoto.
“Ninguém torce pelos aviões em ‘King Kong’, todo mundo aposta no gorila. Acho que essa segunda opção se encaixa melhor com minha forma de entender o mundo”
P: O senhor tende a mostrar um viés amável dos seres sobrenaturais. Por que essa simpatia?
R: O gênero de terror apresenta desde suas origens uma cisão: a visão pró-estrutura, em que o monstro, o outro, se apresenta como um agente do além que causa medo, e a visão pró-anarquia, em que é um mensageiro que desperta empatia, nos conectando a uma realidade terrenal. Existem filmes xenófobos, onde se teme o que vem de fora, e existem filmes integradores, em que o monstro é o mais humano do elenco. Ninguém torce pelos aviões em King Kong, todo mundo aposta no gorila. Acho que essa segunda opção se encaixa melhor com minha forma de entender o mundo.
P: Muitos de seus personagens são criaturas frágeis que encontram alívio em outros que sofrem. O que é mais comum, a empatia ou a vontade de submeter?
R: O que nos move à ação é a empatia. Em quase todos os meus filmes cada ser é incompleto em separado. Quando nos unimos nos completamos. A união leva à autoaceitação e dá força aos diferentes, que por sua condição são invisíveis ao mundo.
“Com raras exceções, o caldeirão da maldade está na infância. Se pudéssemos evitar em uma geração, só uma, os maus-tratos e a incompreensão, o mundo mudaria”
P: De onde surgiu a ideia para ‘A Forma da Água’?
R: Começou quando eu tinha seis anos. Vi O Monstro da Lagoa Negra na televisão, essa criatura nadando por baixo de Julie Adams e seu maiô branco. Eu me apaixonei pelos dois e pela ideia desse amor: queria que acabassem juntos, coisa que não aconteceu. De modo que ficou gravada em minha cabeça a ideia de corrigir esse erro cinematográfico [risos]. Procurei muitas formas, até que em 2011, tomando café da manhã com Daniel Kraus [co-escritor de seu romance Trollhunters] ele me disse: “Tenho essa ideia de uma mulher que trabalha como faxineira em um escritório ultrassecreto no qual há um anfíbio”. Isso me pareceu o caminho perfeito, porque era pouco comum. Se você vai me contar um filme de super-herói, me interessa saber o que acontece quando eles vão embora: quem lava a roupa do Super-Homem, quem limpa esse local chamado A Fortaleza da Solidão. Com meu filme acontece a mesma coisa: prefiro centrar-me no ponto de vista do monstro e das pessoas que tomam conta dele.
P: Por que decidiu ambientar a história nos tempos da Guerra Fria?
R: É um reflexo do presente. O sonho americano que evoca Trump com seu “façamos a América grande novamente” é idêntico ao estado mental dos EUA em 1962, com JFK na presidência, a corrida espacial, as urbanizações, os carros de linha... Era a época ideal para o homem branco protestante anglo-saxão, mas se você fazia parte de uma minoria estava ferrado. Isso é exatamente o que está acontecendo agora: dia a dia vivemos a repressão, o racismo e a intolerância sexual da mesma forma que aconteceu com esse sonho que nunca se realizou, porque tudo parecia ótimo até o assassinato de Kennedy e o aumento da violência no Vietnã.
P: A hostilidade entre Trump e Kim Jong-un é alarmante. Se o senhor escrevesse um roteiro sobre isso, existiria alguma forma de consertar a situação sem precisar recorrer a um ‘Deus ex machina’?
R: A situação global é de um surrealismo pavoroso. O dia a dia foge a minha compreensão. Um centésimo dos escândalos revelados deveria bastar para produzir uma mudança presidencial nos EUA. O que torna nosso tempo diferente é que suas pessoas, sejam de direita e de esquerda, são incrivelmente ativas: no Twitter, votando, fazendo doações... A população está mais ativa politicamente do que nunca. A mudança virá das pessoas. Dos políticos só podemos esperar politicagens. Eles sim tiram meu sono.
P: O individual é então uma alternativa sólida ao institucional?
R: Sem dúvida. E a coletividade pode existir sem instituições no meio. Uma família cujos membros vivem em separado, mas com a vontade de permanecerem unidos, é uma grande família. O Exército, a Igreja, a Escola e a Família são estruturas que se unem e se sustentam mutuamente não pelo desejo de cada um de seus membros, mas por ideologias. E a ideologia é a morte do pensamento.
P: Seus filmes às vezes exploram a origem do mal, que costuma explicar como fruto de um trauma. Acha que não existe o mal por geração espontânea?
R: Com raras exceções, o caldeirão da maldade está na infância. Se pudéssemos evitar em uma geração, só uma, os maus-tratos e a incompreensão, o mundo mudaria. A violência espiritual, física e moral que a família exerce à criança é o germe do horror.
P: Continua apostando em efeitos especiais mecânicos, apesar de filmar em digital. Não é um anacronismo curioso?
“A população está mais ativa politicamente do que nunca. A mudança virá das pessoas. Dos políticos só podemos esperar ‘politicagens’. Eles sim tiram meu sono”
R: Eu gosto de usar efeitos físicos sempre que é possível e adotar o digital com comedimento. Essa é agora a segunda natureza do cinema, e eu o vivo de maneira muito espontânea, ainda que às vezes voltaria ao celuloide unicamente pela possibilidade que traz de formatos maiores. Alguns diretores, como Tarantino e Nolan, defendem expressamente a recuperação do analógico, mas eu estou muito confortável no digital.
P: A indústria audiovisual aposta agora nas séries, que vivem sua época de ouro graças a plataformas pagas como a Netflix e a HBO. O senhor mesmo está por trás de uma, ‘The Strain’. Acha que a longo prazo essa tendência acabará prejudicando o longa-metragem e as experiências em salas de cinema?
R: Dizem que as séries estão ganhando terreno ao cinema e que acabarão matando-o, da mesma forma que se disse que o cinema mataria o rádio, a televisão mataria o cinema e o rádio, a leitura. Mas continuamos tendo rádio, televisão, cinema e até ópera. Os meios mudam de tamanho e de público, mas não desaparecem. Não acho que o cinema irá desaparecer, mas irá mudar. Há uma parte dessa narrativa de fôlego que pode passar à televisão a cabo, mas suas imagens não têm a permanência que têm no cinema. As histórias e os personagens, sim; você nunca irá esquecer de um Walter White [protagonista de Breaking Bad]. A narrativa hoje em dia se inclina por esses ganchos, que funcionam muito bem na televisão. Mas a imagem, a sugestão, a emoção, para mim continuam no cinema.
P: O senhor completou 53 anos há pouco tempo. Como comemorou?
R: Eu me reuni com alguns amigos em Londres para jantar no restaurante The Ivy, em que servem um excelente frango assado. Demoram muito a fazê-lo, mas a espera vale a pena. Como quase tudo nesse mundo.
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