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domingo, 19 de maio de 2019

Escondidas atrás de guarda-chuvas, entre gritos: é assim que as mulheres abortam no Alabama


Ativistas do grupo PowerHouse cobrem com guarda-chuvas a entrada da clínica de Serviços Reprodutivos, na passada sexta-feira, em Montgomery (Alabama).
Ativistas do grupo PowerHouse cobrem com guarda-chuvas a entrada da clínica de Serviços Reprodutivos, na passada sexta-feira, em Montgomery (Alabama). A. MARS


São pouco mais de 4h30 da madrugada, mas no 811 da rua South Perry de Montgomery já começou a movimentação. Três homens rezam de joelhos na escuridão, de costas para um edifício baixo e envelhecido que abriga uma das três únicas clínicas de aborto no Alabama. Chega um quarto, David Day − como se apresenta −, com uma câmera GoPro no peito e um cartaz com a imagem de um feto ensanguentado nas mãos. Fica de pé. Na casa ao lado do centro médico, separada apenas por um estacionamento, os voluntários da organização Power House também começaram sua jornada. Bianca Cameron-Schwiesow e Margeaux Hartline colocam seus coletes coloridos e colocam seus guarda-chuvas na entrada. Pouco a pouco vão aparecendo outros para fazer a escolta, mais de uma dúzia. É sexta-feira, único dia da semana em que são realizadas as intervenções, e são esperados 20 pacientes.

Às 5h15, chega a primeira paciente. Sozinha. “Carro!”, avisa uma das voluntárias. E todo mundo sabe o que deve fazer, a rotina de toda sexta-feira; também para David. “Isso que ela vai fazer é matar um bebê, não deixem que matem um bebê, é homicídio...”, grita David enquanto o veículo entra no estacionamento, para onde ele não pode ir. Bianca e outras duas escoltas vêm buscar a mulher, cobrem-na com grandes guarda-chuvas abertos enquanto ela sai do carro e caminham de braços dados para a porta da clínica, um trajeto de menos de 100 passos durante os quais David e outros companheiros de protesto não param de lançar reprimendas para a nuvem de guarda-chuvas sob a qual se esconde a jovem. Grava com a câmera e às vezes transmite a cena pelo Facebook Live. Dois policiais estão a postos para que nada saia do controle. Para abafar os gritos dos manifestantes, o pessoal da Power House responde com música a todo volume. “And we gonna let it burn, burn, burn, burn...”, de Ellie Gouldin, impõe-se com mil decibéis sobre algo ininteligível que um recém-chegado pronuncia sobre o Senhor, mas não o abafa.
Outro carro. Desta vez é dirigido por um homem, com uma mulher ao lado e uma criança no banco traseiro. O processo se repete: as escoltas entram em ação, mais guarda-chuvas, mais gritos. Continua a batalha acústica. Rebel Girl, do Bikini Kill, toca a todo volume e David pega um alto-falante. Indagado sobre se não deveria respeitar a intimidade das mulheres, afirma: “Estão matando vidas humanas e tenho de ser discreto? Isto é como o Holocausto, é como a Inquisição espanhola”.
Na calçada em frente, Robyn Blessing e um companheiro acabam de estacionar, como toda sexta-feira, um motorhome que anuncia testes de gravidez e ultrassonografias grátis. Dentro do veículo, porém, além de uma maca, Robyn não é capaz de mostrar nenhum material médico com o qual supostamente faz os exames, a não ser dezenas de panfletos de organizações pró-vida e um grande entusiasmo para aconselhar mulheres que − diz ela − ainda não sabem, mas querem, sim, dar à luz um bebê.
Nasce o dia e, ao lado do motorhome, 20 ou 30 pessoas formam um círculo para rezar e cantar para Deus. A maioria dos pacientes não chega muito depois do amanhecer para reduzir ao máximo sua visibilidade, por um lado, e porque alguns vêm de longe − já que a clínica de aborto de Montgomery não só é uma das únicas três do Alabama, um Estado com mais de oito milhões de habitantes, como também é a mais próxima para muitos moradores do Mississippi e da parte continental de Flórida. Por isso, dentro da casa vizinha, filhos e acompanhantes adultos das mulheres que vão à clínica se refugiam durante algumas horas. Um menino, pouco mais que adolescente, dorme no sofá com uma menina de um ou dois anos nos braços.
Saem as primeiras pacientes. As recriminações recomeçam: “Matou um bebê, você matou um bebê”. Um corredor de guarda-chuvas protege sua saída até a casa ou até o carro. Depois do meio-dia já acabou tudo. A polícia vai embora. Os manifestantes também, mas depois aparece outra mulher, que se ajoelha e começa a rezar.

Jeanne Paxon rezando na sexta-feira em frente ao Centro de Serviços Sanitários Reprodutivos em Montgomery (Alabama).
Jeanne Paxon rezando na sexta-feira em frente ao Centro de Serviços Sanitários Reprodutivos em Montgomery (Alabama). 

O que ocorre às sextas-feiras nesse centro pode virar crime dentro de seis meses, se entrar em vigor a lei que o Alabama aprovou na terça-feira, proibindo categoricamente o aborto − mesmo em casos de incesto ou estupro −, exceto se a mãe correr risco de morte, com penas de até 99 anos de prisão para o médico que violar a proibição. Mas a sensação de ilegalidade e clandestinidade já é evidente nesta parte dos EUA. De madrugada, escondidas atrás de guarda-chuvas, entre gritos e insultos: é assim que as mulheres abortam no Alabama.
“As leis, na prática, vêm tornando cada vez mais difícil [o aborto], nos anos noventa havia 20 clínicas de aborto, agora há três [as outras duas ficam em Huntsville e Tuscaloosa]. E lhes impõem normas que são armadilhas, exigências sem sentido para forçar os fechamentos”, explica Mia Raven, diretora da Power House.
O conservador Alabama, um dos redutos do cinturão bíblico do país, já era um dos Estados mais restritivos em relação ao aborto. Toda mulher que pretenda interromper a gravidez deve passar primeiro por um ultrassom e responder se quer vê-lo ou não, receber aconselhamento imposto pelas autoridades e esperar um período de 48 horas. Mas nada tão radical como a lei que acaba de ser aprovada.

A republicana Terri Collins em seu escritório da Câmara na quinta-feira.
A republicana Terri Collins em seu escritório da Câmara na quinta-feira. 

A medida foi aprovada pelo Senado estadual com o voto a favor de 25 homens brancos republicanos, que são maioria nessa Casa. Seis democratas (incluindo apenas duas mulheres) votaram contra. Mas a batalha do aborto é muito mais que uma questão de gênero no Alabama. Na cristalização do projeto há uma mulher − a governadora Kye Ivey, que poderia ter vetado a lei, mas a sancionou na quarta-feira − e em sua origem há outra, Terri Collins, que o apresentou na Câmara baixa, passo prévio ao Senado.
Collins estava radiante de felicidade na quinta-feira. Passou, diz ela, 40 anos lutando por essa lei. “O verdadeiro objetivo é que a Suprema Corte revise seu critério de que um bebê no útero não é uma pessoa”, explicou ao EL PAÍS em seu escritório na Câmara, a suíte 427. Até que ponto a religião influencia seu trabalho legislativo? “Deus me influencia em tudo que faço, mas meu objetivo com isto é principalmente ajudar as mulheres”, responde.
O Alabama se somou a uma lista de vários Estados que aprovaram leis sabendo que elas ainda terão de passar por sucessivos juízes − e provavelmente serão suspensas de forma preventiva − até conseguir chegar à Suprema Corte, de maioria conservadora, para tentar reverter a famosa sentença do caso Roe versus Wade, de 1973, que legalizou o aborto em todo o país. A chegada de Donald Trump ao poder aumentou as esperanças desse grupo. Geórgia, Kentucky, Ohio e Mississippi aprovaram aquelas que são conhecidas como “leis do primeiro batimento cardíaco”, segundo as quais a gravidez não pode ser interrompida depois de seis ou oito semanas, quando os ginecologistas conseguem detectar o batimento, embora nesse período uma mulher possa não saber que está grávida. Ao mesmo tempo, Estados mais progressistas, como Nova York, Rhode Island e Novo México, estão adotando outras normas para proteger esse direito, o que mostra a crescente divisão política e social dos EUA.

Grupo de voluntários da Power House em Montgomery.
Grupo de voluntários da Power House em Montgomery. 

“Nós, os médicos, somos colocados diante de uma escolha impossível”, afirma Janet Leftkowitz, diretora médica da Planned Parenthood para o Sudeste dos EUA, quando lhe pergunto se continuará exercendo a medicina no Alabama caso entre em vigor a lei que pode levá-la para a prisão. “Você se arrisca legalmente se rejeita uma paciente em risco e também se a trata, isso vai dissuadir mais médicos de trabalhar no Estado, que já tem um problema de carestia”, ressalta.
O Alabama é o quinto Estado dos EUA com maior taxa de mortalidade ao nascer e, segundo dados do Congresso Americano de Obstetrícia, muitas cidades não têm ginecologista. Não há nada, diz Terri Collins, que justifique o que ela considera “matar um bebê”. Para Bob Singleton, senador democrata do Alabama, a ofensiva legislativa contra o aborto “vai além da influência da religião, isso é iniciativa de um Partido Republicano que decidiu transformar esse assunto em um mantra”. Essa batalha acaba de começar, mas os guarda-chuvas já estão abertos há anos no velho sul.

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