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sábado, 18 de maio de 2019

Pela dignidade da vida humana: Graça Machel abriu a temporada de conferências do Fronteiras do Pensamento 2019

Fronteiras do Pensamento
Graça Machel foi a primeira conferencista do Fronteiras Porto Alegre.
"Cabe à nossa geração, em especial aos mais novos do que eu, redefinir a nova causa comum: dignificar a vida humana."
Ativista e política moçambicana, Graça Machel foi a primeira conferencista do Fronteiras do Pensamento 2019. Em Porto Alegre, falou ao público nesta segunda-feira para um Salão de Atos da UFRGS lotado. As vagas da capital gaúcha se esgotaram rapidamente na 13ª temporada do projeto, que propõe a reflexão sobre os Sentidos da Vida

Machel tem muito a falar sobre seu sentido de vida. Ela lutou na guerrilha de libertação de Moçambique, foi ministra da Educação e da Cultura de seu país. É defensora internacional dos direitos das mulheres e das crianças e fundadora de diversas ONGs, com projetos sociais em Moçambique. Por trás de toda esta jornada, há um sentido: a dignidade da vida humana. 
A dignidade à qual Machel se refere está inseparavelmente atada a valores como aceitação e reconhecimento. Em um mundo em que a "tolerância" ao outro parece ser o máximo de humanidade que buscamos, Machel defende a importância da aceitação.

"Tolerar uma pessoa deixa subentendido um elemento de tensão para com o outro. Eu o tolero, mas a expressão ainda guarda um juízo de valor sobre a maneira como a outra pessoa é. Aceitar significa que eu reconheço o direito de escolha de ser como essa pessoa quer ser. A forma como quer viver, a sua relação com a religião. E reconhecendo, eu aceito." 





O reconhecimento de que todos somos iguais foi frisado do início ao fim do evento. Este é o fundamento de qualquer transformação - seja pessoal ou social -, esclareceu a convidada.

Machel passou por incontáveis temas ao longo de sua fala - relações de poder, religação com a natureza, preconceito racial, movimentos sociais - para explicar como se dá essa transformação da tolerância estimulada externamente para a aceitação cultivada em cada um de nós.
"É muito importante que nós comecemos a voltar para o básico, porque cada um deve sentir que tem responsabilidade. Não é tarefa de um governo ou de uma instituição. É de pessoas."
Aplaudida de pé pelas mais de mil pessoas presentes, Machel concluiu: "Todos nós merecemos viver melhor como seres humanos. Todos nós. Quer seja uma pessoa aqui perto ou em outras partes do mundo. Esta é a reflexão que eu quis fazer hoje à noite." 

Graça Machel encerra sua fala em Porto Alegre atentando para a responsabilidade de todos nós para o futuro: "Para que todos nós aceitemos a igualdade que a natureza nos ofereceu inequivocamente. Todos absolutamente iguais. Absolutamente com a mesma dignidade humana".


Graça Machel participou do debate após a conferência, mediado pelo jornalista Túlio Milman. Foi quando ela respondeu as perguntas do público presente e a Pergunta Braskem, enviada por vocês, nossos leitores e seguidores nas mídias digitais, patrocinadas pela Braskem. 
Confira esta e outras respostas de Machel no primeiro evento do Fronteiras do Pensamento 2019
Pergunta Braskem: Dostoievsky afirmou em um dos seus livros que a beleza salvará o mundo. Nem sempre somos capazes de identificá-la e, principalmente, perpetuá-la neste mundo egoísta e melancólico. Como fazer para resgatar a beleza e trazê-la de volta para nossos sonhos, alegrias e futuro?
Resposta Graça Machel: Aquilo que esse texto chama de beleza é exatamente aquilo que eu tentei essa noite chamar de voltarmos ao básico, ao natural, àquilo que nos faz sentir iguais a todos os outros. 
A beleza não é para mim o aspecto físico, a beleza é interior. A beleza é aquele estado de espírito que cada um de nós, ao fim do dia, quando fecha os olhos e pensa o que foi a sua contribuição, o que foi o seu trabalho, o que foram as relações que teve com uns e com outros. É você se sentir tranquilo consigo próprio, não que seja uma pessoa perfeita, mas sentir que fez o melhor que podia. 
Naturalmente, sempre há coisas que ficam por fazer, ou que fazemos e sentimos que são imperfeitas, mas eu penso que em cada dia o melhor é o quanto cada um de nós pode sentir que fez o melhor que podia fazer naquele momento. Pode identificar outras formas de fazer melhor no futuro, mas naquele exato momento, este é o melhor que podia fazer. 
Eu creio que é essa beleza interior que estou a falar, e insisto nisso porque eu penso que está ao alcance de todos nós. Não precisa esperar por ninguém para ter a oportunidade de fazer o melhor que pode. 

Eu creio que a melhoria da nossa condição humana depende do esforço individual e do esforço coletivo, porque depois definimos as pessoas com quem nos identificamos mais nestes valores, ampliamos o espaço e sentimos que somos centenas, somos milhões que lutam pela melhoria da condição e dignidade humana.


Leia outras respostas da ativista moçambicana Graça Machel
A senhora estabeleceu uma diferença, mas eu queria que a senhora explicasse a sua visão, a diferença entre aceitar o próximo e tolerar o próximo.
Tolerar uma pessoa deixa subentendido um elemento de tensão para com o outro. Eu o tolero, mas a expressão ainda guarda um juízo de valor sobre a maneira como a outra pessoa é. Aceitar significa que eu reconheço o direito de escolha de ser como essa pessoa quer ser. A forma como quer viver, a sua relação com a religião. E reconhecendo, eu aceito
Creio que nós precisamos de fato nos mover para esse espaço de aceitação mútua. Por que, na relação entre homem e mulher, tem de entrar aspectos de poder? Não tem que ser uma relação de valor, em que um é mais importante do que o outro, nem uma relação de poder e controle. 
Eu aceito que um homem, primeiro, é um ser humano como eu com todas as capacidades e eu espero ser aceito por todas as capacidades que eu tenho. O fato de eu ser feminina não me coloca em um nível mais baixo. Significa que eu tenho uma função, se nós quisermos colocar em termos absolutamente abstratos ou concretos. 
O masculino e o feminino servem à reprodução da espécie. Nem o homem pode ter filho sem a mulher e nem a mulher pode ter filho sem o homem, temos papeis diferentes nesse espaço. Mas nenhum desses papeis é maior ou melhor que o outro.
Eu fui discriminada quando era menina, na escola, em um país que é Moçambique, que tem praticamente 99% de pessoas negras, mas na escola cheguei a estar sozinha em uma turma, e isso constituiu uma violência psicológica para mim. 
É um problema de sistemas, e os momentos sociais têm de visar a distribuição de sistemas que separam as pessoas, que discriminam as pessoas, que categorizam as pessoas. Esses sistemas têm de cair, e todos devemos nos colocarmos na plataforma da igualdade. 
A senhora fala sobre poder, e quando eu soube que ia entrevistá-la, me veio essa ideia à cabeça. A senhora talvez seja uma das pessoas que mais conhece o poder no mundo. A senhora foi primeira dama de dois países e a senhora conhece o poder de perto não como coadjuvante, mas como protagonista. Eu queria um pouco da sua reflexão sobre o sentido do poder, da forma como a senhora viveu ao lado do presidente de Moçambique, e do presidente da África do Sul, afinal de contas, para que serve o poder, que a senhora viveu e vive tão de perto?
Eu aprendi, com essas duas figuras mesmo [Nelson Mandela e Samora Machel], que aquilo que muitos consideram poder, não é aquilo que fez com que eles deixassem uma marca, de legado positivo, do fato de eles estarem numa posição de serem vistos. 
Primeiro, é porque ambos realmente viveram uma vida de serviço. Segundo, pela maneira com que eles se relacionaram com o público, construíram instituições. Ambos tiveram que reconstituir realidades. Eles sempre o fizeram com muita humildade e aquilo que faz com que eles hoje ainda sejam lembrados e respeitados, o seu poder é de autoridade moral, não é o poder de se impor, é essa a diferença. 
Como resgatar a dignidade humana sem cuidado com as crianças, sem trabalho, sem escola e, como consequência, a invasão da drogadição?
Sabe, aqui sou capaz de entrar em um terreno um pouco escorregadio, mas vou dizer o seguinte: não é só aqui no Brasil, é também na África do Sul, é também no Moçambique, para falar de países onde eu vivo, onde eu sou cidadã. 
Quando digo que nós temos que desenvolver movimentos sociais, é exatamente para definir a nossa relação com o poder, a nossa relação com os cidadãos e com o poder, e pegarmos de volta, para nossas mãos, aquele princípio fundamental que diz: o poder reside no povo.
Nós, cidadãos, alienamos o nosso poder e o entregamos a grupos relativamente pequenos, e esses grupos ditam as condições em que a grande maioria vive. Nós ficamos, efetivamente, com as nossas crianças que não têm escola, as nossas crianças são mal nutridas e sobrevivem no mundo das drogas. 
Isso tudo é resultado de privação. E privação por quê? É isso que nós devemos nos perguntar. Quem paga impostos? Quem mantém as instituições públicas? Quem mantém os governos? E mais diretamente vou perguntar: quem usa as leis? Esse é o grande problema. Então, ficamos aqui, porque nós alienamos o nosso poder de cidadão e achamos que é normal que esses grupos, que nós elegemos, nos oprimam e criem situações de privação extrema para milhões de cidadãos.
Quando eu dizia que posso pisar em terrenos movediços, é porque isso pode significar que estou aqui a dizer que promovo insurreição, pode parecer, eu não vou dizer que devemos sair na rua e fazer confusão. O que estou dizendo é que cada um de nós, cidadãos organizados, a dizer a esses poderes que colocamos os impostos que nós pagamos, os impostos são precisamente para resolver o que essa pergunta questiona. 
Os impostos são para as crianças terem comida, escola, saúde. Então, se somos nós que estamos pagando, nós temos que encontrar uma maneira de reverter essa situação e dizer: isso não pode continuar assim. Nós construímos essas instituições, todos nós. Individualmente, ninguém vai mudar a situação, mas todos nós juntos sim. 
As relações têm de ser definidas por nós, não por aqueles que julgam que estão no poder. Se vocês souberem falar aquela linguagem do voto, eles andam vir, não tem alternativa. Estou a me valer do fato de que eu pertenço àquele espaço cultural, que é comum. Isso significa o que eu dou plena autorização de vocês virem a Moçambique e falarem dessa maneira, é vosso país, são vossos irmãos que estão lá. 
Eu falo isso em solidariedade com os irmãos que estão aqui. Alguns dizem: ah eu não posso dizer isso porque sou estrangeiro. Eu não sou estrangeira nesse país, embora eu não tenha um documento que diz que sou brasileira - e o papel pode dizer o que quiser -, mas o mais importante é aquela identidade que tenho com vocês e que me dá o direito de me pronunciar. 
A senhora está acompanhando a situação do Brasil de alguma forma? O seu olhar e a sua visão são muito importantes para nós, o que a senhora percebe sobre o Brasil olhando de fora e, alguns dias, olhando de dentro?
Eu cheguei há dois dias ao Brasil e, logo no primeiro dia em que cheguei, fui recebida por uma notícia que me abalou: o corte de 30%. Essa medida, em boa verdade, não só amputa e corta as pernas e as asas dos jovens de hoje, mas amputa o futuro desse país, e é por isso que me custa compreender qual é a lógica que está por trás disso. 
Eu acho que vocês não devem aceitar essa medida. E eu vou dizer o porquê: a educação, o direito à educação, é um fator de igualar os cidadãos, e eu sou muito obcecada pelo princípio da igualdade. 
Um jovem que esteja a viver na favela, um jovem que esteja a viver na zona de classe média e um jovem que está nas zonas mais altas, se os três tiverem o mesmo acesso à oportunidade de se formar e desenvolver habilidades, capacidades, não há de haver limite algum para aquele menino da favela ser o que ele quiser. 
É por isso que eu digo que essa medida visa, efetivamente, cortar essa possibilidade de igualdade, porque aqueles que tiverem muito dinheiro não vão para as universidades públicas, eles vão continuar a fazer as opções que quiserem. 
Aquele menino da favela que só tem a universidade pública, aí é que vai doer, aí é que vai cortar as pernas. Aqueles que podem pagar rios de dinheiro não podem amputar um futuro de igualdade nesse país. É por isso que não consigo compreender, acho que foram demasiado longe. 
Como devemos reagir quando as instituições se organizam aparentemente dentro da ordem democrática, contra os valores da dignidade humana e do equilíbrio da natureza?
Nós todos fomos construindo essas instituições ao longo de gerações e definindo as regras democráticas. Mas, nós também estamos vendo que estão usando as instituições para subverter a democracia. Contudo, somos muito inteligentes, muito mais do que aqueles que estão a subverter a democracia. 
Eu dizia que é preciso retomar o poder para as mãos dos cidadãos e não permitir que eles façam a subversão das instituições. As leis são claras: não há constituição alguma no mundo que diga que as pessoas devem ser discriminadas. A maioria sabe, sente e acredita que é justo, é por isso que vocês sabem que não está certo. Nós devemos obrigar as instituições a fazer o que é certo. Não posso ir mais longe que isso.

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