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terça-feira, 1 de outubro de 2013

A queda

"Blue Jasmine" é uma história séria. Não ouvi um riso na plateia. Como rir da miséria dos outros?

RUTH DE AQUINO

Uma socialite linda, rica, charmosa e elegante, que abandonou os estudos de antropologia para casar-se com um especulador financeiro e jamais trabalhou, cai no abismo quando o marido é preso. Perde tudo, dos sapatos à sanidade. Perde as joias e a autoestima. A mansão com piscina, o Bentley e o Mercedes, as viagens, os amigos. Foge de Nova York com o que sobrou: as malas Vuitton e algumas roupas de grife. Em San Francisco, pede refúgio no apartamento modesto da irmã caçula, divorciada, mãe de dois filhos e caixa de supermercado. Uma irmã que, antes, ela desprezava por falta de classe e por se relacionar com “losers” – perdedores.

A burguesa histérica em queda livre que tenta se reinventar como alguém “mais consistente” é a atriz Cate Blanchett. Ela encarna a anti-heroína de Blue Jasmine, o filme mais recente de Woody Allen, com estreia no Brasil em outubro. Viciada em martíni, vodca e no ansiolítico Xanax, seu nome verdadeiro era Jeanette, mas ela não gostava do som. Por isso mudou para “Jasmine”, mais adequado a suas ambições de hostess da alta sociedade e líder de campanhas filantrópicas.

Assisti a Blue Jasmine na França, na semana passada. É um drama pessoal, que lembra Match point no enredo de amores, mentiras, intrigas e traições. A decadência de Jasmine faz refletir sobre o que interessa na vida. Thriller emocional, o filme tem tudo para agradar a multidões – roteiro, jazz, edição ágil, personagens reais e a atuação magistral de Cate Blanchett, num papel perturbador.

Fácil entender por que as plateias se identificam. A crise do capitalismo e o fim do sonho da abundância fizeram muita gente perder a confiança nos bancos e em investimentos mirabolantes. “Coincidiu com os traumas vividos por americanos. Ricos viraram classe média, a classe média empobreceu, e os pobres perderam o pouco que tinham”, disse Woody Allen. “Mas o contexto social não me interessa, eu me concentrei na aflição de Jasmine, na crise de identidade de uma mulher que acreditava ter tudo na vida.” Ele se diz surpreso com o sucesso. “Sempre espero um desastre. Na Europa, até entendo que o filme possa conquistar. Mas, nos Estados Unidos, os favoritos são os filmes-ca­tástrofes e as comédias familiares. Um filme sério decola automaticamente mal.”

Blue Jasmine é uma história séria. Não ouvi um riso na plateia. Como rir da miséria dos outros? Existe um certo sadismo na massa que vê um ricaço, honesto ou não, perder bilhões e a pose. Ricos são alvos de inveja. Eike Batista poderia dar um depoimento sobre a reação a suas perdas recentes. O filme de Woody Allen não trata de empresários ambiciosos além da conta. E sim de escroques que abusam da boa-fé de investidores. Como Bernard Madoff, preso e condenado a 150 anos de prisão nos Estados Unidos por fraudes bilionárias e por arruinar milhares que acreditaram nele. Madoff despertou ódio e rejeição, até na própria família. Seu filho Mark o denunciou e, um ano e meio após a condenação do pai, se suicidou.

No filme, o marido de Jasmine foi inspirado em Madoff. O roteiro de Woody Allen retrata a tragédia da perda do status, numa sociedade competitiva como a americana, em que “losers” e “winners” só se misturam por acidente. “Perdedor” é uma palavra que se repete no filme, do início ao fim, e vai mudando de significado.

“A elite me interessa”, afirma Woody Allen. Ele cresceu numa família judaica de classe média do Brooklyn. “Os ricos são divertidos. São bobos. O fato de ter instrução e dinheiro não impede que façam tremendas tolices ou sofram grandes tragédias.” Foi a mãe de Woody Allen que o ensinou a ter uma rígida disciplina. “Meu pai não ganhava o suficiente, e minha mãe tomava conta do dinheiro e da família. Ela sempre via o copo cheio em apenas um terço. Ensinou-me a trabalhar e a não desperdiçar tempo.”

Não dá para odiar Jasmine, mesmo quando ela é irritantemente arrogante e cruel com os outros. Talvez porque Cate Blanchett tenha dado à protagonista a humanidade do sofrimento. “Jasmine se deixou devorar pelos acontecimentos”, disse Cate. “Ela se debate no caos. Em vez de despertar ódio, comove as pessoas por estar totalmente desesperada.”

Blue Jasmine seduz porque explora sem piedade as complexidades do comportamento humano. Quando fala sozinha, Jasmine não se mostra apenas avariada da cabeça. Falar para si mesma, em público, é um recurso para se fazer ouvir, nem que seja para recordar a pessoa de antes – uma deusa da futilidade. As lembranças ditas em voz alta reforçam a solidão real e a angústia de quem vivia mimada pelo marido e pelas circunstâncias. De repente, a vida tira o tapete debaixo de seus pés, você se desequilibra e cai. Alguns conseguem se levantar, outros nunca mais. Jasmine faz o que pode e o que não pode, antes e depois da queda.

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