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domingo, 28 de janeiro de 2018

Esta mulher é de perder a cabeça; e não só em Bollywood

Protestos contra filme com personagem fictícia expõem como o caldeirão religioso da Índia está sempre perto de ferver e desencadear atrocidades

O personagem muçulmano é um vilão da pesada: bruto, bárbaro e carnívoro. Como hoje praticamente todo mundo imita alguma coisa de Game of Thrones, lembra Khal Drogo, o grandalhão que foi casado com Daenerys Targaryen.
O personagem hinduísta é nobre, refinado e vegetariano. Desejada pelo primeiro e casada com o segundo, a rainha Padmavati é uma espécie de Helena de Tróia indiana. Sua beleza desencadeia uma guerra.
Pela lógica, o filme com o nome da rainha deveria provocar outra onda de conflagração entre as duas principais religiões da Índia – o hinduísmo, majoritário e nativo, com quase um bilhão de adeptos, e o islamismo, uma potente minoria de 170 milhões de fiéis.
Como a lógica é um artigo sempre em fluxo no universo de complexidades indianas, os protestos depois do lançamento do filme, ataques durante a filmagem, atos de sabotagem e até cabeças colocadas a prêmio – da atriz principal, Deepika Padukone – foram feitos por uma organização que representa a casta rajapute e por líderes regionais do Barathia Janata, o partido de ideologia hinduísta no poder.

Muitos dos pretextos para as manifestações não constavam – ou, convenientemente, sumiram — do roteiro. O principal: Padmavati apareceria em cenas românticas num sonho do personagem muçulmano, o sultão de Déli.
Como Helena, Padmavati é uma personagem de existência histórica discutível. Só aparece num poema épico escrito 200 anos depois, misturando poder, desejo e uma mulher de beleza legendária, capaz de levar dois reinos à guerra.
A guerra foi real, segundo registos que datam do século XIII. Alauddin Khalji, um dos muitos conquistadores muçulmanos da Índia, derrotou Rawal Ratan Singh, príncipe do reino de Chittorgarh.
A parte fictícia é que o sultão tinha ficado obcecado pela beleza de Padmavati, a mulher número dois do príncipe. Ao visitar o reino independente, exigiu vê-la. Permitiram apenas que ele tivesse um vislumbre, através de um espelho. Não é difícil concluir que a partir daí a coisa degringolou.
Para não cair nas garras do sultão, vitorioso com consequências previsíveis, a rainha se jogou no fogo, juntamente como as outras mulheres do palácio. Este suicídio coletivo de mulheres de casta aristocrática está na origem da prática da imolação das viúvas na pira funerária dos maridos que persistiu até recentemente na Índia, apesar de sucessivas proibições.
A Índia e o que é hoje o Afeganistão começaram a ser invadidos por conquistadores árabes desde o início do nascimento do Islã, há quase 1 500 anos. À medida em que a religião pregada pelo profeta Maomé se expandia, mudaram os conquistadores, indo dos persas aos turco-mongóis.
Por trás de maravilhas como o Taj Mahal, o monumento funerário mais famoso do mundo, encomenda de um imperador mongol para eternizar a memória da esposa favorita, está “provavelmente a história mais sanguinolenta da História”, na definição do americano Will Durant.
Além de massacres, escravização e conversões forçadas, a destruição de incontáveis templos hinduístas, abominados como monumentos à idolatria pelos guerreiros da religião cujo pilar principal é o monoteísmo, a conquista muçulmana deixou uma marca que atravessou os séculos.
Deixou também uma população de convertidos que, como é natural, adaptou a nova religião aos costumes milenares, “indianizando-a” e absorvendo conhecimento e tradições dos invasores. O sufismo, voltado para a espiritualidade e uma espécie de harmonia cósmica, encontrou um campo fértil para se propagar.
As histórias de convivência e tolerância desabaram catastroficamente em 1947 quando a independência da Índia, em lugar de celebração nacional, provocou um racha entre as duas populações e o nascimento de dois países visceralmente inimigos.
Na partilha, ou partição, mais pessoas foram mortas em menos tempo do que nos outros grandes genocídios do século XX. Pior ainda: homens comuns tornaram-se assassinos, estupradores e saqueadores, uma marca indelével.
O número de mortos é calculado em até dois milhões, num período concentrado de poucos meses. O deslocamento populacional foi estarrecedor: 14 milhões de pessoas, entre hinduístas e sikhs que fugiam do que passava a ser o Paquistão, indo para a Índia, e muçulmanos fazendo o caminho oposto, todos cercados de atrocidades indescritíveis.
A inimizade entre Índia e Paquistão nasceu banhada de sangue, produziu duas guerras por causa da disputa pela Cachemira, levou os dois países a conseguir bombas atômicas.
O radicalismo muçulmano ferve no Paquistão e alcança sua obscura teia de serviços secretos. O hinduísmo também tem manifestações fundamentalistas das quais as ameaças contra o filme sobre a fictícia rainha Padmavati são um exemplo ameno.
Quando o Barathia Janata conseguiu a predominância que levou ao poder o primeiro-ministro Narendra Modi, foram feitas previsões tenebrosas. O Partido do Povo Indiano é etno-nacionalista, uma expressão ressuscitada no Ocidente com a ascensão de Donald Trump.
Modi está sendo muito melhor do que as previsões. Limou fora a retórica de uma Índia para os hinduístas, não tomou iniciativas que denotem exclusão e está concentrado no crescimento econômico, com taxas “chinesas” na casa dos 7%.
Está aí provavelmente a maior esperança de que Deepika Padukone e os dois bonitões que fazem o herói e o vilão poderão eventualmente dispensar a segurança reforçada depois das ameaças e dos ataques fundamentalistas e se concentrar na dança, nas roupas suntuosas, nos olhares melosos e nas insinuações românticas que fazem a glória de Bollywood.

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