Alguns acham que é o amor. Outros, que é o desejo. Eu penso que é o conflito permanente entre eles
IVAN MARTINS
A intimidade é inviolável. Saber o que se passa no coração alheio é uma pretensão tola. A maneira como sentimos amor, como lidamos com sexo, como reviramos na cama sob o peso de uma lembrança – ou de um corpo – constituiu uma reserva indevassável de individualidade. Apenas a arte, a psicanálise ou a sinceridade dos amigos nos aproximam, precariamente, da verdade dos outros. O resto é empáfia.
Na semana passada, depois de ver pela segunda vez o filme Ninfomaníaca, fui assaltado pela vontade de falar de uma questão insolúvel da nossa intimidade: a relação entre amor e sexo.
A certa altura do filme, uma personagem sussurra ao ouvido da outra: “O ingrediente secreto do sexo é o amor”. Lindo, mas a personagem que recebe a revelação não acredita. E como poderia? Ela é uma devassa enrijecida, sem conhecimento do afeto. Quando se trata de sentimentos, o que é verdade palpável para um de nós pode ser romantismo pueril para o outro. E vice-versa.
Eu mesmo, embora romântico, ao ouvir a frase do filme pensei que também se poderia dizer ser o contrário: “O sexo é o ingrediente secreto do amor”. Estaria errado? Não. Há muitos para quem a intensidade do sexo é que define a ligação amorosa. Quando o sexo é bom, seus sentimentos vão de roldão.
Quantos de nós somos assim? Nem tantos, eu acho. Minha percepção é que a maior parte das pessoas, homens e mulheres, está disposta a trocar sexo por romance. O melhor sexo fica na memória, ou persiste em escapadas. Mas a pessoa por quem somos apaixonados, (sabe-se lá por que razão), queremos perto de nós, “para sempre”. Aceitamos até sexo irregular e meia boca em troca da sensação de amar.
O desejo nos perpassa a vida, mas não tem a capacidade do amor de nos ligar às pessoas. Fenece rápido, enquanto o anseio amoroso dura. Talvez se possa dizer que o desejo é uma sensação permanente e impessoal, refere-se a muitos, enquanto a paixão é incomum e voltada a um ser específico. Eles se misturam, mas raramente se confundem.
Isso não implica numa hierarquia de sensações. Não quer dizer que o amor é mais nobre. Mas sugere que as emoções têm tempo e qualidade diferentes. Não se constrói com o sexo o mesmo que se constrói com o amor. Não se extrai dele o mesmo grau de compromisso e nem a mesma dependência emocional. Quando o sexo com alguém começa a se tornar fundamental, deixou de ser apenas sexo. Virou carinho ou paixão. Ganhou um rosto. Sexo pode ser anônimo; amor tem identidade.
Mas, na vida de cada um de nós, frases gerais não fazem sentido. Somos peculiares e contraditórios. Fomos dotados pela natureza do poder de fazer sexo a todo momento, quase indiscriminadamente, mas não agimos assim. Alguma conexão afetiva é necessária. Uma pitada de amor, ainda que ilusória, torna o sexo possível no dia a dia. Nos dá segurança para se despir, física e metaforicamente, diante do outro. Para a maioria é assim, eu imagino. Mas, para outros, eu sei, a desconexão afetiva é essencial. Sem ela, não conseguem mergulhar na insensibilidade moral sem a qual o sexo se torna excessivamente cuidadoso.
Não é curioso? Precisamos de algum grau de intimidade para chegar ao sexo, que é fornecida pelo afeto. Mas, no curso do sexo, temos de nos desvencilhar do afeto, temos de despersonalizar o outro com títulos vulgares (seu isso, sua aquilo) para alcançar a luxúria, de onde emana o prazer mais visceral. Há uma tensão permanente entre essas coisas na vida da maior parte das pessoas. E no interior dos casais. O sentimento abre portas que levam ao sexo, mas em algum momento é necessários superá-lo para chegar até o fim - aonde se vai, contraditoriamente, apenas em companhia de quem nos dá segurança afetiva.
Mas isso tudo, claro, são suposições. A intimidade de cada um de nós é coberta por um véu de mistério e incompreensão. As misturas que fazemos de amor e de sexo, ou as trocas entre eles, nós s apenas somos capazes de admitir, e teríamos dificuldade em entender. Mas é fato que essas duas entidades - o desejo e o afeto - nos habitam. Duelam dentro de nós permanentemente. Às vezes, para nossa felicidade, se abraçam. Nesses breves momentos, que jamais serão eternos, a vida nos parece simples e sublime. Como a de um bicho deitado ao sol. Como a de um anjo, embora anjos não existam.
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