Fonte: Agência Pública
Por Julia Dolce
Entregadoras, motoristas, manicures e diaristas explicam como a informalidade dos aplicativos precariza suas vidas
Anos de experiência como motorista mecânica de testes em fábricas de automóveis, onde teve aulas de postura correta ao volante, não foram suficientes para impedir que Tatiana Francisca de Souza adoecesse dirigindo com aplicativos. Mineira de 29 anos, ela foi demitida em 2017, quando se despediu da carteira assinada e do acompanhamento semestral que a empresa fazia de sua saúde e começou a trabalhar com a Uber. No início deste ano, as longas jornadas que precisa fazer para pagar as contas começaram a gerar os primeiros impactos.
Primeiro veio o diagnóstico de um princípio de infarto, gerado pelo estresse excessivo que passava nas ruas. Depois, uma inflamação na região cervical que levou à perda dos movimentos da mão direita. As doenças ocupacionais deixaram Tatiana parada por algumas semanas. Ela ouviu de três médicos que teria que diminuir o tempo de trabalho se quisesse melhorar. Como consequência, as contas foram se acumulando. Única fonte de renda da família, Tatiana sustenta as duas filhas pequenas, de 5 e 8 anos, além da mãe idosa, com os ganhos como motorista de aplicativo.
Depois de ter recuperado o movimento dos dedos em cinco sessões de fisioterapia, ela interrompeu o tratamento para voltar a rodar. “Bagunçou tudo. Quando chegou em março, eu tive que rodar mais para pagar o aluguel do meu carro, que estava atrasado. Aí vieram as contas. Estou com três contas de luz e três de água sem pagar.” Tatiana diz que não tentou entrar em contato com a empresa porque não existe “espaço para isso”. “A Uber não abre suporte, não quer nem saber se você está trabalhando, passando mal. Então os motoristas são muito unidos, somos uns pelos outros.”
Tatiana faz parte dos quase 4 milhões de pessoas que formam a categoria que trabalha para empresas de aplicativos de serviços no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para essas empresas, elas são descritas como “trabalhadores autônomos”, não mantendo nenhum vínculo trabalhista.
Se a “uberização”, como o fenômeno é conhecido, há algum tempo desperta discussões na sociedade, principalmente pela insegurança trazida pela informalidade, o recorte de gênero dentro dela ainda é assunto pouco pautado. Para as poucas pesquisadoras que se debruçam sobre ele, assim como acontece em outros formatos trabalhistas, as mais prejudicadas com essa transformação econômica são as próprias mulheres.
É o que aponta a advogada trabalhista Fernanda Caldas Giorgi. “É uma desigualdade transversal, não importa quantas formas de trabalho e legislações forem criadas, existirá uma aplicação diferente entre homens e mulheres”, considera. Segundo a advogada, devido à cultura patriarcal, essa desigualdade já é presente no trabalho formal e expressa em pontos que vão desde as diferenças salariais até a dupla jornada exercida por mulheres que, além de trabalharem, ainda são donas de casa e cuidam sozinhas da criação dos filhos.
No dia 8 de maio, motoristas da empresa Uber fizeram uma paralisação em cidades no mundo todo, demandando direitos como maior garantia de segurança pela empresa e diminuição da taxa de corrida descontada. A greve foi marcada para o dia em que a multinacional abriria seu capital na Bolsa de Valores de Nova York, levantando US$ 8,1 bilhões com a venda de ações. A transação bilionária, no entanto, não representa nenhuma mudança para os bolsos dos milhões de motoristas do aplicativo, já que não são considerados empregados.
Segundo Giorgi, que presta consultoria para a Central Única dos Trabalhadores (CUT) por meio do escritório LBS Advogados, ainda não há consenso no direito trabalhista sobre essa relação. Na sua opinião, o crescimento desse novo e polêmico modelo é “assustador”.
A advogada explica que hoje a legislação brasileira “não dá conta” dessa nova modalidade de trabalho, o que gera múltiplas jurisprudências. No limite, na sua opinião, as empresas se beneficiam de uma espécie de precarização e falta de regulamentação. “Há, inclusive, decisões contraditórias sobre se os motoristas são empregados ou autônomos. Com isso, há total espaço para se discutir onde essa situação se encaixa. Como eu defendo o trabalhador, eu tendo a ver essa relação muito mais próxima do emprego. Do ponto de vista jurídico, tenho de um lado alguém que detém os fatores de produção e do outro alguém que venderá a força de trabalho”, completa.
Apesar de os aplicativos defenderem a autonomia dos trabalhadores, muitos especialistas acreditam que essa liberdade não exista de fato. “Não vejo motorista do Uber com liberdades. Vejo características de pessoalidade e subordinação”, afirma Giorgi. Precisar preencher determinados requisitos ou passar por uma seleção para trabalhar com a empresa, ter preços preestabelecidos pelos próprios aplicativos, e punições e multas para os trabalhadores são alguns exemplos dessa relação de controle. Para trabalhadoras de aplicativos ouvidas pela Pública, esse excesso de deveres e ausência de direitos também pesa mais para as mulheres.
Tatiana chegou a agradecer, ao final da entrevista, por ter sido ouvida. “É um prazer saber que há pessoas preocupadas com nós, mulheres que rodamos, porque ninguém olha para a gente, estamos jogadas”, lamenta. Seu caso se tornou emblemático até entre os colegas motoristas para exemplificar os danos da informalidade da profissão. Foi com a ajuda deles que a motorista e mãe solo conseguiu se organizar financeiramente, por meio de uma vaquinha divulgada principalmente nos grupos de Telegram e WhatsApp criados para organizar a paralisação. “Pedi emprestado para os meninos dos grupos. Se não fossem eles, eu perderia o imóvel.”
Doenças ocupacionais x pagar as contas
Até janeiro, a jornada de trabalho de Tatiana tinha início às 6h e com frequência se estendia até as 18h. Nesse meio-tempo, a motorista parava apenas para buscar as filhas na escola e almoçar. “Era muito calor, trânsito, stress. Você fica desesperada para pagar suas contas e tem que fazer mais e mais viagens”, explica.
Em uma manhã de trabalho, ela já estava rodando havia algumas horas quando começou a sentir uma forte tontura. Na ansiedade para cumprir a meta, jogou água no rosto e continuou dirigindo. Após mais dois passageiros, Tatiana finalmente parou para descansar. “Tudo rodou, o estômago embrulhou. Minha mãe me tirou de dentro do carro, eu nem conseguia falar mais, minha pressão estava 26 por 24”, conta. Foi o princípio do ataque cardíaco.
Assim que voltou ao volante, Tatiana acreditou que em breve conseguiria recuperar o atraso. O otimismo durou pouco: no fim de abril ela voltou a se sentir mal enquanto dirigia. Alguns dias depois foi diagnosticada com dengue e teve que ficar duas semanas de repouso. Para completar, a necessidade de renovação da CNH somou-se aos gastos cotidianos.
Mesmo com as dificuldades financeiras, Tatiana conta que decidiu paralisar em 8 de maio. “Minha vontade era rodar, porque o preço dinâmico subiu lá em cima e eu precisava do dinheiro. Mas com todo o sacrifício eu paralisei porque uma andorinha só não faz verão. Parei em prol de uma melhoria”, explica.
A motorista lamenta que entre as pautas do movimento da recém-formada categoria não tenham entrado direitos sobre doenças ocupacionais, ou mesmo pautas específicas para as motoristas mulheres. “Nós gostaríamos de ser um pouco melhor valorizadas. Hoje a gente faz Uber para sobreviver mesmo.” Ainda segundo Tatiana, quando começou a rodar com a Uber ela tirava uma renda bem maior do que hoje. Desde julho de 2018, o valor repassado ao motorista deixou de ser uma taxa fixa de 25%, passando a ser variável segundo a distância e a duração de cada viagem.
O medo de voltar a ter sintomas de depressão causados pelo excesso de trabalho fez a motorista paulistana Eliane Maria da Silva estabelecer um limite de oito horas de trabalho diárias. “Tem motoristas que fazem 14, 16 horas por dia. Não pretendo passar por isso de novo na vida”, afirma. Desde novembro de 2018, quando foi demitida do emprego de gerente de projetos em TI, os aplicativos de carona Uber, 99 e Lady Drive – este tem como público-alvo motoristas e passageiras mulheres – têm sido sua única fonte de renda.
Depois de ter sido adicionada em um dos grupos de motoristas criados para organizar a paralisação, Tatiana teve a ideia de criar um parecido com as poucas mulheres que, caladas, liam as indignações postadas. Seu objetivo, explica, foi criar uma rede de acompanhamento do período rodado e da localização das trabalhadoras. Questionada, a Uber afirma que não possui dados específicos sobre o número de mulheres que trabalham como “motoristas parceiras” e que os parceiros “dirigem quando quiserem”. “É importante frisar que não é a Uber que contrata os motoristas ou parceiros, mas eles que contratam a Uber para utilizar o aplicativo, para prestar o serviço”, completa a empresa.
Eliane conta que no recém-criado grupo de WhatsApp “Damas ao Volante”, composto por cerca de 20 mulheres, as motoristas postam suas localizações e, quando uma das participantes não aparece após algumas horas do início da jornada, as outras mandam mensagens perguntando se está tudo bem: “A gente posta nossa localização após oito horas rodando. Querendo ou não, uma ajuda a outra. A gente fica alerta se uma está muito tempo parada em um local. Estamos sempre atentas à segurança, sempre pensamos no pior por conta da violência nas ruas.”
Assédio e maternidade
Parte da estratégia de Eliane para conseguir a renda mensal média de R$ 3.250 é trabalhar nas madrugadas. Com alta demanda e preço dinâmico, os motoristas costumam optar pelos horários noturnos para expandir os ganhos. Porém, considerado mais perigoso, o período é bem mais frequentado pelos homens. “Eu não vejo motoristas mulheres trabalhando na noite ou madrugada. Talvez porque tenham que cuidar das famílias e também porque as pessoas já estão bêbadas, o que, querendo ou não, encoraja os homens a ‘mostrarem suas essências’”, opina a motorista, que vive sozinha e não tem filhos.
“A vulnerabilidade para mulheres é um pouco complicada, tem bastante assédio por parte dos passageiros. Comigo aconteceu algumas vezes. Recentemente um passageiro brincou dizendo ‘ai que bom, nunca peguei uma motorista’, mas o que ele quis dizer foi pegar de beijar. Eu desconversei. A gente corta para não dar mais brecha”, conta. Segundo Eliane, os aplicativos não ofereceram para ela nenhum tipo de orientação ou manual sobre como proceder em situações do tipo. “A gente vai aprendendo com a vivência mesmo.”
Se no caso de Eliane o assédio verbal foi contornado sem maiores transtornos, o mesmo não pode ser dito por Tatiana. Mesmo trabalhando apenas durante o dia, quando se sente mais segura, ela já foi assediada algumas vezes por passageiros. A ocasião que mais a marcou ocorreu em pleno domingo à tarde, quando um passageiro entrou no carro e afirmou: “Nossa, moça, você é linda demais”. “Ele pegou no meu rosto e tentou me beijar. Eu desci o braço nele. Falei que, se colocasse a mão em mim de novo, eu chamava a polícia”, lembra.
Tatiana chegou a completar a corrida do passageiro. Ela relata que na época informou a Uber do ocorrido e recebeu apenas uma mensagem informando que a empresa lamentava o ocorrido, que entraria em contato com o passageiro e a motorista não receberia corridas dele novamente. “Eu sempre tento sair pela tangente, nunca precisei realmente parar o carro. Mas a Uber não me deu nenhum tipo de formação sobre como lidar com esses casos.”
Não apenas o assédio e o medo de roubos ou sequestros atormentam os motoristas de aplicativos. A probabilidade de acidentes de trabalho é um dos fatores que assustam e afastam pessoas do volante profissional. No caso das mulheres, entretanto, o medo dobra quando a preservação da própria vida não é a única preocupação. É o caso de Esther de Figueiredo Arantes, diretora da Frente de Apoio Nacional ao Motorista Autônomo (Fanma), em Belo Horizonte.
Formada em Direito, em 2009, Esther teve que largar o emprego e pausar os estudos para se dedicar aos cuidados da filha de 5 anos, que havia sido diagnosticada com câncer. A menina faleceu naquele mesmo ano, e Esther passou três anos sem trabalhar. A ideia de trabalhar como motorista de aplicativos veio do pai, que já exercia a atividade. Na época, ela escolheu se cadastrar na Cabify, porque acreditava que estaria mais segura, uma vez que o aplicativo mostrava o destino dos passageiros antes de o motorista aceitar a chamada. Nesse período, descobriu que estava grávida.
“Trabalhei durante oito meses de gestação apenas na Cabify. Uma vez, aos três meses, um rapaz bateu no meu carro. Fiquei assustadíssima, principalmente por conta da minha experiência anterior com a minha filha. Chorei muito, foi complicado. A empresa não paga nada nesses casos.”
Após o nascimento do filho, Bernardo, hoje com pouco mais de 1 ano de idade, as contas não estavam fechando apenas com a renda de um aplicativo. Foi quando Esther começou a trabalhar na 99 e na Uber. Na época em que estava amamentando, conta, só trabalhava de madrugada, para conseguir passar o dia todo cuidando do filho. Hoje, intercala jornadas diurnas e noturnas, que se estendem até as 5h da manhã.
“Eu peço para Deus me guardar e vou, tomo todas as precauções, participo de grupos de localização de mulheres. Meu marido tem um rastreador para acessar minha localização a qualquer momento. Como a Uber não avisa o destino, às vezes é madrugada e eu vou parar em uma área perigosa.” Uma das principais demandas do movimento organizado de motoristas, o conhecimento do destino do passageiro, uma das mudanças já testadas pela Uber desde o ano passado, começou a valer em algumas regiões do país desde 15 de maio.
Se antes Esther conseguia pagar as contas com uma jornada de seis horas de trabalho, hoje precisa trabalhar muito mais. “O seguro do carro é o dobro do preço porque temos que avisar que trabalhamos com aplicativo, a gasolina aumentou muito e as tarifas mudaram. Eu consigo tirar em torno de R$ 1.500 líquido por mês. Só dá para pagar as despesas de casa mesmo”, afirma. Ainda assim, hoje, o salário de Esther é maior do que o do marido.
Mesmo casada há 13 anos, ela não escapa da jornada dupla do início da maternidade. “Eu chego em casa de manhã. Meu filho já está acordando, tenho que cuidar, amamentar”, conta. Na entrevista realizada às vésperas do Dia das Mães, Esther contou que iria trabalhar na data porque sabia que a demanda seria grande. “Não vou passar com meu filho, infelizmente.”
Um estudo publicado em julho de 2018 pelas universidades de Chicago e Stanford, nos EUA, mostrou que a diferença de renda entre homens e mulheres, conhecida em inglês e na literatura feminista como “gender gap“, também se estende para a economia de aplicativos.
Analisando dados de mais de 1 milhão de motoristas de Uber, a pesquisa mostrou que as mulheres recebem um total de 7% de ganhos por hora a menos do que os homens. Os pesquisadores acreditam que alguns fatores explicam a manutenção da desigualdade salarial entre “trabalhadores autônomos”: o fato de motoristas do sexo masculino dirigirem mais rápido e a jornada dupla que impacta as pausas e a jornada diária que as mulheres podem fazer.
Atenta à sua condição de autônoma pelos aplicativos, Esther resolveu, durante a gravidez, criar um MEI (registro de microempreendedor individual) e pagar o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para conseguir usufruir de quatro meses de licença- maternidade. “Se eu não tivesse feito isso, com certeza ficaria em uma situação muito ruim.”
No dia 15 de maio, o governo Jair Bolsonaro (PSL) publicou um decreto regulamentando a exigência da inscrição de motoristas de aplicativos como contribuintes individuais do Regime Geral de Previdência Social. O decreto, que visa formalizar minimamente a profissão, estabelece que a contribuição é de responsabilidade exclusiva dos motoristas.
Apesar das inseguranças, Esther confessa que o trabalho como motorista de aplicativo lhe garante uma disponibilidade para criar os próprios horários e conseguir cuidar do filho.
“Se ele ficar doente, posso fazer meus horários para cuidar dele e trabalhar.” Ela lembra ter ouvido colegas comentando sobre uma motorista que tinha que levar o filho pequeno na cadeirinha no banco de passageiro quando dirigia. “Quando eu ouvi, pensei que era um absurdo, uma falta de segurança. Mas eu fiz a mesma coisa, só que com meu filho dentro de mim.”
Em seu trabalho como diretora da associação de motoristas, Esther diz que trabalha em prol do que é pedido pela categoria, que se torna cada vez mais mobilizada. “A adesão à paralisação foi maior do que eu imaginava. Sei que não foi unânime, mas já causou um impacto”.
Reconhecida pelas empresas de aplicativos, a Fanma já participou algumas vezes de reuniões com as empresas e o poder público. Mais próxima da Uber do que as outras motoristas entrevistadas, Esther destaca que já recebeu algumas orientações e vídeos sobre como se portar em casos de assédio. “Todos os motoristas têm um botão de alerta no aplicativo que aciona a polícia na hora”, explica.
A assessoria de imprensa da Uber informou que a empresa oferece aos “motoristas parceiros” um seguro gratuito de até R$100 mil contra acidentes pessoais que ocorram durante viagens, sendo esse valor apenas para casos de morte. A empresa afirmou que vem adotando nova tecnologia para bloquear “viagens consideradas mais arriscadas”.
A Uber afirma ainda que “se orgulha” em oferecer uma oportunidade de geração de renda “democrática, independente de credo, etnia, orientação sexual ou identidade de gênero”, e informou que em novembro de 2018 deu início a uma série de parcerias para enfrentamento da violência contra a mulher. Entre os resultados das parcerias, a empresa lançou um vídeo com instruções de segurança no qual também orienta o comportamento de motoristas homens com passageiras.
O drama das entregadoras: “É cada um por si”
Apesar do nome, não apenas de caronas é formada a economia da uberização. A relação informal entre empresas e trabalhadores, interligada pela interface dos aplicativos, já se estende para diversas áreas e categorias. Uma específica já muda o cenário e impacta a rotina das metrópoles brasileiras: os entregadores de aplicativos.
Motoboys e ciclistas se espalham cada vez mais pelos centros comerciais, aguardando próximo aos restaurantes, com as bags de cores chamativas. A mão de obra é bem mais masculina do que a dos aplicativos de carona: segundo pesquisa realizada pela Fundação Instituto Administração (FIA) e divulgada pela Associação Brasileira Online to Offline (ABO20), 97,4% dos entregadores de aplicativos são homens com idade média de 29 anos.
Ainda menos regulamentado, o tipo de trabalho exercido, que no caso dos ciclistas depende exclusivamente do desempenho físico, é um dos motivos apontados pelas próprias entregadoras para a ausência de mulheres. É o que destaca a jovem Mikaela Evelyn dos Santos, de 23 anos, entregadora de alimentos pela Uber Eats e de outros produtos pelo aplicativo Box Delivery.
Inconformada com a diferença no número de entregas oferecidas para ela, uma das únicas quatro entregadoras que têm conhecimento na Baixada Santista, onde vive, Mikaela chegou a cronometrar o tempo que leva pedalando e comparar com colegas. “Faço as corridas em uma média de 20 minutos. Os restaurantes não têm tanta confiança, então escolhem mais os entregadores homens. Um dia eu e um amigo estávamos esperando no mesmo lugar e ele recebeu sete corridas seguidas enquanto eu só recebi duas”, conta.
A jovem, que pretende estudar enfermagem, diz que já ouviu algumas vezes, inclusive dos próprios ciclistas, que o trabalho “não é para a mulher”. “No Burger King, onde me chamam bastante, ficam surpresos quando chego. Dizem: ‘Nossa, como você é rápida!’.”
Pedalando para os aplicativos, Mikaela reclama dos riscos no trânsito, com a falta de cuidado dos motoristas, e de ser assediada na rua e pelos próprios clientes, motivo pelo qual não faz entregas no período da madrugada, quando costuma haver mais chamadas.
Parte da categoria dos entregadores, principalmente os que trabalham com a própria Uber, também aderiu à paralisação de maio. Foi o caso de Mikaela, que teve como principal pauta o aumento da taxa de entrega. “Antes os entregadores trabalhavam em restaurantes com carteira assinada, ganhando até R$ 12 por entrega. Hoje a gente ganha menos de R$ 1 por quilômetro rodado. Já cheguei a trabalhar 16 horas em um dia”, conta, acrescentando que frequentemente sente dores nas pernas. Mikaela nega ter recebido dos aplicativos para os quais trabalha algum tipo de orientação de saúde ou cuidados.
O baixo rendimento em relação aos longos quilômetros rodados é uma reclamação também de Adenilza dos Anjos Rezende, conhecida como Nana, entregadora do serviço Loop do aplicativo iFood, que oferece refeições por R$ 10 no horário do almoço. Em poucos meses trabalhando no serviço, Nana viu seu rendimento ser baixado de R$ 40 fixos por dia, somados a R$ 1,50 por entrega, para R$ 20 por dia mais a comissão. Na semana, a renda baixou de R$ 400 para quase a metade.
Dentro da bag laranja neon da empresa, Nana pode levar, para o restaurante específico onde trabalha, localizado na íngreme rua Augusta, no centro de São Paulo, até 19 marmitas – armazenadas com um número igual de latas de refrigerante. “Quando entrei nesse restaurante, eu fui testada. Mandaram o limite de marmitas de uma vez, nunca carreguei tanto peso. Colocavam essa carga máxima e daí falavam que gostavam de mim porque eu aguentava”, ela recorda.
Nana reclama também do desrespeito da população com os entregadores, mesmo nos dias mais difíceis para trabalhar. “Se chove, você tem que entregar encharcado. Se vai na calçada, o pessoal xinga, na rua os carros fecham. Os porteiros e os seguranças dos prédios também nos tratam como se fôssemos nada. Na semana passada um porteiro gritou comigo, disse que eu não poderia entrar com a bag no prédio e que ele não interfonaria para o morador.”
Frequentemente assediada pelos próprios entregadores, que raramente encontram uma mulher trabalhando na área, Nana se incomoda mesmo é com o assédio praticado pela polícia. Negra, a entregadora denuncia que a Polícia Militar da capital pratica, frequentemente, o enquadro de entregadores. “Sou parada o tempo todo por policiais. Se você está com uniforme, com a bag, aí que eles param mesmo. Revistam, olham seu celular.” Segundo Nana, muitos dos colegas entregadores são egressos do sistema penitenciário e acabam trabalhando com entregas justamente porque a informalidade negligencia seus antecedentes criminais.
“Muitos trombadinhas usam as bags e os uniformes para roubar também, então a polícia é completamente desrespeitosa com todos os bikers. A primeira vez que me abordaram, eu estava com outros entregadores esperando entregas em frente ao restaurante. Os policiais chegaram chutando os meninos, os que tinham passagem apanharam horrores”, denuncia.
Na realidade, como explica Nana, os próprios entregadores são frequentemente vítimas de furtos e roubos. Ela já está na terceira bicicleta em três meses de trabalho como entregadora. As duas anteriores foram roubadas. Desde então, ela já gastou R$ 1.450 substituindo o equipamento de trabalho.
“É cada um por si. Os aplicativos não cobrem nada. Se você não tem bike, não trabalha. Mas tem lugares onde não pode entrar com a bicicleta ou com a bag. O pessoal da rua, os ambulantes, outros trabalhadores, acabam ajudando a olhar. Dão valor porque sabem que você está trabalhando também.”
Nana mora no Brooklin, na zona sul da capital paulista, e vai até o centro na própria bicicleta. Hoje, ela passa cerca de quatro horas por dia em cima de sua bike azul. “Se a bicicleta quebra, ou você fica doente, você perdeu o dia. Não tem nenhum tipo de benefício, manutenção ou ajuda”, critica.
Os ‘visionários’ trabalhos “tipicamente femininos”
Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostram que as ocupações autônomas com maior participação de mulheres no Brasil são: comerciantes de lojas e vendedores em domicílios, especialistas em tratamentos de beleza e costureiras.
Os dados não diferenciam quem trabalha com empresas por meio da intermediação de aplicativos, mas talvez ajudem a explicar um fenômeno mais recente dentro da uberização: o surgimento de serviços de aplicativo de trabalhos conhecidos como “tipicamente femininos”, já caracterizados pela informalidade.
Para a socióloga Ludmila Costhek Abílio, pesquisadora da uberização e das mulheres em relações informais de trabalho, toda grande transformação que envolve a flexibilização das relações de trabalho tem início entre trabalhadoras do sexo feminino. “No fundo, as questões mais contemporâneas do mundo do trabalho começam com as mulheres, principalmente as com baixa qualificação e rendimento. Elas são socialmente invisíveis, estão à margem do mundo do trabalho. Mas, quando você olha para elas, vê características que depois acabam se generalizando em um contexto de precarização”, explica.
Ludmila observou essa expansão em seu doutorado, publicado em 2011, em que estudou as relações de trabalho das revendedoras de cosméticos no Brasil. A informalidade era regra nesse trabalho exercido por mais de 1 milhão de mulheres no país. No entanto, as bases da uberização foram formadas nesse mesmo entendimento de que a empresa é uma “intermediária”.
“No mais precário trabalho da costureira em domicílio, da empregada doméstica, da dona de casa, podemos encontrar elementos que hoje tecem a exploração do trabalho de forma generalizada. Olhando para uma ocupação tipicamente feminina, foi possível reconhecer tendências em curso no mercado de trabalho que hoje desembocam na uberização”, escreveu Ludmila em um artigo publicado em 2017.
Em outras palavras, as mulheres que estão à margem da economia formal, geralmente negras e periféricas, na opinião da socióloga, “já tinham a vida ‘uberizada’ desde sempre”. “Não precisa de plataforma, aplicativo para isso. Ela vai aderindo às oportunidades que surgirem, se administrando em uma instabilidade permanente”. A informalidade é praxe nos chamados “trabalhos tipicamente femininos”.
Algumas das experiências mais recentes em matéria de aplicativos de serviço, por coincidência ou não, seguem algumas das principais profissões autônomas de mulheres destacadas pela Pnad. É o caso dos aplicativos de salão de beleza, que oferecem serviços particulares de cabeleireiro, depilação e manicure. A profissional da beleza Célia Maria Oliveira Rodrigues, de 48 anos, já trabalhava no ramo há 18 anos quando, no segundo semestre do ano passado, resolveu entrar para um desses aplicativos: a Singu.
Assim como os aplicativos de carona e de entrega, a ideia da empresa é basicamente intermediar trabalhadoras e clientes. Também como os demais aplicativos, no entanto, a Singu estabelece preços, formas de controle e multas para suas “profissionais parceiras”. Após algumas experiências traumáticas, Célia saiu do serviço com três meses de trabalho: “Não vale a pena. Nós gastamos muito mais com o aplicativo”, critica.
Na Singu e em outros aplicativos do ramo, as profissionais manicures, no caso de Célia, têm que arcar com todo o transporte, alimentação, equipamentos e sua manutenção, higienização e esterilização, além de deixarem parte considerável dos ganhos para a empresa. “Quando eu comecei, em setembro de 2018, a comissão era 70% para nós, mas logo baixaram para 60%.”
A taxa é a média cobrada por salões de beleza, que raramente assinam a carteira de suas funcionárias e também trabalham com o esquema de “colaboração”. Como atrativo, os aplicativos de beleza oferecem alta demanda de clientes. “No aplicativo, a partir do momento que você sai de casa, sabe que vai atender. No salão, você é obrigada a chegar de manhã, esperar horas e às vezes sai do jeitinho que entrou, sem ganhar nada”, explica Célia, que hoje trabalha como autônoma, sem a intermediação do aplicativo.
Apesar de, na época, conseguir atender até oito clientes por dia, as exigências da Singu logo afastaram Célia do aplicativo. “Uma vez fui atender uma cliente e comecei a passar mal. Saindo de lá, desmaiei no meio da rua. Eu tinha mais clientes para atender no mesmo dia, mas avisei a empresa que não ia dar. Na mesma hora elas me suspenderam do aplicativo, tiraram todos os horários que eu tinha para o resto da semana”, lembra.
Célia só conseguiu desbloquear o aplicativo depois de ter passado em uma médica e levado um atestado até a sede da Singu. “Falei para elas que, se elas conseguem prever quando vão adoecer, parabéns para elas, porque eu não consigo”, diz. “Nunca acham que a gente está falando a verdade. É bem humilhante.”
Em outra ocasião, a manicure lembra que chegou uma hora atrasada na casa de uma cliente que morava na zona norte de São Paulo, porque o endereço repassado pelo aplicativo estava errado. Após muitas ligações de cobrança por parte da Singu, ela conseguiu achar o local e trabalhar. Porém, antes mesmo de sair da casa da cliente, já haviam bloqueado novamente seu aplicativo.
“Eu mostrei o endereço que tinham mandado para a cliente e ela disse que estava errado mesmo. Ela chegou até a ligar para eles, dizendo que não era minha culpa. Mesmo assim eles me cobraram pelo serviço, trabalhei de graça”, afirma.
Segundo a socióloga Juliana Oliveira, que em seu doutorado estudou a situação trabalhista das manicures no Brasil, fazer unhas é a entrada no mundo de trabalho para muitas mulheres. Ela lembra que desde outubro de 2016, seis meses antes da Lei 13.429/17, que regulamentou a terceirização para atividades-fim, a aprovação da Lei “Salão Parceiro” já possibilitava a contratação de profissionais da beleza no regime de “trabalhadores autônomos”.
“Ou seja, essa lei antecipou para o setor da beleza algo que depois foi estendido para todos os setores: você sumir com o vínculo CLT”, explica a socióloga. De acordo com Juliana, o setor de beleza “sempre foi precarizado”, mas na sua opinião os aplicativos vêm para “institucionalizar essa precarização”. No entanto, ela lembra que um diferencial dos trabalhos tipicamente femininos é a criação de relações entre os clientes e os trabalhadores. “O aplicativo pressupõe trabalhadoras substituíveis, mas manicure é um trabalho relacional”, lembra, opinando que dificilmente o ramo vingaria no contexto da uberização.
Pensando na possibilidade do estabelecimento de um vínculo entre cliente e manicure que tornaria o aplicativo obsoleto, segundo Célia, a Singu se antecipou: a empresa coloca clientes fictícias e ferramentas de controle que impossibilitam a fidelização das clientes. A prática, como explica a manicure, intimida as trabalhadoras.
“Eles diziam que testavam a gente com clientes falsas ou que, se a cliente usava o serviço algumas vezes e daí parava de usar, era porque a manicure estava atendendo ela por fora. É tudo na base da suspeita. Diziam que não podíamos conversar, que eles ficariam de olho. Se a cliente pedia para repetir a manicure, eles dobravam o preço do serviço”, afirmou. Procurada, a Singu não respondeu às críticas apresentadas.
A desconfiança em relação às trabalhadoras também foi trazida no relato de uma profissional de outro ramo: a diarista Josiane Souza Santos. No seu caso, foi necessário apenas um mês trabalhando para o aplicativo de serviço de faxinas Parafuzo, em 2017, para perceber que estava sendo prejudicada.
“Durante um mês eu trabalhava muito, tinha a melhor avaliação do aplicativo. Mas um dia eu aceitei uma diária e fui assaltada no caminho. Levaram meu celular, minha carteira, documentos. A Parafuzo tinha um limite de três faltas, mas eu nunca tinha faltado. Como levaram tudo, e eu não sabia nem o endereço do cliente sem o aplicativo, fui fazer um Boletim de Ocorrência. Quando consegui entrar em contato com eles, já tinham reduzido o número de diárias que me ofertavam, como punição. Mesmo enviando o BO, não retiraram essa restrição. Além disso, não me pagaram por todas as diárias que eu havia feito naquela semana. Cancelaram minha assinatura e ficaram me devendo cerca de R$ 500″, denuncia.
Josiane conta que reclamou várias vezes com a empresa, até que eventualmente pararam de atendê-la. “Eu não tinha outro emprego, passei dificuldades, o aluguel atrasou. Eu dependia daquele dinheiro já ganho.” Por raiva e falta de tempo, ela acabou não entrando na Justiça contra a empresa. Contatada pela Pública, a Parafuzo também não respondeu à denúncia.
Depois da experiência, Josiane continuou trabalhando como diarista, mas dessa vez com clientes fixos, sem o intermédio de aplicativos. Em grupos de diaristas em redes sociais, ela diz que já chegou até mesmo a acompanhar uma situação na qual todo o valor da diária foi retirado de uma diarista pela Parafuzo apenas porque a cliente reclamou que um ímã de geladeira havia desaparecido de sua casa.
“Descontaram R$ 70 da diária. Ela dizia, no grupo, que não pegou o ímã, mas não deram a possibilidade de ela se defender. Eles não levam em consideração o histórico da diarista, as avaliações. Se tiver uma reclamação, eles multam a faxineira. No final, ela trabalhou literalmente de graça”, conta.
No site da Parafuzo, na sessão “Seja uma diarista”, um vídeo de termos de uso e regras explica que o aplicativo cobra uma taxa de 15% do serviço das diaristas, R$ 22 mensais de manutenção do aplicativo e multas por cancelamento de diárias. Além disso, o vídeo informa que a diarista é obrigada a reembolsar o aplicativo caso haja qualquer reclamação dos clientes de danos ou de diárias malfeitas.
Segundo Josiane, que já trabalhou para outras empresas físicas de faxina, a diferença entre elas e os aplicativos está principalmente na forma de tratamento das trabalhadoras. “Não existe a valorização dos funcionários pelos aplicativos. Nas outras empresas que trabalhei o tratamento era mais humanizado. Com o aplicativo, se você tiver qualquer problema, eles não querem saber.” Apesar de representar um regime ainda mais precarizado, Josiane acredita que cada vez mais mulheres estão procurando esses aplicativos, principalmente no contexto de crise econômica.
Formada em administração e cursando atualmente a segunda graduação em economia, ela afirma não encontrar empregos na sua área. “Eu conheço várias mulheres que trabalham por aplicativo porque é mais fácil conseguir faxinas, mulheres com formação acadêmica, pedagogas, jornalistas, que não conseguem emprego e acabam aceitando qualquer coisa. É uma atitude desesperada”, diz. Segundo Josiane, os principais clientes dos aplicativos de faxina são jovens desapegados do caráter de “pessoalidade” historicamente atribuído às empregadas domésticas.
Para Ludmilla Abílio, no caso das empregadas domésticas, faxineiras e diaristas, a uberização vem para, num sentido ambíguo, burocratizar um ramo que, no Brasil, deriva da herança escravocrata e é um dos mais alarmantes exemplos da divisão sexual do trabalho. Ao mesmo tempo, a solução vem em um contexto de crise pós-regulamentação da profissão, com a PEC das Domésticas, de 2013, no qual muitas domésticas foram demitidas e contratadas como diaristas.
“É interessante ver que o que consideramos extremamente moderno já existia de outras formas. Ao mesmo tempo em que a uberização é mais arriscada para a mulher, elas já fazem essa gestão de si próprias há muito tempo.”
Já para a advogada Fernanda Giorgi, se ainda vamos demorar para nos adaptarmos ao novo contexto trabalhista, a solução contra a precarização irrestrita continua na organização dos trabalhadores. “Já temos um embrião de articulação desses ‘trabalhadores autônomos’. Com as transformações nas relações de trabalho, esse esboço deve ser o caminho.”
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