Estrelado por Steve Carell e Timothée Chalamet, filme baseado em livro de memórias assume olhar de pai de jovem viciado para falar de drogas, reabilitação e laços
por Matheus Fiore
Histórias sobre o vício e suas consequências não são novidade. “Aos 13”, “Diário de um Adolescente” e “Trainspotting” são apenas alguns dos exemplares de obras que nos apresentam a personagens vítimas da dependência química. O que “Querido Menino”, nova obra do belga Felix van Groeningen, faz não é inédito, mas é ligeiramente diferente dos exemplos citados e da maioria dos longas-metragem que falam sobre drogas. Aqui, acompanhamos a mesma trajetória de decadência para o vício, mas sob a perspectiva paterna. Steve Carell interpreta David Sheff, um pai de classe média que vê seu primogênito adolescente, Nicholas (Timothée Chalamet), afundar-se em metanfetamina.
A estrutura de “Querido Menino” não é lá muito inovadora. Acompanhamos aos vários ciclos da luta de Nicholas (ou Nic, como é carinhosamente chamado) contra seu vício. A cada nova jornada, uma recaída ainda mais marcante do que a anterior, e uma maior a dramatização em cima dos conflitos entre David e seu filho. Elementos são inseridos pouco a pouco para dar maior variação à trama, como a introdução da mãe de Nic, que só passa a ser uma personagem mais presente na segunda metade da projeção. Apesar de não ser inovadora, a estrutura permite que “Querido Menino” funcione como um registro dos ciclos criados pelo vício e da necessidade de haver um acompanhamento fiel. A obra escolhe, em vez do drama pesado, a conscientização, fazer de si mesma um objeto de informação.
Uma escolha basilar para o desenvolvimento de “Querido Menino” é o ponto de vista. A escolha de nos colocar na trama pelos olhos de David, não de Nicholas, implica em muitas escolhas e renúncias. Quando o jovem desaparece, por exemplo, é comum que não acompanhemos a rotina do personagem, mas sim as buscas e esforços de seu pai para compreender melhor o vício e achar uma melhor maneira de combatê-lo. Temos, portanto, uma obra que deixa de mostrar muita coisa, justamente porque os momentos mais dramáticos da trajetória de Nic acontecem quando o personagem de Chalamet está sozinho ou com seus amigos, distante de seu pai, e a câmera de Groeningen opta pelo desespero de quem está no escuro, não pela dor de quem está perdido.
Fica a impressão, porém, que Groeningen e seu montador, Nico Leunen, não apostam tanto quanto poderiam no poder da dúvida. As cenas de David completamente destruído emocionalmente em sua casa, ansiando por qualquer nova informação sobre o paradeiro de seu filho, por exemplo, seriam muito mais eficientes se não fossem acompanhadas justamente pelas respostas das perguntas do pai. O fato de quase sempre sabermos o paradeiro do personagem diminui bastante o potencial dramático criado pela ansiedade do protagonista. É uma escolha decorrente do fato de a obra manter um olhar observador e distante, mas que acaba resultando em um distanciamento que castra o drama da obra.
As duas atuações centrais são muito eficientes, principalmente por ambas recorrerem a construções minimalistas. Enquanto Chalamet opta por, em vez de criar uma caricatura, mostrar o vício por meio da apreensão, da ansiedade e da irritação de um rapaz mentalmente desequilibrado, Carell esculpe um pai sereno e paciente, mas que parece estar prestes a implodir a qualquer momento. David é um personagem que precisa administrar duas vidas, a de guardião do filho dependente químico e a de membro da família que tem com sua esposa e os dois filhos pequenos; David sabe que, no meio do caminho, diversas vezes terá que fazer escolhas que prejudicarão um dos lados – como a direção deixa claro ao trazer o personagem observando sua família enquanto, ao telefone, ouve da mãe de Nic o pedido para ir ajudá-la a recuperar o rapaz, mais uma vez afundado em uma de suas crises.
Steve Carell e Timothée Chalamet atuam de forma eficiente por apostarem no minimalismo
Um ponto mal trabalhado pela montagem é as idas de voltas no tempo. Alternando entre diferentes momentos do presente e o passado da família Sheff, “Querido Menino” acaba a todo momento rompendo seu próprio ritmo e, pior, impedindo que alguns momentos tenham tempo de tela suficiente para respirar e impactar dramaticamente na narrativa. Não chega a ser um caso de cortar cenas que sobram, apenas de encontrar melhor o momento de encaixar os trechos que são temporalmente desconexos a fim de manter um sentido mais claro.
Se nesses pontos, a montagem de Leunen acaba não aproveitando ao máximo o potencial narrativo de “Querido Menino”, ao utilizar situações semelhantes de forma retroativa para estabelecer paralelos, ela é muito feliz. Há de se ressaltar, como exemplo, as cenas de Nic brincando com seus irmãos no gramado de casa com o pai ao fundo, momento que acaba sendo referenciado duas vezes: primeiro quando o próprio Nic aparece conversando com seu pai, no mesmo gramado, de forma séria – ou seja, as brincadeiras cederam lugar a reuniões familiares para tentar garantir que o rapaz pelo menos tenha um futuro –; o segundo quando o mesmo jardim aparece vazio, mostrando como, naquele momento, a luta dos Sheff para libertar Nic do vício parecia perdida e resta apenas o vazio da ausência do menino.
Em certos momentos, Groeningen parece não tão interessado em desenvolver as ideias do filme, atendo-se a repetir ciclicamente as situações nas quais Nic se encontra em virtude da dependência química. Ao longo da projeção, fica claro que a intenção do belga é, como dito anteriormente, manter um olhar deliberadamente distante, para fazer de sua obra um filme-denúncia – ou seja, sem focar na conclusão daquela jornada e de seus percalços, mas sim em fazer uso da melanc´ølica situação para conscientizar seu público. Tal ideia é bem estabelecida pelo já citado distanciamento do diretor quando diante dos conflitos, mas poderia ser melhor aprofundada caso houvesse mais calma no uso da reabilitação, por exemplo, elemento esse que é minimizado em prol da repetição cíclica de outras situações.
A intenção de Groeningen é fazer de sua obra um filme-denúncia
Essa ideia acaba evidenciada pelos créditos finais, que fazem comentários sobre as mortes de dependentes químicos. É, mais uma vez, uma situação de escolhas e renúncias: Groeningen põe de lado o potencial dramático de seu filme em prol de um posicionamento humanitário, algo que, mesmo que seja corajoso – afinal, expor a decadência da condição de um dependente químico é algo que, por si só, já impacta bastante, e abdicar disso é uma escolha interessante –, acaba minando o potencial de toda a trajetória do protagonista e sua relação com seu filho, que nunca são aprofundadas por sempre haver algum novo evento que rompa com os acontecimentos anteriores.
O que permite que uma narrativa funcione, mesmo que seja truncada e asséptica – o fato de a obra nunca mergulhar no fundo do poço juntamente a Nic afasta o público de um maior impacto –, é o fato de o olhar de Groeningen mostrar a compreensão do cineasta de que é a situação retratada é mais complexa do que ajudar ou não um familiar necessitado. Ao fim da projeção, “Querido Menino” consegue, sim, ser um filme-denúncia, mesmo que para isso deslize em alguns moralismos bobos (como sugerir que a maconha é a porta de entrada para outras drogas), mas consegue também criar uma história que se sustenta pela força da compaixão e do amor presentes nos laços de David e Nic.
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