No Dia Internacional de Visibilidade Trans, vale examinar um debate pouco conhecido, mas que revela muito sobre construção da ideia de mulher
Por Marília Moschkovich
A questão parece boba, a princípio. Mas é justamente quando paramos pra pensar nas categorias mais óbvias do nosso entendimento do mundo que conseguimos enxergar os mecanismos de divisão, segregação e opressão da sociedade em que vivemos. “Mulher” é uma dessas categorias: tão óbvia, a princípio, mas que causa tanto sofrimento.
Quando Simone de Beauvoir disse que ninguém nasce mulher, era isso mesmo que ela estava querendo dizer: somos ensinadas a sermos mulheres. Judith Butler, cinquenta anos depois, atribui à filósofa francesa o embrião da ideia de gênero. Somos homens e mulheres conforme nos construímos como homens e mulheres. Nos construimos homens e mulheres conforme essas categorias são entendidas pela sociedade e pela cultura em que vivemos. Assim, nos identificamos como homens e mulheres dentro de um leque de símbolos, códigos, corporalidades, comportamentos e práticas atribuídos a cada uma dessas categorias.
Curiosamente, depois de uns anos da publicação de O Segundo Sexo, uma parte das feministas da chamada “segunda onda” resolveu buscar algum tipo de “essência” feminina. Algo que faria mulheres todas as mulheres, em qualquer circunstância, cultura, condição, contexto. As teorias feministas desenvolvidas por essas militantes, baseadas principalmente em dados históricos sobre a civilização europeia-ocidental, são até hoje reivindicadas por grupos que se autodenominam de “feministas radicais” ou radfems. Com base nessas teorias, tais grupos reivindicam uma associação bem forte entre “ser mulher” e ter um certo tipo de corpo (em especial, uma vagina). É também essa essencialização da categoria “mulher” que embasa o posicionamento proibicionista sobre a prostituição, e o proibicionismo da pornografia, por exemplo, dentro do feminismo.
Nos anos 1970 e 1980, essas feministas aliaram-se a setores conservadores da sociedade, nos EUA, para que o Estado interviesse nas práticas sexuais das pessoas, fiscalizando e punindo atos de pornografia, prostituição e chamados “desvios sexuais” (como, por exemplo, fazer sexo oral ou anal – sim, é mesmo tão absurdo quanto parece). No processo, apoiaram leis que, pasmem, proibiam mulheres de viajarem sozinhas, por exemplo, para “garantir” que não houvesse “tráfico de escravas brancas” (palavras da época) evitando assim, segundo essa lógica, a prostituição.
Houve então uma grande divisão no movimento feminista, entre quem apoiava essa parte da teoria feminista que embasava essas ações, e quem ia contra, questionando tanto a teoria quanto as ações concretas das companheiras de luta. O episódio ficou conhecido como Feminist Sex Wars, ou a “Guerra Feminista sobre o Sexo”.
A maior disputa da história do feminismo, então foi precisamente sobre uma discordância em relação a esta questão: quem é a mulher?
Foi a partir daí que apareceram os primeiros traços do que chamamos hoje de “terceira onda do feminismo”. Questionando a essencialização da “mulher”, as feministas negras construiram as primeiras teorias da intersecionalidade, conceito tão caro ao pensamento feminista recente. No mesmo sentido surgiram o termo “gênero” e as teorias de gênero, que mostram de que maneiras a identidade é sempre construída, e de que maneira até mesmo o sexo “biológico” não tem nada de biológico, mas também é uma categoria discursiva (assim como a “raça”, por exemplo).
Quer dizer: antes de tudo isso, o feminismo era sim, transfóbico. Reproduzia, em suas teorias, uma série de padrões de pensamento que sustentam a opressão às pessoas transgêneras. Em vez de desqualificar o “feminismo radical” ou diversas transfobias dizendo que essas coisas não são feminismo, deveríamos justamente fazer o contrário: encarar a história do movimento para poder superá-la, transformá-la, romper definitivamente com essa parte essencialista da segunda onda. Nós viemos, sim, de teorias e percepções transfóbicas. É exatamante por isso que precisamos tanto, hoje e sempre, combater a transfobia dentro do movimento feminista.
Hoje, Dia Internacional da Visibilidade Trans, é dia de lembrar que, sim, existe uma opressão sistêmica que o nosso movimento historicamente sustenta. É dia de lutar, e marcar posição: de que lado você está?
Nenhum comentário:
Postar um comentário