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terça-feira, 1 de outubro de 2019

Criminalização do aborto causa ao menos um processo na Justiça a cada dois dias

Levantamento do Conselho Nacional de Justiça entre 2015 e 2018 identificou casos em que mulheres são criminalizadas pelo Código Penal; familiares e profissionais da saúde são os principais denunciantes  
Confira a terceira reportagem da série especial sobre o aborto no contexto da saúde pública, da Justiça e do Legislativo brasileiros, motivada pelo Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Pela Descriminalização do Aborto (28 de setembro)
Por Vitória Régia da Silva*
27 DE SETEMBRO DE 2019
Paula**, uma adolescente de 16 anos, ao perceber que sua menstruação estava atrasada, introduziu dois compridos de um remédio denominado “Permanganato” (usado para tratamento de coceira e cicatrização de feridas comuns da pele) em sua vagina, antes de dormir. No dia seguinte, ao acordar, percebeu que estava sangrando e foi levada a um hospital-maternidade da cidade, onde foi realizada a curetagem (procedimento médico realizado para limpar o útero). Depois de três dias foi liberada. Como o aborto é crime no Brasil, ela foi denunciada e processada pela Justiça. 

Por ser a garota menor de idade, o caso foi considerado um ato infracional e seu nome entrou no Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei. A adolescente, mesmo com pouca idade, já era mãe de uma menina de quase dois anos na época do aborto. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal em caso semelhante criou jurisprudência para que a ação contra Paula fosse arquivada há uma semana.


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O caso da jovem não é isolado. Foram registrados pelo menos 1.313 processos pelo crime de aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento, tipificado no artigo 124 do Código Penal. As informações foram obtidas pela Gênero e Número no Justiça em Números, banco de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e correspondem aos processos de 2015 a 2018. Ainda que haja mais processos sobre o tema (o banco depende do envio de informações do Poder Judiciário dos estados), os números já dão uma dimensão da criminalização das mulheres que decidem interromper a gravidez. 
No Brasil, o aborto é permitido apenas em três situações: em caso de risco de vida para a gestante, quando a gestação é decorrente de estupro ou quando o feto é anencéfalo. Nos demais casos, o Código Penal prevê que a mulher que realiza o próprio aborto pode ser condenada de um a três anos de prisão em regime fechado. Já quem realiza o procedimento com o consentimento da gestante tem pena de até quatro anos. 
“A criminalização faz com que as mulheres tenham que necessariamente buscar métodos clandestinos que podem colocar sua saúde e vida em risco. A mulher morre injustamente por não poder realizar a interrupção da gravidez de maneira segura. Esse efeito da criminalização pode até ser mais grave que o encarceramento. Por isso, é importante discutir todos os aspectos, porque as consequências que estão fora do sistema penal podem ser mais graves”, diz Gabriela Rondon, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
A criminalização não quer dizer necessariamente que as mulheres que abortam vão cumprir sua pena presas. O art. 89 da Lei 9.099/95 dispõe que, nos crimes em que a pena mínima for igual ou inferior a um ano, poderá ser proposta a suspensão condicional do processo, por dois a quatro anos, desde que a acusada apresente uma série de requisitos, tais como ter bons antecedentes. Por isso, na maioria dos casos de mulheres processadas por aborto elas não precisam enfrentar um júri nem ser encarceradas, segundo as especialistas ouvidas pela Gênero e Número nesta reportagem. Nesse caso, o juiz extingue a ação e o Estado não pode mais punir criminalmente a mulher.
“Os processos existentes mostram que a mulher ocupa um lugar de muita vulnerabilidade. Só o constrangimento de ser processada criminalmente já cria um estigma. Ela só é criminalizada porque aborto é crime no Brasil. Porque, caso contrário, não teria qualquer envolvimento com o sistema de justiça”, pontua Carolina Haber, diretora de Estudos e Pesquisas e Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ).
São Paulo é o estado com o maior número de processos motivados por aborto provocado pela gestante. Ao todo, foram 230 ações entre 2015 a 2018. No último ano analisado, 2018, o Rio de Janeiro foi o estado que mais registrou processos (43). O estado está em segundo lugar durante os quatro anos analisados. 
A reportagem da Gênero e Número solicitou os dados sobre os processos por aborto voluntário por duas vias: com o CNJ, que disponibilizou os dados, e com os Tribunais de Justiça das 27 unidades federativas. Até o fechamento da reportagem, apenas Rio de Janeiro, Espírito Santo, Distrito Federal, Pará e Ceará enviaram as informações. Entre os cinco estados, foram registrados 41 processos relativos ao aborto realizado pela gestante ou com seu consentimento entre janeiro e agosto de 2019.

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Quem são as mulheres criminalizadas

Embora a Pesquisa Nacional do Aborto (2016) mostre que pelo menos uma em cada cinco mulheres faz ao menos um aborto ilegal ao final da vida reprodutiva, a criminalização tem forte traço racial: 60% das mulheres processadas por abortarem sozinhas em casa ou com ajuda de alguém no Rio de Janeiro são negras, segundo levantamento da Defensoria Pública do estado. Além disso, 75% são solteiras, 65% têm outros filhos e nenhuma mulher possuía antecedentes criminais na época do aborto.
“A justiça criminal é o funil do funil, porque poucas mulheres entre as que abortam ilegalmente chegam à Justiça. São criminalizadas as mulheres que estão em situação de vulnerabilidade na sociedade, porque não têm acesso a nada. É possível perceber uma camada de mulheres que fazem aborto e que nunca vão chegar ao sistema de justiça criminal, porque conseguem pagar uma clínica ou um remédio. É muito chocante ver que a Justiça atua numa situação que resulta da total ausência do Estado na vida delas”, diz Haber. 
Esse perfil é muito similar ao apresentado pelo levantamento da Defensoria de São Paulo, em que 47% das mulheres processadas na região eram negras, 53% já possuíam filhos, 67% eram solteiras e todas eram rés primárias, com bons antecedentes.

Denunciadas pelos profissionais de saúde

Em geral, o que dá início à investigação e ao processo na Justiça por aborto voluntário é a denúncia de hospitais ou de familiares. Segundo o levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro a partir da consulta aos processos de aborto em trâmite no estado, 65% das denúncias foram realizadas pelas unidades de saúde. Os familiares foram responsáveis por 20% das denúncias. 
A partir do pedido de 30 habeas corpus, o levantamento da Defensoria de São Paulo também identifica a contribuição dos profissionais do sistema de saúde para a criminalização dessas mulheres. De 30 processos, 25 partiram de denúncias de  11 médicos, 11 enfermeiros e 3 assistentes sociais. 
“Quando uma mulher procura o sistema da saúde para ter ajuda, ela já está em uma situação precarizada, porque passou pelo processo do aborto sem ajuda médica e sozinha. Então ela é denunciada pelos profissionais de saúde e processada, o que as afasta ainda mais do sistema de saúde e as estigmatiza”, diz a diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Em agosto de 2019, a 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou um hospital a indenizar uma paciente que foi presa em flagrante depois que médicos denunciaram à polícia que ela teria feito um aborto. A indenização foi fixada em R$ 5 mil. O Código de Ética Médica não deixa dúvidas: o sigilo profissional garante que não é permitido que informações pessoais de paciente obtidas em virtude do exercício profissional sejam repassadas para gerar investigações policiais ou expor o paciente a um processo penal.
“As mulheres têm muito receio de procurar o sistema de saúde – mesmo no caso de aborto espontâneo – e serem denunciadas pela equipe. Elas sabem que mesmo sem provas e com o subsídio de um código de ética que traz a questão do respeito ao sigilo, elas são denunciadas”, destaca Paula Sant’Anna Machado de Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.
Para a pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, a interrupção voluntária da gravidez é uma questão de saúde pública, não de Justiça. “O acesso aos serviços de saúde, que passa pelo acolhimento dessa mulher quando ela manifesta que quer interromper a gestação, pode fazer com que a médio e longo prazo se reduza o número de abortos no país. Isso porque a mulher seria acolhida e poderia ajudar os serviços a entenderem onde falhou o planejamento familiar. Desse modo, é possível consertar o que não está funcionando bem e evitar a repetição de abortos por uma mesma gestante. Se tivermos serviços mais acolhedores, será possível que elas sequer precisem fazer o primeiro”, finaliza.
*Vitória Régia da Silva é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
**O nome da vítima que deu seu depoimento para esta reportagem é fictício.

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