Terça-feira, 28 de maio de 2019
Há pouco tempo atrás participei de uma roda de conversa sobre proteção jurídica de meninas, aqui termo usado para designar crianças e adolescentes do sexo feminino, que me deixou aturdida. Por razões óbvias não posso dar informações precisas. A pessoa que apresentou o tema e conduziu o debate atua há anos na justiça da infância e juventude e leciona Direito da Criança e do Adolescente numa instituição de ensino superior. Quer dizer, gente experiente, com pós-graduação e tudo mais. Autoridade profissional e acadêmica.
O profissional contou que certa feita foi acionada para intervir no caso de uma criança grávida, moradora de localidade distante da capital do estado. O caso se tratava de estupro, considerando a idade da menina, nos termos do Código Penal Brasileiro previsto no tipo estupro de vulnerável (art. 217-A). Logo, nunca é demais ratificar que em interpretação conjunta toda gravidez em menores de 14 anos o aborto está autorizado pela lei penal (art. 128, II).
Narrou que a menina não entendia o que estava acontecendo e tanto os pais como atores do sistema de garantia de direitos da rede local optaram por manter o caso em sigilo na cidade. Suspeitou-se de um parente que passou uns dias hospedado na casa da menina, mas que já tinha ido embora. Quando descobriram os pais ficaram desesperados: “como uma criança ‘vai ter’ outra criança? Como ela pode ser mãe nessa idade? Ela ainda brinca de boneca, brinca no quintal!” Obviamente cada dia que passava as transformações no corpo da menina denunciavam a gestação, que seguia seu rumo. Quando a narrativa chegou neste ponto interrompi e perguntei sobre a orientação para realização de aborto legal, pois que se tratava de estupro de vulnerável: “não foi cogitado e quando me acionaram a gravidez já estava avançada e os pais ressaltaram que não queriam um aborto”[1].
Diante do impasse sobre o que fazer o Conselho Tutelar local decidiu acionar o profissional que narrou a história no evento: afinal era gente da capital, referência na área que saberia o melhor a fazer. Sem pudores ouvi num evento público a orientação foi levar a menina para capital para ter o bebê que imediatamente após o parto seria entregue à adoção.
A decisão, destacada por ter sido a melhor “pensando na menina” que não estava entendendo as mudanças em seu corpo, foi não informá-la de sua própria gravidez. Argumentou que a menina não tinha maturidade para ‘passar’ por tudo aquilo, pois era muito criança, matuta, não entendia o que estava acontecendo. E assim foi feito. Disseram a menina que ela estava com verminose e por isso o mal-estar e a barriga crescente. Como os parasitas estavam em grande quantidade explicaram que casos como o dela medicamentos não adiantavam e infelizmente somente uma cirurgia resolveria. Assim o fizeram. Seguiram com a menina para passar um tempo na capital. Foi feita uma cesariana e nasceu um bebê que imediatamente foi entregue para adoção. A menina voltou para casa, muito bem de saúde, tudo bem na cirurgia “graças a deus” e muito bem cuidada por todos, porque, “imaginem, não tínhamos outra coisa a fazer”. A menina voltou para sua casa sem saber que lhe fora feita uma cesariana. Voltou para casa achando que tinha se livrado das ‘bichas’.
Reagi mental e imediatamente me questionando se eu havia ouvido aquilo. No impulso pedi, por favor, que explicasse novamente porque não tinha entendido bem, mas havia compreendido corretamente. Alguém questionou a eticidade do encaminhamento, pessoas se entreolhavam. Alguns me fitavam, esperando uma reação como se me cobrassem dizer algo, mas apesar da minha feição denunciar a reprovação do que acabara de ouvir, por instantes fui acometida por uma paralisia verbal que poucas vezes me ocorreu na vida.
Recobrei este episódio e tive o ímpeto de escrever a respeito ao ver por esses dias notícia sobre o evento “Adoção na Passarela” realizado num shopping em Cuiabá, capital do Mato Grosso, na noite do último dia 21. O evento foi organizado pela Associação Mato-Grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara), em parceria com a Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT)[2]. Meninos e meninas entre 12 e 18 anos de idade e em situação e acolhimento institucional foram patrocinados para que desfilassem bonitos e, quem sabe, despertassem interesse nalgumas daquelas 200 pessoas que foram prestigiar o evento.
Como mercadorias numa vitrine, meninos e meninas desfilaram que estão belos, saudáveis e que merecem o lar de uma família de bem. O advogado matogrossense Eduardo Mahon foi um dos primeiros a se pronunciar e lembrou, oportunamente, de uma feira de escravos[3]. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) emitiu contundente nota de repúdio[4]. Registro que senti falta de nota do Conselho Federal da OAB pela implicação direta de uma seccional no caso, mas a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) solicitou informações à Corregedoria Geral de Justiça de Mato Grosso sobre o evento.
Os argumentos para contestar o absurdo dos dois episódios sob todas as nuances que os compõem certamente daria um tratado sobre Direito da Criança e do Adolescente. Haveria que discutir concepção de infância; os legados autoritários do período colonial e o racismo estrutural que impactam diretamente a forma como tratamos crianças e adolescentes; o conservadorismo com o qual encaramos o debate sobre direitos sexuais e reprodutivos; e muitos outros temas. Optarei por fazer apenas uma colocação sobre as tantas questões possíveis desde um ponto que acompanha a história do Direito da Criança e do Adolescente há muito tempo: o constante manejo – não ingênuo, por certo – de que pode ‘fazer tudo’ (ou quase tudo), de que tudo se justifica em nome ‘do bem’, para ‘o bem’ de crianças e adolescentes.
Faço questão de ressaltar o não ingênuo porque não existe neutralidade em lugar nenhum no mundo. Não existe neutralidade científica, política e muito menos epistemológica. Não existe e nunca existiu neutralidade sobre o que orientou e orienta as decisões sobre ‘o que fazer’ com a infância e a juventude pobre neste país. Costumava dizer em tom jocoso que só existe neutralidade nos cemitérios, mas dei-me conta que nem lá: a localização e a pompa dos túmulos, as lápides e os obituários indicam sexo, classe, geração e, certamente, raça. Por vezes indica até visão de mundo: não à toa o historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) e a jornalista e ativista Claudia Jones (1915-1964) estão no Cemitério de Highgate, bem perto do túmulo de Karl Marx (1818-1883). Pois é, nem no cemitério, porque morremos mas deixamos um lugar no mundo por aquilo que fomos.
Em diversos momentos o professor argentino Emilio Garcia Méndez chamou a atenção para o fato de que na história do Direito da Criança e do Adolescente, assim como a definição ao longo da história das políticas e das instituições voltadas para o segmento infanto-juvenil atrocidades foram cometidas em nome do bem, do amor e da compaixão[5]. No Brasil o ‘bem’ vai da extinção tardia da Roda dos Expostos chega ao uso (i)legal da determinação da medida socioeducativa de internação como compensação às violações de direito, passa pela promulgação da Lei do Ventre Livre e chega até às portarias sobre toque de recolher. Não é de hoje que o bem e a proteção são usados como forma de controle da infância e da juventude identificada como em risco. Para o outro tipo, para aqueles que ultrapassam a fronteira do risco, a privação de liberdade e a morte: e não nos iludemos, a necropolítica[6] está entre nós e segue mais perversa do que nunca. Os dados do sistema de justiça juvenil e do genocídio da juventude negra estão aí para nos provar.
Os dois casos que relatei aqui se sustentam sob o argumento de ‘fazer o bem’. Em ambos vamos encontrar discursos de bondade e boas intenções como justificativas à proteção e a perniciosa manipulação do que desde o estabelecimento da doutrina da proteção integral chamamos no Direito Internacional da Criança e no Direito da Criança e do Adolescente brasileiro de princípio do melhor interesse.
Do ponto de vista normativo, o princípio do melhor interesse (ou do interesse superior) significa, sucintamente, que todas as medidas legislativas, judiciais e administrativas devem respeitar primariamente aquilo que é melhor para o interesse de crianças e adolescentes. A literatura especializada trata o princípio do melhor interesse como princípio orientador de tudo que diz respeito às decisões que são tomadas sobre crianças e adolescentes. Mas, decerto, a literatura registra a forte carga axiológica atribuída ao princípio.
Então, quem define o que significa melhor se muitas vezes decisões duvidosas são tomadas e justificadas exatamente pensando no melhor para crianças e adolescentes? O que é melhor para crianças e adolescentes não tem textura muito aberta com espaço a ampla discricionariedade por família, Estado e sociedade? Se em nome do interesse superior da criança há quem defenda a punição corporal, a institucionalização, a gravidez e o parto sem conhecimento e consentimento, se há quem defenda a exposição da imagem e da subjetividade num desfile público em estabelecimento comercial para demonstração de saúde, beleza e disponibilidade para o amor e o afeto, existe parâmetros e limites para o melhor interesse?
Obedecer os direitos previstos na doutrina da proteção integral e aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes são pistas para pensarmos uma resposta. Apenas como exercício ao argumento, penso que se nos voltarmos para o direito fundamental à dignidade vamos chegar a indubitável conclusão que colocar adolescentes para desfilarem num estabelecimento comercial como se fossem produtos numa vitrine esperando que alguém se interesse em algum dia levá-los para casa é exposição à imagem e violência simbólica. Se dedicarmos um pouco do nosso tempo a compreender o que significa o direito à dignidade, ao respeito, à liberdade e o que abarca a efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos jamais sujeitaremos uma menina a seguir com uma gravidez fruto de estupro, fazê-la parir e ter o filho entregue para a adoção numa trama ardilosa de engabelação e mentira. Vejam que não se trata de mero bom senso, mas de critério hermenêutico.
Projetemos a monta da perversidade: aqueles meninos e aquelas meninas sabem que desfilaram na tentativa de conquistar novas famílias e as marcas no corpo de menina vão denunciar no tempo o estupro, a gestação e o parto.
Aonde estão nesses casos o melhor interesse? O melhor interesse patrocinado foi dos meninos e das meninas ou das instituições? O interesse superior foi de organizações não-governamentais, de atores do sistema de garantia de direitos, das lojas, do shopping preocupado com ações de responsabilidade social ou dos meninos e das meninas?
Não existem bem intencionados quando as boas ações são manejadas desde a desconsideração da humanidade daqueles aos quais se dirige ‘o bem’. Não existem bem intencionados quando a solução encontrada em nome do ‘bem’ coisifica e objetifica aqueles que são vítimas de violência, opressão e exclusão. Não existem bem intencionados quando a boa intenção engana, manipula, expõe e silencia justamente quem deveria ser ouvido, acolhido e protegido.
Outro ponto fundamental para pensarmos essas questões, mas que merece aprofundamento noutra oportunidade é abandonarmos o adultocentrismo e absorvermos de uma vez por todas que autonomia não é incompatível com proteção. Autonomia e proteção não se excluem mutuamente, mas se complementam. Autonomia tem a ver com respeito à liberdade intelectual de crianças e adolescentes que como qualquer outro ser humano constrói, aos poucos e a partir de experiências, uma compreensão do mundo e de saber-se no mundo. É evidente que não significa dizer com isso que crianças e adolescentes vão fazer o que quiserem, até porque eles e elas podem praticar atos que os coloquem em perigo, mas quero dizer que precisamos considerá-los como sujeitos, entendendo efetivamente que estar em fase peculiar de desenvolvimento comporta, a seu modo, individualidade, subjetividades, desejos e angústias. Crianças e adolescentes não são objeto de boas intenções, mas precisam ser sujeitos de políticas públicas e de ações judiciais e administrativas que façam valer o melhor interesse – o melhor interesse dos meninos e das meninas.
Que as deusas e os deuses despertem e guardem meninos e meninas dos bem intencionados, porque parafraseando aquele antigo dito popular, de boa intenção a miséria humana está cheia.
Jalusa Silva de Arruda é advogada e professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus XV. Faz doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e é membro do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade (LASSOS).
Nenhum comentário:
Postar um comentário