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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA, A DOR QUE FICA

A Gabriela é autora deste relato sobre uma forma de violência muito comum, e que precisa ser denunciada: a violência obstétrica. 

Ser tratada com dignidade durante o parto é direito básico de toda mulher que dá à luz. Mas uma em cada quatro mulheres relata maus-tratos durante o parto. Gabriela é uma dessas quatro. 

Minha perfeição pequenina está completando dez meses. Meu maior orgulho, meu amor, minha alegria! Mas não consigo falar dela sem lembrar do nosso primeiro dia juntas aqui, fora de mim. Levei dez meses pra conseguir escrever sobre como eu me senti naquele dia e como eu sofri por isso nas semanas e meses seguintes.

Tenho 22 anos, moro em Manaus, sou casada e tenho uma filha. Nossa gestação foi tranquila, sem transtornos, eu e meu marido curtimos muito cada fase dela. Eu tenho um plano de saúde, fiz minhas últimas consultas do pré natal pelo convênio, mas como ainda estava na carência, já estava certo que meu parto seria feito num hospital público.

Durante a gestação eu passei a maior parte do tempo lendo sobre o desenvolvimento do bebê na barriga, enxoval, primeiros cuidados com o bebê, conversava bastante com outras mães, mas não me informei sobre o parto. Minha mãe teve dois partos naturais hospitalares e desde sempre eu soube que também queria um parto natural, por saber que era o melhor pra mãe e pro bebê. Não me preparei pra isso porque pensava que por ser algo natural, bastava ir ao hospital na hora certa e o meu corpo e a natureza fariam o resto. 

Eu não tinha medo da dor, mas tinha muito medo de ser maltratada na maternidade, já tinha ouvido muitos relatos tristes e tinha medo de sofrer nas mãos de uma equipe ruim, mas nem passava pela minha cabeça procurar uma equipe humanizada. A única certeza que eu tinha é que eu queria o meu marido ao meu lado o tempo inteiro. A ideia de ter uma cirurgia estava completamente fora de cogitação, a médica que acompanhava o meu pré natal me incentivava a ter um parto natural e me garantia que não havia nenhuma indicação de cesárea, que eu e a Paulinha estávamos saudáveis.

Até que um dia (37 semanas e seis dias) eu comecei a sentir uma dor de cabeça muito forte, diferente, que me impedia até de raciocinar direito. Lembrei de um dos artigos que havia lido que falava que isso podia ser sinal de pré-eclâmpsia, falei pro meu marido que precisava ir ao médico e resolvemos ir ao hospital do convênio. Quis ir até lá por ser mais próximo. Fui lá pensando em passar na emergência, aferir a pressão, talvez tomar um remédio e voltar pra casa, mas não foi bem assim...

Passei com um clínico, minha pressão estava 14/9, e fui encaminhada pro centro de obstetrícia. A plantonista nem olhou pra mim e já foi falando pro meu marido: "O senhor tem que sair agora, não era nem pra ter vindo até aqui. O hospital não permite homens nessa sala pra preservar a privacidade das mulheres." Detestei a médica desde o primeiro momento, eu detesto ficar sozinha, principalmente em hospitais. Eu era a única gestante naquela sala, mas não protestei, ele se despediu de mim e saiu.

Antes de eu ser colocada em observação, a médica pegou a minha ficha e começou a reclamar do meu plano de saúde, pegou o telefone e ligou pra alguém de outro setor: "Dá uma olhada nesses dados e vê se esse é um daqueles planos cheios de carência. Se for, já sei que vou ter dor de cabeça com essa daqui."

Algum tempo depois veio a enfermeira-chefe e disse que tinha ordens de fazer a minha transferência: "Ela não pode ficar, o plano tá na carência e ninguém pode fazer nada por ela, o marido tá atrás de dinheiro agora e acho que não vai conseguir tão cedo. Vamos preparar pra transferir."

A médica disse que não autorizava a transferência: "Se ela sair daqui vai acabar entrando em convulsão na ambulância e eu não quero ninguém me cobrando por isso. Não autorizo, deixa ela aí, daqui a pouco eu entrego o plantão e o próximo que pegar decide o que vai ser feito com ela."

A enfermeira ainda tentou convencê-la, não lembro de tudo que foi dito, mas lembro bem de quando a médica falou: "Isso não é problema meu, a culpa é do pessoal da recepção que deixou ela entrar nesse estado." Comecei a sentir medo. 

A médica fazia comentários desagradáveis pra mim, falando do tamanho da minha barriga, que era muito pequena: "Isso não é barriga de 37 semanas, seu filho tá desnutrido, mas adolescente é assim mesmo, fica sem comer e nem pensa que pode matar o filho de fome". Ela disse que se ela fizesse o parto, aquilo ia virar moda: "é o que todo mundo quer, chegar aqui passando mal e ganhar um parto de graça." Eu não respondia nada. Ela desconfiava de pré eclâmpsia, mas achou estranho que eu não estava inchada, pediu um exame de sangue e continuou esperando alguém entrar em contato com o diretor pra dar uma ordem sobre o que seria feito comigo.

Uma enfermeira vinha aferir minha pressão e monitorar os batimentos da Paulinha de tempos em tempos. Minha pressão continuava a subir e aquele mal estar só aumentava. Acho que nunca senti tanto medo quanto naquele dia, pensei que não ia mais sair de lá e que ia perder a minha pequena.

A enfermeira aferiu a pressão outra vez e chamou a médica, que já estava com o resultado do exame: "Vou ter que tirar a criança porque senão as duas vão morrer, ela já tá em sofrimento, não dá mais pra estabilizar a pressão e vamos ter que interromper a gestação por aqui."

Interromper a gestação? Tirar a criança? Meu Deus, como eu detesto essa expressão, pra mim é algo muito frio, indiferente! Não era aquilo que eu imaginava pra chegada da Paulinha. A partir daquele momento, senti como se eu já não estivesse mais lá. Senti um desespero tão grande, nunca me senti tão só quanto naquele dia. É como se eu tivesse entrado no automático, não questionava, não recusava, apenas fazia o que me falavam.

Fui trocar de roupa, colocaram a sonda, a enfermeira aplicou um remédio, eu fui pro centro cirúrgico. Eu senti frio, medo, vergonha, me senti exposta e abandonada. Não fazia ideia de onde estava o meu marido, não sabia o que ia acontecer comigo e com a Paulinha, não sabia se veria a minha pequena, se sairia de lá com ela... Tudo foi tão rápido, exatamente como eu temia, eu sozinha num hospital, longe do meu marido, com uma médica ríspida que não me passava segurança e só aumentava o meu medo. 

Aplicaram a anestesia, a enfermeira me ajudou a deitar e tudo começou. É estranho descrever o que eu senti. Acho que porque eu simplesmente não senti nada, nem física nem emocionalmente. Foi como se eu estivesse em outro lugar, bem longe dali. Levantaram aquele pano, amarraram os meus braços e tudo começou. Fiquei com medo que machucassem a Paulinha, nós estávamos sozinhas e eu nem podia ver o que ia acontecer. 

Os comentários da médica continuaram: "na próxima reunião com a direção eu vou reclamar, não tá certo, admitir alguém nesse estado e sobrar pra equipe médica? Culpa do pessoal da recepção, quero ver quem vai pagar essa conta, não sou paga pra fazer caridade pra grávida. Aposto que esse aqui vai ser PIG [Pequeno para a Idade Gestacional] e vai pra incubadora". 

Senti quando fizeram o corte, quando mexeram dentro de mim, é algo tão estranho! Ouvi e senti quando jorrou o líquido, continuaram mexendo e eu podia sentir que faziam uma pressão enorme, a mesa balançava, até que tiraram a Paulinha e eu pude vê-la de longe, tão pequena, ela nem chorou, só resmungou. Ouvi quando a médica disse: "PIG, eu nunca erro."

Paula nasceu com 37 semanas e seis dias, com 2.386 g e 45 cm.

Pedi pra vê-la de perto, a pediatra trouxe "pra dar um cheiro na mãe", eu quis tocá-la, mas os meus braços estavam amarrados e ela foi levada. Tive medo que fizessem algo ruim com ela. Enquanto me costuravam eu falei pra médica que não enxergava mais nada do lado esquerdo, ela disse que isso era comum e depois de alguns dias voltaria ao normal, quando a minha pressão ficasse estável.

Fui deixada na sala de recuperação por um bom tempo, queria ver a minha pequena, acho que delirei naquela hora, tremia de frio, não parava de perguntar por ela, pelo meu marido, queria saber onde e com quem ela estava. Depois de um tempo fui levada pro quarto. A Paulinha demorou a subir, o protocolo é manter o bebê no berçário por algumas horas, mesmo se ele estiver saudável precisa ficar longe da mãe em observação. Perguntei por ela e pelo meu marido várias vezes e só me diziam "fica quietinha e não fala nada por causa da cirurgia, sua filha tá segura no berçário." 

Ela foi trazida, segurei ela no colo, tentei colocá-la pra mamar, mas não consegui. Queriam levá-la de novo, mas pedi pra ela ficar lá comigo, deitada em mim. Meu marido veio nos ver, foi bem rápido, logo pediram pra ele sair. Ele foi embora e pouco tempo depois minha mãe veio ficar conosco.

No dia seguinte, as duas mulheres que estavam comigo no quarto receberam alta, o pediatra e a obstetra foram conversar com as duas, deram orientação sobre os testes que precisavam ser feitos no bebê, amamentação, cuidados durante a recuperação da cirurgia, entre outras coisas. Pedi pra falar com a obstetra, queria perguntar se a minha visão voltaria ao normal, ela disse que precisava ver outras pacientes e voltaria à tarde.

O dia passou, ela não voltou. Eu ainda não tinha leite, não pude amamentar e deram complemento pra Paulinha. Fiquei frustrada. Nós receberíamos alta na noite seguinte, depois de falar com a médica, mas pela manhã uma enfermeira disse que já podíamos ir embora, porque o quarto precisava ser desocupado. Não via a hora de sair de lá, mas fiquei chateada por não poder tirar as minhas dúvidas com ninguém e por ter certeza que não fui bem tratada.

Cheguei em casa e vi que o meu cartão de gestante estava em branco e o cartão da Paulinha tinha informações incorretas (amamentação na primeira hora de vida, entre outras coisas).

Durante as semanas pós parto fiquei na expectativa de acordar e ter a visão do lado esquerdo de volta, mas isso não aconteceu. Já fui em três oftalmologistas e soube que por causa do aumento da pressão eu sofri uma atrofia nos nervos ópticos. Não tem reversão.

Eu levei um tempo até me sentir próxima da minha filha novamente. Tive depressão pós parto, sofri muito nos primeiros meses, sentia uma angústia enorme ao lembrar de tudo e só conseguia chorar, me culpar, ficava tentando me convencer de que tinha sido uma boa experiência, às vezes me forçava a parecer feliz e satisfeita na frente dos outros. 

Eu não me sentia boa o suficiente pra ser mãe, confesso que cheguei a pensar em desistir de mim mesma, vivia esgotada física e mentalmente. 

Aquele dia era pra ter se tornado uma boa lembrança, mas deixou marcas ruins. Hoje eu, meu marido e minha filha somos muito unidos, aos poucos eu comecei a me abrir com ele e pude ouvir o que ele sentiu. Nós dois sofremos muito por aquele dia, por ele ter ficado longe de nós duas, sem poder fazer nada, sem saber o que acontecia lá dentro. Ele esteve sempre presente durante a nossa gestação, nas consultas, exames, e no dia mais importante, ele foi excluído. 

Quando nasce um bebê, nasce também uma mãe, uma família. E o acolhimento que a mãe e o bebê recebem nesse momento faz toda a diferença, deixa a família marcada pra sempre, pode ser motivo de alegria ou sofrimento. Por tudo que eu ouvi, vi e senti naquele dia, eu não consigo me contentar só porque no fim "deu tudo certo." Ninguém deveria ser desrespeitado desse jeito.

Quantas famílias sofrem ou já sofreram por causa de violência obstétrica? Até quando isso vai continuar?

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