Essa lei não é sobre compaixão, é sobre covardia. Esses políticos desonram a todos nós.
By Dina Zirlott, HuffPost US
24/05/2019
COURTESY OF DINA ZIRLOTT | Dina Zirlott e sua filha Zoe (2007). |
Tinha 17 anos quando fui estuprada por um colega de classe. Eu o conhecia, confiava nele, mas nada disso importou no fim das contas. Só descobri que estava grávida oito meses depois. Minha filha, Zoe, cresceu dentro de mim com um problema congênito que lhe tirou a habilidade de pensar, sentir emoções ou conectar-se com o mundo de todas as maneiras fundamentais que fazem a vida valer a pena.
Fui forçada a dar à luz a filha desse estupro, sempre conectada de alguma maneira ao homem que tanto tirou de mim. Morava no Alabama, que este mês aprovou uma lei draconiana em relação ao aborto.
Fui forçada a dar à luz a filha desse estupro, sempre conectada de alguma maneira ao homem que tanto tirou de mim. Morava no Alabama, que este mês aprovou uma lei draconiana em relação ao aborto.
Mas os políticos do estado nunca tiveram compunções éticas em relação ao controle sobre as mulheres ou à subversão da autonomia delas. Para esses políticos, somos um efeito colateral do jogo. O sofrimento que eles causam não significa nada. Eles não têm interesse em histórias como a minha, mas preciso falar – ou as mulheres que vêm depois de mim não o farão.
Tudo começa num parque aquático em Destin, na Flórida. Tenho 9 anos. Ele agarra minha boia e coloca os dedos entre minhas coxas. O dedão dele roça em mim. Olho para ele chocada. Quero gritar, mas ele sorriu para mim. Os olhos deles me fitam de cima a baixo, e ele diz, calmamente: “Parece que você estava à deriva, achei melhor ajudar”. Depois, ele me solta. Sigo descendo a corrente, o espaço entre minhas pernas está ardendo, meu coração, palpitando. Não digo nada, porque ele só queria ajudar.
Segundo semestre, primeiro ano do ensino médio, estou esperando minha mãe me pegar na escola. Um garoto que nunca tinha visto antes aparece do nada e passa a mão na minha bunda. Quando me viro, ele está correndo. “Duvidaram que eu faria isso”, grita ele, como se servisse de desculpa. Como se eu fosse um pedaço de carne à espera das mãos dele.
Num baile do segundo ano, danço com um menino. Na segunda-feira seguinte, ele começa a me perseguir pela escola. Encontra minhas salas, mesmo que eu não diga quais são minhas aulas, pergunta para as pessoas onde eu moro, me encurrala no pátio e tenta me beijar.
Depois da minha rejeição, ele começa a escrever histórias violentas sobre mim. Em uma delas, ele corta minha garganta porque o provoquei com sorrisos e gentilezas. “Ele fez isso com metade das meninas da sala”, dizem as outras garotas. “Os professores não fazem nada.”
Esses homens não são meus estupradores (...) mas cada um deles tira algo de mim. Eles plantam a semente da dúvida, e ela cresce. Lentamente, terrivelmente, me alieno de mim mesma.
Esses homens não são meus estupradores. Tampouco o são os homens que começaram a olhar para mim de dentro dos carros quando eu tinha 13 anos, que gritam coisas que querem fazer comigo – os assobios estridentes e lascivos, me lembrando de que estou na vitrine.
Não, eles não são meus estupradores, mas cada um deles tira algo de mim – começando pela minha dignidade, meu senso de segurança. Eles plantam a semente da dúvida, e ela cresce de forma descontrolada; as raízes se espalham, o silêncio aumenta e toma conta da minha boca. Lentamente, terrivelmente, me alieno de mim mesma.
Não é a primeira vez que escrevo sobre meu estupro, mas, em tempos como este, temos de revisitar a origem do trauma. Tenho de continuar a drenar o veneno da ferida se quiser seguir adiante e me curar. Me recuso a deixar a infecção se espalhar.
Estamos de novo aqui: tenho 17 anos e estou no penúltimo ano do ensino médio. A escuridão da minha cozinha me contempla como uma boca aberta. Meu corpo está prensado contra o granito. O canto da mesa machuca minha barriga. Mãos, que não são as minhas, agarram meu pescoço – os dez dedos mais parecem garras. São mãos nas quais eu confiava, as mãos de um menino da minha classe de Álgebra II. Tento reconciliar essas mãos que abaixam meu short e envolvem meu pescoço com as mãos que às vezes encostavam na minha quando eu queria pegar um lápis.
Meu pulso está acelerado, meu sangue é refém nas minhas veias. Não sei como viemos parar aqui. Duas horas antes estávamos estudando equações quadráticas e assistindo a um filme. Quando os dedos dele começaram a se aproximar da minha virilha, sabia que algo ruim estava para acontecer ― foi instinto. Senti um aperto que começou no estômago e foi subindo pela garganta.
Não sei o que ele estava pensando. Se ele achou que eu o levei a essa situação com meu corpo. Levantei e me afastei. Estou tão acostumada aos homens irem embora depois de eu virar a cara que nunca me ocorreu que ele me seguiria até a cozinha. Enquanto tudo acontecia – era visceral, inegável ―, eu ainda não estava acreditando. O pulsar da vida preso dentro de mim, e eu presa dentro de mim, e meu corpo que nunca foi tão pesado. Meus dentes rangem, mas minha coluna se dobra tão facilmente, como um fósforo queimado que se desfaz sob um dedão.
Sinto toda minha carne e todos os meus ossos – sinto minha sombra onde estou prensada contra a parede. A vida é surpreendente e inescapável neste momento, e minha mente ainda é parte do meu corpo, mas não quero que ela seja. O corpo dele está contra o meu, mas não quero que esteja. Em meio a isso tudo, reparo num pouco de óleo que sobrou no fogão e que minha mãe estava cansada demais para jogar fora.
Estou gritando, né? Sim. Mas silenciosamente. Não uso palavras. Me encolho. Seguro na garganta as coisas que quero dizer e digo: “Fique aí, não se mexa”, e ele diz “Fique aí, não se mexa”. Olho para o chão. Me prendo nos azulejos brancos, nas rachaduras. Morro entre uma respiração e outra, me encolho toda em tamanho silêncio e de forma tão completa que nem parece uma morte.
Isso é o que mais lembro: o momento em que perco as forças, que a luta se vai do meu corpo, e eu vou junto. As mãos largam minha garganta. Me observo do outro lado da sala. Estou aqui, e ela – eu, mas também não – está lá, e não somos mais a mesma pessoa. Dizemos: “Você não está sozinha”, mas naquele momento estou sozinha. Estou presa em um momento do qual jamais conseguirei escapar. Tenho de me abandonar lá, e o que resta é um enorme vazio de vergonha e silêncio.
Ele me rouba a voz, mas só vou perceber isso muito depois. Perco peso.
Não é incomum que eu passe meses sem menstruar, porque sou atleta e tenho um transtorno hormonal que só será diagnosticado daqui a dez anos.
Ando, sorrio, falo, mas parte de mim está convencida de que morri naquela noite na cozinha. Meu mundo não é mais real. Tenho uma compulsão constante e contínua de subir num prédio, pular e deixar o chão se aproximar para me encontrar. É meu primeiro pensamento quando o teste de gravidez dá positivo. O médico diz que o bebê está com oito meses, e estou chegando ao topo de um arranha-céu.
Ele diz que minha filha tem hidrocefalia, explicando como o cérebro dela não se dividiu em dois hemisférios – em vez disso, foi preenchido com líquido cefalorraquidiano. Ela ainda mostra algum desenvolvimento porque o cerebelo e o tronco cerebral garantem as funções mais rudimentares que sustentam sua precária vida. Se nascer, ela vai sofrer e morrer muito, muito jovem – e eu pulo do edifício.
Os médicos me dizem que, apesar disso, não posso fazer um aborto para evitar essa dor – a dela e a minha. O Alabama não abre exceções nesses casos por causa do avançado estágio da gravidez. Minha família não tem condições de sair do estado – e estou caindo e caindo e caindo.
Ele diz que minha filha tem hidrocefalia. Se nascer, ela vai sofrer e morrer muito, muito jovem. Apesar disso, não posso fazer um aborto para evitar essa dor – a dela e a minha. O Alabama não abre exceções nesses casos por causa do avançado estágio da gravidez.
Dei à luz a Zoe em 27 de outubro de 2005. Tenho 18 anos, estou com as pernas abertas diante de uma equipe de médicos. Ela não chora, mas respira. Minha mãe chora. Eles esperam para ver se ela vai morrer, e eu expulso violentamente minha mente do meu corpo. Não posso estar presente neste momento. Não posso estar neste quarto. Olho para o ponteiro dos segundos se movendo tic tic tic.
Quando finalmente a trazem para mim, vejo que ela tem meu cabelo ruivo, mas não consigo deixar meus olhos parados ali. Não quero amá-la, porque sei onde esse caminho vai me levar. Mas a amo mesmo assim. Ela é cega, surda, incapaz de mamar. Ela já está morrendo – como nós, desde o momento em que nascemos, mas para ela vai ser muito mais rápido.
Acompanho o sofrimento da minha filha durante um ano inteiro – o luto se aproxima a cada dia, implacável e incessante. Todos os momentos de sua vida são dolorosos. Acordo para trocar as fraldas e vejo uma marca de pele irritada que não estava lá cinco horas antes. Peço desculpas às lágrimas e passo pomada. Até esse tipo de estímulo parece induzir uma convulsão.
As pernas dela se enrijecem, o corpo fica tão duro que tenho medo de que os ossos dela se quebrem. Ela tem diabetes e precisa receber alimentação por via sanguínea por uma veia perto da cabeça – as do resto do corpo são frágeis demais. O corpo dela é inchado, porque ela não consegue regular seus fluidos. Ela nem parece com si mesma. Seguro a mão dela na minha. Mal consigo perceber suas articulações.
Tenho medo de deitar com Zoe. Ela tem refluxo tão forte que, mesmo medicada, o risco de aspiração é grande e ela não pode dormir de bruços. Zoe não consegue chorar, então não temos como saber se ela vomitou. Temos de segurá-la nos nossos braços o tempo todo. Fico na cama, com as costas apoiadas na cabeceira e Zoe no meu peito. Meus dedos sentem a pulsação dela, e conto os batimentos cardíacos dela para ficar acordada.
Nunca senti o passar do tempo de forma tão intensa como no ano que passei com Zoe ― cada centímetro da vida dela escorria por entre meus dedos como areia.
Você consegue imaginar quantas vezes segurei minha filha em meus braços e me senti uma monstra porque não tinha como lhe oferecer nenhum tipo de alívio? Me culpo. Até hoje volto aos dias imediatamente depois do estupro. Queria voltar no tempo e abrir minha própria boca à força, fazer sair as palavras para que minha mãe, dormindo em seu quarto, soubesse o que estava acontecendo na cozinha e viesse me salvar ― e salvar a Zoe. Mas as soluções para catástrofes não são sempre óbvias assim tempos depois?
O coração de Zoe para de bater em 6 de março de 2007, num pronto-socorro. Nunca saberemos se foram as convulsões ou a febre que começou à noite e não baixava nunca. Naquela mesma cozinha, o epicentro do meu silêncio, olho para o armário onde estão guardados os remédios e me pergunto quantos teria de tomar para ir dormir e nunca mais acordar.
Tenho apenas 19 anos, mas parece que tudo acabou, o mundo e minha vida e o futuro que eu tinha pela frente. Acho que jamais serei capaz de enxergar meu corpo ― sempre verei uma cena do crime. Nunca deixarei de me sentir violada. Nunca superarei o luto. Conhecerei esse turbilhão de emoções melhor do que conheço a mim mesma ― ele é meu companheiro constante.
Onde eu moro, é assim que tratamos as mulheres ― aqui no Alabama, homens que nunca estiveram dentro do meu corpo, nunca foram forçados a lidar com as minhas circunstâncias e nunca sentiram os resíduos da minha violação me devorando por dentro se sentem divinamente no direito de se apropriar da minha autonomia.
Essa limitação deles me enche de tristeza e raiva. Essa incapacidade de entender a realidade, de usar nossas vidas e nosso bem estar como moeda de troca por votos.
A nova lei de aborto do Alabama não tem nada a ver com misericórdia ou com a preservação ou santidade da vida. Os políticos que votaram a favor da lei não estão nem aí para as crianças que foram expelidas de nossos úteros. Eles não se importam com as coisas que jogam sobre as costas das mulheres e crianças, tampouco com as consequência do fardo que jogam sobre as costas delas.
Nossos políticos não mostram nenhum desejo de entender a natureza destrutiva do silêncio para as vítimas de estupro e incesto. Em vez disso, baseiam suas leis em fantasias idealistas sobre o comportamento da mulher que lida com gravidez de crise. Essa ignorância voluntária é uma violência em si mesma.
Sinto embrulho no estômago só de pensar que outro invasor penetrou alguma parte do meu corpo, sem nem sequer me tocar, sem ter de confrontar minha voz antes. Isso não é compaixão, é covardia. Eles desonram a todos.
Não tenho vergonha de dizer que, se pudesse ter feito um chamado “aborto tardio”, essa teria sido minha escolha. Sei o valor de ter opções, porque sei o que é ficar sem alternativas e ver o chão ruir sob seus pés, revelando um abismo. A decisão deveria ter sido minha, certamente não de algum intrometido sem rosto que jamais passará pela minha experiência ou pela de Zoe.
Não tenho vergonha de dizer que, se pudesse ter feito um chamado "aborto tardio", essa teria sido minha escolha. A decisão deveria ter sido minha, certamente não de algum intrometido sem rosto que jamais passará pela minha experiência ou pela de Zoe.
Teria feito qualquer coisa ― qualquer coisa mesmo ― para evitar um segundo sequer de sofrimento para Zoe. Me disseram que isso é egoísmo. Me acusaram de crueldade. Me chamaram de monstra. Me disseram que não fui grata porque não curti cada momento que tive com minha filha e que muitos pais fariam tudo por apenas uma fração do que eu tive.
Mas me explique como eu seria capaz de ficar olhando minha filha sofrendo, incapaz de se relacionar com o mundo à sua volta, incapaz de sentir alegria, raiva ou a confusão absoluta do meu amor ― e ainda ser grata.
Agora tenho uma família ― três filhas hilárias e brilhantes e cheias de luz. Um dia vou ter de permitir que elas saiam no mundo, para lugares que minhas mãos não alcançam. Como serei capaz de protegê-las? Meu corpo não pode servir de escudo para sempre. Falo mais e mais, somando minha voz à da multidão, porque não quero que elas passem pelo que eu passei. Não quero que elas sintam aquele fardo insidioso do silêncio ― não se minha voz puder ser ouvida.
Aqui no Alabama me dizem que, quando uma mulher engravida, o corpo já não lhe pertence. Tenho de discordar. Vivo no meu corpo há 31 anos, conheço suas limitações e seus triunfos. Só agora estou reaprendendo a reconhecer o som da minha voz. Sei o preço que paguei pelas minhas profundas cicatrizes, e sei que carrego o peso delas porque não tive escolha. Ninguém mais pode carregá-las. Este é meu corpo, e sei o que é ter meu corpo invadido.
Dina Zirlott tem 31 anos e vive com o marido e as três filhas em Mobile, Alabama. Em seu tempo livre, ela gosta de fazer doces e decorar bolos com um nível de confeitaria ― e de sabor ― duvidoso.
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