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sábado, 1 de março de 2014

Maternidade de substituição e o direito de filiação à luz do ordenamento jurídico pátrio

Geraldo Zimar de Sá Júnior

Resumo: A evolução científica e biotecnológica vem apresentando diariamente novas descobertas no âmbito da reprodução humana e desafiando paradigmas consagrados, outrora intangíveis. O desenvolvimento das técnicas de reprodução medicamente assistida vem proporcionando a procriação artificial para casais impossibilitados de reproduzir-se naturalmente, podendo esta ser instrumentalizada, inclusive, pela ausência de contato sexual entre os potenciais reprodutores. No âmbito da reprodução assistida, o objetivo do presente estudo gravita em torno de uma de suas formas de expressão: a prática da maternidade de substituição, vulgarmente conhecida como barriga de aluguel. A utilização de um útero substitutivo para gerar um embrião fecundado em laboratório tem crescido exponencialmente e, concomitantemente a esse crescimento descomunal, surgem as diversas indagações da sociedade a respeito dos aspectos relacionados a filiação da criança gerada nessas condições.  Nesse passo, objetiva-se com o presente estudo, a partir de pesquisa exploratória, analisar, juridicamente, os critérios que devem envolver a definição da filiação da criança gerada por maternidade de substituição, sem perder de vista, ainda, a observância de todos os problemas relacionados a prática desenfreada da supracitada expressão das técnicas reprodutivas, quando realizada às margens das disposições éticas pertinentes, sombreada, ainda, pela ausência de qualquer regulamentação legal a respeito da matéria.

INTRODUÇÃO

Diariamente somos surpreendidos com inovações científicas que anunciam avanços nos âmbitos da biotecnologia e da engenharia genética. Tais inovações, desde a clonagem de animais, até as mais modernas formas de reprodução assistida, ocasionalmente, nos causam perplexidade e certo desacerto com os rumos que o avanço biotecnológico pode proporcionar à sociedade moderna.

Tradicionalmente, seria inviável, ou mera ficção científica, conceber a idéia de casais inférteis ou estéreis alcançarem a maternidade e a paternidade, senão através da adoção. Contudo, com o avanço experimentado pela biomedicina e biotecnologia, e com o conseqüente desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida, proporcionou-se a tais casais o direito a procriação, com descendentes com a mesma carga genética de seus genitores, inclusive.

Porém, a utilização de tais formas de reprodução assistida suscitou problemáticas jamais experimentadas pela ciência jurídica. Tal revolução reprodutiva desencadeou um verdadeiro descompasso entre a ciência do direito e as problemáticas sociais decorrentes das técnicas de reprodução assistida. A velocidade do desenvolvimento científico “atropelou” as noções do ético e de alguns institutos jurídicos, de modo que o resultado lógico de tal experiência foi o surgimento de indagações diversas que a sociedade civil, por não possuir uma resposta coesa e coerente com seus anseios, passou a temer os rumos que o progresso científico poderia conferir a vida como hoje é conhecida.

E é neste diapasão que a maternidade de substituição, socialmente conhecida como “barriga de aluguel”, merece um reforço em sua análise.

Os principais fundamentos que referendam a imprescindibilidade de uma atenção especial da ciência jurídica em face de tais inovações no âmbito da procriação podem ser firmadas em dois principais eixos. Primeiramente, a ausência de qualquer contato sexual para que se conceba a reprodução; e, por fim, a participação de uma terceira pessoa para a concretização da empreitada reprodutiva. Essa participação, por sua vez, pode figurar de maneiras diversas, sendo que, para o presente estudo cientifico, desenvolver-se-á os desdobramentos da maternidade de substituição, onde uma mulher, estranha ao casal, concebe em seu útero e gesta uma criança que poderá ser resultante, ou não, do material fecundante do casal solicitante.

A participação de uma terceira pessoa desafia o até então absoluto brocardo de maternidade-filiação, pelo qual se concebia como genitora aquela que vivenciasse todos os estágios da gravidez, sendo, portanto, discutível tal perspectiva, uma vez que poderá representar a mãe aquela que emprestou o seu útero para que o embrião se desenvolvesse e, por óbvio, se consumasse o projeto de procriação de determinado casal, como poderá ser aquela que buscou, solicitou o empréstimo do órgão gestante de uma segunda mulher, ante a inviabilidade da sua própria gravidez, caracterizando-se como uma mãe socioafetiva, na mais adequada definição da doutrina especializada.

Como única forma de regulamentação pertinente a matéria discutida, a resolução número 2.013/2013, do Conselho Federal de Medicina, dispõe a respeito da maternidade de substituição, estabelecendo restrições a tal prática. Todavia, em que pese à benignidade do presente diploma regente, a sua precariedade normativa é evidente posto tratar-se de norma infralegal, portanto sem qualquer poder coercitivo.

E é esta realidade legislativa e regulamentar que acaba por inviabilizar a prática ciente e responsável da maternidade de substituição, incentivando, em termos, a prática clandestina de tal atividade, criando, com isso, um verdadeiro mercado gestacional informal, conferindo a comercialização do útero materno grande rentabilidade financeira.

O questionamento que corriqueiramente é feito e encontra-se, ainda, sem qualquer solução jurídica gravita em torno de que, quando efetivada a prática, pode-se observar o surgimento de até três mães em potencial para a futura criança: a mãe gestacional, a mãe biológica e a mãe afetiva/social. Na definição da maternidade, como resolução da problemática oriunda da prática da barriga de aluguel, a doutrina caminha lentamente, a jurisprudência ainda é extremamente vacilante. A análise de uma série de critérios faz-se imprescindível, uma vez que se busca definir a maternidade de uma criança, ou seja, a figura que representará com maior veemência o elemento afetividade na vida e desenvolvimento do novo ser; é neste compasso que emerge a necessidade de valorização do princípio do melhor interesse da criança.

Centrado na percepção do direito de filiação perante a prática da maternidade de substituição, o presente trabalho objetiva, além de analisar as implicações decorrentes no direito de filiação diante da prática da supracitada técnica reprodutiva, tomando por referência o princípio do melhor interesse da criança, estudar os conceitos, princípios e a evolução histórica do direito de filiação e das práticas de reprodução medicamente assistida, conhecer todas as perspectivas regulamentares existentes a respeito da maternidade de substituição no ordenamento jurídico pátrio e observar as conseqüências lógicas decorrentes da previsão porventura existente, assim como perceber quais as conseqüências no âmbito médico, psicológico e sócio-jurídico decorrentes da prática da gestação de substituição à luz da ausência de um instrumento regulatório no arcabouço legislativo pátrio.

O presente estudo será desenvolvido, essencialmente, por meio de pesquisa exploratória, através da análise sistemática da Constituição Federal de 1988, Código Civil de 2002, Resolução 2.013/2013, do Conselho Federal de Medicina, de artigos científicos direcionados, doutrinas específicas de Biodireito e Direito de Família; além de um prognóstico, através de pesquisa documental, a respeito do projeto legislativo que regulamenta a temática que ora pretende se discutir.

1. PRÁTICA DA MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO E A REPERCUSSÃO NO DIREITO DE FILIAÇÃO DA CRIANÇA

De presença imprescindível no pleno desenvolvimento da vida humana, a figura da maternidade sempre foi considerada absoluta, inexistindo qualquer celeuma a respeito de quem deveria desempenhar esse papel, a quem caberia o direito de filiação de determinada criança, uma vez que os sinais exteriores denunciavam a gravidez e, por via de consequência, a figura da mãe.

O avanço científico, sobretudo no que tange a medicina reprodutiva, representou um sobressalto em matéria de procriação, uma vez que legitimou a possibilidade de casais, até então impossibilitados de reproduzirem-se, sonharem com a operacionalização do projeto parental; para isso, a biotecnologia apresentou a uma comunidade científica atônita as técnicas de reprodução assistida, essas firmadas como terapias reprodutivas que possibilitariam a apresentação de um caminho diverso para a reprodução, não representando, portanto, uma cura para a esterilidade, mas sim um contorno biológico que viabilizasse a procriação.

Como uma forma de dar instrumentalidade às técnicas de reprodução assistida, a maternidade de substituição, gestação de substituição ou gestação por outrem, surge como uma medida a ser utilizada para as mães que, ainda que pelas técnicas de reprodução assistida, somente por elas, não lograriam êxito em sua empreitada, sejam por defeitos congênitos ou morfológicos em seu útero.

Em que pese o grau de solidariedade que envolve a prática em comento, diante da ausência de uma regulamentação firme e que estabeleça parâmetros existenciais para a sua prática, a maternidade de substituição vem sendo desmedidamente utilizada em uma rentável rede comercial, onde barrigas de aluguel ofertam o seu útero substitutivo por quantias vultosas, sendo que, na maioria das vezes, pela praticidade da transação comercial, os casais se utilizam dessa metodologia nociva (até mesmo casais que não tenham a necessidade médica, recorrem a essa rede comercial).

Sem embargo de toda a discussão ética, filosófica, religiosa e moral desenvolvida em torno do absurdo decorrente da fomentação de uma rede comercial onde o principal objeto de contratação é o corpo humano, as problemáticas no âmbito jurídico, as quais são destinadas maior esforço neste trabalho monográfico, são palpitantes e demonstram o completo despreparo do ordenamento jurídico pátrio para lidar com situações relativamente recentes, ficando evidente o descompasso existente entre a ciência do direito e os avanços sócio científicos, quando, em verdade, deveria existir uma compatibilidade entre os aspectos normativos e os fatos sociais.

O direito de filiação é apresentado pela melhor doutrina como sendo parametrizado por uma relação direta que relaciona ascendentes e descendentes em um planisfério familiar. Todavia, o tradicional conceito de família foi parcialmente revogado pela nova ordem constitucional, que imprimiu novos direcionamentos aos institutos civilistas – e aos de família, por consequência -, conjecturando a existência e aferição de um novo critério para a definição da família: o critério afetivo, baseando a filiação, primordialmente, no sentimento, no desejo de ser pai/mãe, afastando a noção sistemática e absoluta de que a filiação estaria vinculada primeiramente ao casamento, e em segundo plano as percepções biológicas.

O elo da afetividade que reúne pais e filhos na nova concepção da família ganha um respaldo surpreendente no Direito de Família, uma vez que valoriza as relações existentes entre os membros de determinado grupo, independente da ligação genética existente entre eles. Valoriza, de fato, a verdade existente nas relações entre os parentes, no elo sentimental desenvolvido entre eles.

Corroborando com as premissas aqui apresentadas, SILVA (2011, p.63) assim acentua a questão da filiação quando perpetrada frente às técnicas de reprodução assistida: “Não se pode mais levar em conta apenas os aspectos genéticos, biológicos, gestacionais e afetivos, ou até mesmos legais, para a averiguação da parentalidade. Somos parte de algo muito maior, em que a doença da infertilidade fez com que a ciência viabilizasse a formação de vida fora do corpo, e mais, a gestação fora do útero materno, colaborando ainda a cessão de útero para que hipóteses de esterilidade do casal sejam suprimidas por meio de embrião doado por outrem e utilizando o útero emprestado de mulher estranha à relação, realizando-se então o sonho da maternidade e da paternidade. Nesse mesmo sentido, devemos mencionar a possibilidade de utilização da técnica por pessoa que não detenha propriamente patologia que impossibilite a procriação. Ao aplicá-la em casos em que o desejo de ser mãe ou pai é exercido por casais homossexuais, enfrenta-se a inexistência de infertilidade ou de esterilidade, mas ela é utilizada em quem, no exercício de sua sexualidade, copula apenas com pessoas do mesmo sexo; não se pode exigir-lhe que, para a obtenção de descendência, pratique sexo com quem o repulsa, em respeito à sua dignidade humana.”

No âmbito da reprodução assistida, mais precisamente da maternidade de substituição, as problemáticas envolvendo o direito de filiação ganham contornos deveras dramáticos, uma vez que a incerteza quanto a essencial figura da maternidade pode comprometer o desenvolvimento da criança, sem falar no desequilíbrio psicológico causado em todos os envolvidos, por não possuírem a exata noção dos vínculos de “parentalidade”. É nesse diapasão que a inocuidade do legislador pátrio apresenta as maiores e nebulosas falhas, comprometendo todo o sistema de percepção de família para quem se socorre do empréstimo do útero para a consecução do projeto parental.

Não obstante toda a problemática desenvolvida em torno da filiação da criança gerada através de uma barriga de aluguel, exsurge a imperativa necessidade de se firmar critérios de ordem subjetiva e objetiva para a aferição da maternidade, quando esta se apresenta duvidosa.

Nada mais prudente, no âmbito da criança e do adolescente, em sobrevalorizar o principio do melhor interesse como diretriz reitora na busca pela maternidade que melhor responda às expectativas, de uma mãe que forneça suporte psicológico, social, existencial a criança. Não obstante o posicionamento firmado, como será desenvolvido posteriormente, de que o casal que buscou a instrumentalização do seu projeto familiar mediante a maternidade de substituição, ou seja, o casal solicitante, possua, em tese, melhores condições afetivas e sociais de fornecer o pleno desenvolvimento da criança, o principio do melhor interesse não deve ser desprezado, merecendo toda a ressalva e análise, uma vez podendo apontar percepções diferentes a respeito da maternidade que melhor atenda aos reclames da criança.

2. A SUPREMACIA DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DOS SEUS DIREITOS COMO CRITÉRIO PRIMORDIAL PARA DEFINIÇÃO DA MATERNIDADE

Na melhor dicção das lições de REALE (2002, p. 303) princípios são “enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo do saber. São verdades fundantes de um sistema de conhecimento”.

A percepção dos princípios como diretrizes norteadoras de todo um sistema de normas, servindo de base de apoio para a validação existencial de determinadas regras, importa em inferir que mais que um apoio fundante, os princípios também devem servir de norte e orientação tanto para o criador, quanto para o aplicador das regras; podendo os princípios, inclusive, embasarem, motivarem decisões, como forma de melhor atender os valores primordiais consagrados na sociedade que viabilizou a inserção de tais diretrizes principiológicas como âncoras do ordenamento normativo vigente.

No âmbito do princípio do melhor interesse da criança a realidade não é diversa.

Fruto de uma intensa evolução no que pertine a percepção da criança e do adolescente no meio social, o principio em tela demonstra a necessidade de valorização da criança e do adolescente como sujeitos de direitos fundamentais, devendo a possibilidade de consecução dos seus anseios servir de base para a resolução de qualquer celeuma oriunda de discussão jurídica atinente a “parentalidade” deles.

Com efeito, o ordenamento jurídico pátrio, posteriormente a promulgação da Constituição Federal de 1988, passou por uma repaginação no que tange ao papel que deve ser desempenhado pelas normas, pelo Estado, pela Sociedade e até mesmo pela família, em função da criança e do adolescente, que passaram a figurar como sujeito de direitos e obrigações, não figurando mais como meros espectadores de normas, antes considerados unicamente como objetos de proteção e ingerência do Estado.

Essa mudança paradigmática anunciada alhures traduziu o rompimento com a doutrina da situação irregular, de tradição secular, onde a criança e o adolescente, vistos apenas como menores, eram objetos de proteção do Estado quando se amoldavam ao modelo pré-definido de situação irregular anunciado pelo artigo 2º[1], do Código de Menores, de 1979. A atuação do Estado-Juiz era lastreada no binômio carência/delinquência, onde todas as demais questões atinentes aos menores deveriam ser tratadas por um Juízo Comum.

Essa realidade imposta pela percepção do menor pela doutrina da situação irregular criou uma espécie de preconcepção da ideia de criança que necessitava da intervenção do Estado, que geralmente seriam negras ou pardas, advindas do interior ou das favelas. A intervenção estatal, não menos burocrática quanto a definição imposta pela doutrina da situação irregular, era caracterizada pelo afastamento da menor do ambiente que o colocava em situação irregular, ainda que esse ambiente fosse o familiar. Prestigiava-se a ação do estado, que tentava dirimir os problemas do menor, em detrimento, inclusive, da família, da convivência familiar e dos decorrentes laços de afeto desenvolvidos pela criança.

Analisando sinteticamente, a doutrina da situação irregular atuava diretamente nas conseqüências advindas de determinados problemas que colocava os menores em “situação de risco”, desprestigiando, todavia, as causas que resultariam na gênese da problemática.  Demonstrava-se, dessa forma, um completo despreparo em, verdadeiramente, solucionar as grandes questões envolvendo a criança e o adolescente.

Com a promulgação da Constituição de 1988, mais precisamente em seu artigo 227[2], a ordem jurídica buscou, rompendo com os ditames da doutrina da situação irregular, consagrar a doutrina da proteção integral, que veio a destituir os valores e preconcepções fincadas pela situação irregular, absorvendo os valores estatuídos pela Convenção dos Direitos da Criança. Confere-se, agora, a criança e ao adolescente, indiscriminadamente, o “status” de sujeitos de direitos fundamentais, como qualquer outra pessoa; ou seja, rompe-se com a percepção limitada do menor e abre-se vistas a todas as crianças e adolescentes como titulares de direitos que devem ser observados por todos, respeitando-se a sua condição de peculiar pessoa em desenvolvimento.

O princípio do melhor interesse, assim como o princípio da prioridade absoluta e o princípio da municipalização, serve de norte geral e orientador das disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), sendo provisionado no artigo 227, da Carta Política de 1988, bem como, implicitamente, nos artigos 4º, 5º e 6º[3], da Lei 8.069/90.

Tal princípio não se afigura como uma inovação trazida pela doutrina da proteção integral, já se encontrando previsto no artigo 5º[4], do Código de Menores, devido a influência reconhecida do best interest, na Declaração Internacional dos Direitos da Criança, em 1959. 

Na esfera da situação irregular, a aplicação do referido princípio era direcionada aos menores em situação irregular, sendo somente a esses assegurado a análise primordial do seu melhor interesse; com a adoção da doutrina da proteção integral, o princípio ganhou novos contornos e funções, sendo aplicável a qualquer criança ou adolescente, indistintamente, que deverá ter seus direitos e interesses supervalorizados e analisados primeiramente, em qualquer situação. Diante dessa repaginação do princípio do melhor interesse à luz da doutrina da proteção integral, obtemperou-se a função de tal princípio em três principais eixos: interpretativo, aplicativo e elaborador.

Em suas ilações, AMIM (2011, p. 34) destaca as funções primordiais do principio do melhor interesse, sob a égide da doutrina da proteção integral, nos seguintes termos: “Trata-se de princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos ou mesmo para elaboração de futuras regras. [...] atenderá o princípio do melhor interesse toda e qualquer decisão que primar pelo resguardo amplo dos direitos fundamentais, sem subjetivismos do intérprete. Melhor interesse não é o que o julgador entende que é melhor para a criança, mas sim, o que objetivamente atende à sua dignidade como criança, aos seus direitos fundamentais em maior grau possível.”

O principio do melhor interesse, enquanto indexador da busca pela melhor forma de atender aos direitos das crianças e dos adolescentes, deverá ser analisado em sua função de orientação ao legislador (enquanto elaborador da lei) e ao aplicador do direito, sempre estabelecendo como parâmetro fundamental a percepção da situação que melhor atenda aos interesses da criança e do adolescente; o mesmo raciocínio vale para uma análise interpretativa, seja de uma lei ou de um caso em concreto, onde a solução sempre deve estar fundamentada, primeiramente, no atendimento das melhores resoluções em prol da criança e do adolescente.

A criança e o adolescente, enquanto sujeitos de direitos fundamentais, bem como salvaguardados pelo principio do melhor interesse, sempre devem ser destinatários finais das resoluções de problemáticas que assegurem o seu bem-estar social, o seu pleno desenvolvimento, a segurança quanto ao seu direito à vida, à saúde e a liberdade, enfim, todo o aparato desenvolvido pelas bases principiológicas que regem o Estatuto da Criança e do Adolescente; além disso, qualquer outra disposição normativa referente a esta temática, bem como o aplicador da lei, Estado-Juiz, e a jurisprudência dos Tribunais, devem ser firmes em atentar-se que a Constituição Federal de 1988 consagrou a proteção integral, o melhor interesse, a prioridade absoluta em prol da criança e do adolescente e não dos seus pai, mãe, avós ou familiares.

O caráter vanguardista trazido pelas técnicas de reprodução assistida, principalmente no que diz respeito a definição da filiação dos embriões gerados mediante tais práticas, associada a completa inocuidade do legislador pátrio em dar o devido destaque legislativo a tais avanços científicos, que há muito representam uma realidade evidente na vida social, redundaram em problemáticas de grande dimensão jurídica, ética e social, que, na maioria das vezes, traduzem-se em consequências nefastas para todas as partes envolvidas, sobretudo para as crianças oriundas da medicina reprodutiva, bem como para as famílias participantes. A incerteza quanto aos vínculos de “parentalidade” pode causar transtornos congênitos na vida pessoal das partes que se socorrem dos avanços científicos em busca de contornar o drama da ausência de capacidade reprodutiva natural.

Com esse retrospecto, na prática da maternidade de substituição as problemáticas não são diferentes, ao contrário, se avolumam sobremaneira, posto que, além do casal que se submete a procriação artificial, ainda existe a figura de uma terceira pessoa, mulher que empresta seu útero para a consecução da gravidez.

Com a gestação de substituição, a mãe hospedeira, que cede o seu útero em empréstimo para a gravidez, pode desenvolver, por estágio hormonal natural do particular período de vida, um afeto descomunal com o feto em desenvolvimento, negando-se a entregar a criança recém-nascida por querê-la como filha; em outro quadrante, o casal que se submete à medicina reprodutiva através da maternidade de substituição, instrumentalizada a gravidez, pode vir, por motivo que seja, a desistir do projeto parental, desejando que a criança permaneça com a mãe de aluguel, mesmo que essa também não tenha interesse em possuir a guarda da criança; problemática similar pode ser desenvolvida a partir da morte do casal solicitante, que tendo buscado a gestação por outrem, vêm, posteriormente, a falecer, sem que a mãe hospedeira possua as melhores condições psicossociais de ficar com a guarda da criança por ela gerada.

As dificuldades decorrentes da prática da maternidade de substituição, como visto, são insondáveis e incomensuráveis. A ausência de uma predileção legal em firmar-se em determinado sentido agrava e dificulta progressivamente a vida dos indivíduos envolvidos no “jogo dos sentimentos e emoções” decorrentes de uma gravidez querida por determinadas pessoas, mas instrumentalizada por outra. A jurisprudência, por sua vez, ainda é completamente vacilante na matéria, justamente diante da ausência de qualquer regulamentação legal no arcabouço legislativo.

É nesse diapasão que o principio do melhor interesse surge em seu caráter interpretativo, aplicativo e elaborador, uma vez que ele possui a capacidade de informar ao legislador, elaborador da norma legal, e ao aplicador do direito ao caso em concreto, o estado-juiz, a perspectiva que melhor se amolda a um caráter solucionador aos problemas relacionados à filiação, oriundos da prática da gestação de substituição.

Com efeito, pelo princípio do melhor interesse, deve-se buscar perquirir sempre, com prioridade, a situação que melhor atenda as opções de desenvolvimento pleno da criança e do adolescente. Neste quadrante, deve o legislador e o aplicador do direito observarem, quando da prática da maternidade de substituição e da celeuma envolvendo a “parentalidade” da criança, as melhores condições de vida, seja no aspecto emocional, social, psicológico, etc., que podem ser fornecidas à criança recém-nascida.

Convergindo no entendimento acima destacado, SOBRAL (2010) firma seu posicionamento nos seguintes termos: “[...] Nos dias de hoje, os operadores do direito, ao tratar da filiação, têm que dar valor ao interesse do menor, devem observar o que realmente é o melhor para a criança e/ou adolescente, de modo a favorecer sua realização pessoal, independentemente da relação biológica que tenha com seus pais, pois muitas vezes eles encontram-se ligados apenas pelo parentesco sangüíneo, não existindo entre os mesmos qualquer tipo de ligação afetiva capaz de uni-los verdadeiramente como pais e filhos.”

A prática da maternidade de substituição, tal como hodiernamente observada, geralmente instrumentalizada por uma rede comercial, onde uma das partes sempre visiona o interesse lucrativo, a rentabilidade do negócio, ou até mesmo quando realizada nos melhores ditames éticos, seguindo as exatas disposições do Conselho Federal de Medicina, sempre evidencia o desejo por parte de determinadas pessoas em constituírem a sua família.

Casais estéreis, pessoas do mesmo sexo... A busca pela reprodução através da maternidade de substituição sempre demonstra uma grande aptidão para o projeto parental, para o desenvolvimento do afeto (que hoje deve considerado como pedra angular na definição da família) por aqueles que se valem da medicina reprodutiva como forma de contornar os impedimentos da natureza na operacionalização da procriação. Por tendência lógica, esses que enfrentam o próprio preconceito, superam barreiras de ordem familiar e até mesmo psicológica para se valerem desse subterfúgio científico em busca da formação da desejada família, demonstram com mais veemência as melhores aptidões para a criação e desenvolvimento de uma criança. O desejo demonstrado na busca pela formação da entidade familiar é uma demonstração nítida de possibilidade de desenvolvimento de afeto pela criança futuramente concebida. Por imperativo lógico, em regra, àqueles que buscam a consecução da família através da maternidade de substituição dão mostras da capacidade de envolver-se no projeto parental e no fornecimento de melhores condições de vida à criança.

É essa realidade que o principio do melhor interesse vem a evidenciar no âmbito da prática da gestação de substituição: àqueles que tencionam o planejamento familiar, seja pela maternidade de substituição, ou por qualquer outra metodologia da medicina reprodutiva, por regra, são aqueles mais capacitados para desenvolverem a plenitude da relação afetiva que se espera entre pais e filhos.

O critério que ora defende-se, que possui no melhor interesse da criança, na afetividade, e no elo sentimental que melhor define a formação da família, apresentado, em regra, pelo casal que busca, mediante o empréstimo do útero, a formação do seu núcleo familiar, não deve ser parametrizado em acepção absoluta.

O posicionamento firmado em hipótese alguma deve ser galgado em uma percepção equacional, onde o preenchimento das variáveis produzirá, sempre, o mesmo resultado.

O aplicador do direito, assim como o legislador, quando defrontar-se com a real situação emanada da maternidade de substituição, deve submeter todos os envolvidos em intenso estudo psicossocial, como forma de responder da maneira prudente qual seria a maternidade que melhor responderia aos anseios da filiação, ao desenvolvimento pleno da criança, sempre tomando por diretriz basilar os fundamentos acima delineados, quais sejam: o melhor interesse da criança, aferido por estudos de ordem social e psicológica frente aos envolvidos na problemática da filiação; na afetividade desenvolvida ou que pode desenvolver-se com o feto em desenvolvimento; e, por fim, a análise mais acentuada do retrospecto social e de vida do casal que buscou, mediante técnica de reprodução assistida, viabilizada, neste caso, pela maternidade de substituição, a fomentação do empreendimento familiar, posto que esses, em regra, pelo desejo manifestado em desenvolverem uma família, podem possuir as melhores condições de fornecerem a criança uma vida em pleno desenvolvimento, com saúde, educação, liberdade e, acima de tudo, afeto pleno na relação doméstico-familiar.

3. ANÁLISE DO DIREITO DE FILIAÇÃO À LUZ DA PRÁTICA DA MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO

Consubstanciada, primeiramente, como um ato de solidariedade, a prática da maternidade de substituição não deve ser encarada como um problema descomunal, fonte de descrença na maternidade natural. Contrariamente, àqueles que adentram na órbita da gestação de substituição, mediante técnica de reprodução assistida, tencionando contornar problemas que inviabilizam a realização do projeto parental, são dignos de respeito e merecem ser amparados pela sociedade civil e pelo Estado, que não deve ingerir na formatação do núcleo familiar, devendo, em verdade, assegurar a viabilização dos meios e métodos que facilitem a consecução da procriação.

O ímpeto de formar uma família não deve ser marginalizado pelo Estado, que, enquanto garantidor da plenitude dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, deve facilitar o acesso a medidas que operacionalizem o projeto familiar, conforme assentado constitucionalmente. Negar o direito à procriação para casais estéreis, que por disfunções biológicas não podem naturalmente reproduzir-se, afigura-se sobremaneira injusto, servindo tal negativa como desabono a dignidade humana do casal e em violação expressa aos direitos reprodutivos dos mesmos.

Dessa forma, não incumbe a sociedade o papel de julgadora maior da mulher que se vale de uma técnica de reprodução assistida, muitas vezes operacionalizada pela maternidade de substituição, buscando condená-la por desejar instrumentalizar um desejo primitivo, um sonho distante e inviabilizado pelo desamparo biológico: o de ser mãe. O apoio ao casal que adentram na empreitada da reprodução artificial é imprescindível, cabendo a sociedade e ao Estado darem o suporte psicológico necessário àqueles que necessitarem das técnicas de reprodução assistida, como forma de ampliar o seu poderio de decisão diante de uma realidade dura e complexa.

BRAUNER apud SILVA (2011, p. 57) ensina que: “[...] embora seja a adoção uma experiência enriquecedora, devendo ser incentivada dia a dia, ela não representa o caminho escolhido por todos que não podem gerar naturalmente, pelo que deve ser dado reconhecimento aos métodos ofertados pela ciência moderna para tratar da infertilidade e da esterilidade, dado que a esterilidade não é aceita facilmente, razão pela qual mulheres estéreis se socorrem dos métodos de reprodução medicamente assistida, dentre as quais ganha relevância a gestação de substituição.”

Embora haja uma inversão de valores na definição da maternidade, diante da confusão existente entre a mãe gestacional, mãe genética e mãe socioafetiva, a prática da maternidade de substituição é válida e legítima na medida em que, se bem provisionada legalmente, como já assentada pelo Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 2.013/2013, pode transformar-se em importante instrumento de contorno às causas de esterilidade, viabilizando a empreitada do projeto familiar desejado por inúmeros casais que esbarram em más-formações morfológicas ou em dificuldades fisiológicas, que impedem a geração de filhos de maneira natural, sendo que somente essa dura realidade já representa transtorno demasiado para àqueles que desejam, naturalmente, procriar.

A proibição da prática, através de uma predisposição legislativa, além de não trazer nenhuma sorte de benefício para casais estéreis, atravancando sobremaneira as possibilidades de reprodução artificial destes, ainda serviria de aquecimento e incentivo velado (implícito) ao comércio da barriga de aluguel, que agora se desenvolveria plenamente às margens da lei, que perderia a oportunidade de reduzir drasticamente a comercialização do útero materno.

Muito embora possua, independentemente de previsão legal, problemas éticos bem definidos, a regulamentação da maternidade de substituição como uma prática legítima, viável, desde que atendido certos requisitos de ordem social e psicológica, não representaria a validação de uma atividade nociva a sociedade, pelo contrário, serviria de suporte a consecução do planejamento familiar (conforme consagração no artigo 226, da Constituição Federal, já salientado em capítulos anteriores) por casais que não possuíssem qualquer outra oportunidade reprodutiva.

Fomentar leis que proíbam a gestação de substituição representa um retrocesso social e cientifico; é não observar uma realidade evidente e já sedimentada nos campos da medicina reprodutiva, é desestimular o progresso científico, é propiciar e aquecer o surgimento e desenvolvimento de um comércio clandestino e ilícito de barrigas de aluguel, sem falar no incremento do “turismo reprodutivo”, estimulando casais estéreis a buscar centros estrangeiros que não proíbam a prática da maternidade de substituição. Enfim, negar a possibilidade de instrumentalização do projeto parental é mais que uma prática abusiva, é inconstitucional, por ferir mortalmente a dignidade humana daqueles que desejam ter filhos e não visualizam esta possibilidade de forma natural, além de desconsiderar o papel do Estado no que tange a formação da família, considerada, constitucionalmente, como base da sociedade, conforme aponta a dicção do parágrafo 7º, do artigo 226[5], da Carta Magna de 1988.

Exatamente na dimensão dada ao papel da família na Carta Política de 1988, pode-se observar o redimensionamento dos critérios que aferem, de fato, a existência de núcleo familiar. Com efeito, mais que agrupamento de ascendentes e descendentes, a família “moderna” tem por principal fator agregador o afeto que estreita a ligação entre os componentes do núcleo familiar. Independente da formatação, seja por pessoas do mesmo sexo, de sexos diferentes, por uma só pessoa, o fator afetivo ganha respaldo determinante na percepção da família, demonstrando, assim, a ruptura com paradigmas absolutos que engendravam a realização plena dos indivíduos, enquanto família, por não estarem amoldados aos critérios biológicos enlaçados pelo matrimônio, como outrora exigido; a família de fato das décadas passadas, hoje já pode ser considerada válida e digna de especial proteção por ser consagrada, também, como família de direito, fulcrada, primordialmente, nas relações de afetividade existentes entre os membros do segmento em análise.

No âmbito da filiação, observada diante da prática da maternidade de substituição, esse elo afetivo ganha um respaldo infinitamente superior, onde o ato de vontade, de buscar formar uma família, representa um indício firme da formação de um vínculo materno-paterno-filial com a criança, embora essa venha a ser gestada por outrem.

Exemplificando essa realidade do elo afetivo na gestação de substituição, SILVA (2011, p. 58) assevera que, quando instrumentalizada a gestação de substituição e observando-se problemas na fixação da “parentalidade”, diante, por exemplo, da recusa da mãe gestacional na entrega do recém-nascido, assim deve ser encarada a problemática: “A atribuição de maternidade, estendendo-se também à de paternidade, deverá ser feita àquela mulher, ou ao casal, encomendante da técnica médica e participante do processo procriativo, tenham eles identidade genética ou não com a criança. O que importa aqui é o ato de vontade manifestado para o exercício do método, levando-se em conta o consentimento realizado pelas partes. Assim, na hipótese de uma mulher que, para realizar projeto procriacional, precisar de gametas de outra mulher que possa lhe doar o óvulo, precisar da doação de esperma em virtude de esterilidade de seu marido, contar com a doação de embrião, ou até mesmo ter seu embrião (com material genético seu e de seu marido ou companheiro) implantado em terceira, é de se atribuir à maternidade à mãe encomendante.”

Ou seja, o elemento da vontade, que se reverbera no fato gerador da busca pela maternidade de substituição como forma de instituir uma família através de métodos científicos, cria, previamente, uma ligação entre os encomendantes e a criança, já sendo perceptível o afeto que os animou a buscar a procriação artificial como forma de se tornarem, verdadeiramente, pais.

Na exata concepção do instituto, a maternidade é delineada pelos sinais exteriores da gravidez e pelo parto; todavia, os métodos científicos viabilizaram outras formas de concepção, desvalorizando o absolutismo dessa presunção que a mãe é sempre quem dar à luz a criança, sendo imperativa a análise de todo o acervo circunstancial que redundou no nascimento do recém-nascido.

A gênese da imperativa análise do elo afetivo que vincula a criança gerada e a mãe em potencial surgiu exatamente da ausência de qualquer vinculação biológica ou genética, na reprodução heteróloga, entre a encomendante e o feto em desenvolvimento, uma vez que existem casos médicos, mais comuns e rotineiros do que se imagina, que além da impossibilidade morfológica de gestar a criança, a mãe social/encomendante também não possui células reprodutoras aptas - óvulos - a dar viabilidade a fecundação.

Nesse mesmo repertório argumentativo, DINIZ (2002, p. 580) converge com o entendimento sufragado alhures afirmando que “independentemente da origem genética ou gestacional, mãe seria aquela que manifestou a vontade procriacional, recorrendo ao estranho para que ela se concretizasse”.

As problemáticas decorrentes da prática da maternidade de substituição não pairam somente na definição da filiação, entre a maternidade e paternidade, diante da completa ausência de regulamentação legal; o reconhecimento do estado de filiação da criança gerada pela gestação de substituição, ainda que os encomendantes a reconheçam expressamente como filha, possuindo um elo de afeto bem delineado com o recém-nascido, estando devidamente atendido o melhor interesse da criança, deve ser encartado, fundamentalmente, por um intenso e desgastante processo judicial, sendo que a realização extrajudicial pode culminar na prática da figura típica prevista no artigo 242[6], do Código Penal Pátrio (Parto Suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido).

Tentando dirimir as inúmeras problemáticas oriundas da prática da maternidade de substituição, mais precisamente no tocante a definição da filiação e “parentalidade”, a I Jornada de Direito Civil propôs importantes alterações no texto da codificação civil (tal proposta ainda encontra-se em fase de discussão), em especial a inclusão do artigo 1.597-A, ao final do Titulo I, do Livro IV, do Código Civil; o enunciado de número 129 propôs a inclusão do preceptivo legal nos seguintes termos: “Artigo 1.597-A – A maternidade será presumida pela gestação. Parágrafo único – Nos casos de utilização das técnicas de reprodução assistida, a maternidade será estabelecida em favor daquela que forneceu o material genético, ou que, tendo planejado a gestação, valeu-se da técnica de reprodução assistida heteróloga.”

A justificativa para a modificação é plena e completamente válida uma vez que buscou, através da edição de tal artigo, dar suporte a maternidade da mãe encomendante, seja através da reprodução homóloga, onde há a efetiva utilização dos gametas do casal, estando bem definida a filiação biológica, além da afetiva, como na reprodução heteróloga, sem a utilização de qualquer célula reprodutora do casal encomendante, sendo que, nesse caso, somente a gestação caberá à mãe sub-rogada. A Jornada ainda reforça a completa impossibilidade da mãe sub-rogada, que efetivamente gerou a criança, exigir qualquer parcela lucrativa para que venha a emprestar o seu útero.

FERNANDES (2000, p. 114) posicionando-se a respeito de eventuais conflitos na definição da filiação-maternidade assim exarou o seu entendimento: “Ante a possibilidade de um conflito de maternidade, é fundamental estabelecer juridicamente que a maternidade deverá cair sempre naquela que será a mãe socioafetiva, até porque o projeto de maternidade partiu dela, ao escrever o seu direito constitucional do planejamento familiar.”

Por certo, o que se pode afirmar é que todas as hipóteses de eventuais celeumas decorrentes da prática da maternidade de substituição tendem e devem ser solucionadas pela regulamentação legal, que se afigura urgente e imprescindível. A prática, acertadamente, ainda não é proibida no Brasil, sendo regulamentada deontologicamente pelo Conselho Federal de Medicina, mas a ausência de lei deflagra problemas de difícil solução e até mesmo inevitáveis, como ocorre com o registro da criança, que somente será instrumentalizado em nome do casal encomendante mediante processo judicial, posto que o documento hábil a instrumentalizar o registro da criança, emitido pelo hospital onde fora realizado o procedimento do nascimento, terá como indicação da mãe aquela que entrou em trabalho de parto.

A definição da filiação da criança, gerada mediante a maternidade de substituição através de uma fecundação homóloga, ou seja, quando o embrião é gerado com a utilização das células reprodutoras do casal encomendante, passa pela relativização do brocardo mater semper est. Em uma perspectiva mais palpável, ou menos tormentosa, a filiação decorrente da fecundação homóloga passa pela associação da mãe biológica com a mãe afetiva, que se consubstanciam na mesma pessoa. A relativização da percepção absoluta de que a “mãe é sempre certa” diante da gravidez e do parto ganha respaldo justamente porque esta pré-definição não mais atende ao melhor interesse da criança, uma vez que a mãe gestacional, que cedeu/emprestou seu útero, ao aceitar realizar todo o procedimento, não possuía a menor intenção em firmar-se na maternidade, ainda que esteja umbilicalmente ligada a gestação. A filiação, para esses casos, encontra-se fulcrada centralmente na relevância do critério biológico (sempre devendo ser associado ao afetivo), posto que a criança oriunda da gestação de substituição possui o mesmo material genético do casal encomendante.

No âmbito da reprodução heteróloga, os problemas se acentuam com veemência. O procedimento é sobremaneira mais complexo, envolve a utilização de doadores das células reprodutoras, total ou parcialmente, dificultando ou maximizando a problemática referente a filiação.

A criança oriunda de uma reprodução heteróloga não conserva as informações genéticas do casal, ou pelo menos, dos dois representantes do casal. Deste modo, o critério biológico não possui o condão de solucionar a questão da filiação.

A primeira inferência que deve ser tomada quando da definição da maternidade diante da prática da maternidade de substituição, operacionalizada por uma fecundação heteróloga, é que a presunção, até então absoluta, de que a “mãe é sempre certa” também não possui qualquer respaldo fundante.

Com efeito, é, principalmente, na reprodução heteróloga que o critério afetivo ganha a dimensão de imprescindibilidade. Os ânimos de constituir uma família, de instrumentalizar o projeto parental, nem que para isso o casal tenha que se valer de métodos científicos, devem ser sobrelevados e alçados como resposta para a problemática da filiação.

A filiação desejada é a que melhor atende os interesses da criança; o casal encomendante, quando busca contornar os problemas que lhes impede de reproduzir-se por metodologias naturais, através do “simples” contato sexual, demonstra com clarividência a intenção de estabelecer uma família baseada, sobretudo, no afeto que os unirá, até mesmo como forma de superarem juntos os traumas conseqüentes da esterilidade. A filiação será construída em um momento pré-fecundação. Quando o casal resolve buscar a medicina reprodutiva, em regra, a afetividade já pode ser vislumbrada, a vontade de ter filhos estampa o sentimento que esses indivíduos poderão repassar a uma criança; sendo justamente tal elo, laço de amor, que a maternidade de substituição deve buscar dar a criança gerada; mais que parentes, busca-se dar pais afetivos, que possam lhe mostrar o real sentido do amor familiar.

Como bem denotam ROSENVALD E FARIAS (2010), o princípio do venire contra factum proprium[7] é perfeitamente aplicável às relações familiares, e por conseqüência, à filiação; dessa forma, veda-se terminantemente o comportamento contraditório na percepção da filiação, principalmente quando realizada através das técnicas de reprodução assistida, onde o consentimento informado dos participantes é elemento nuclear para a validação do procedimento. No caso da gestação de substituição, a técnica é efetivada lastreando-se na confiança depositada no casal de assumirem, ao cabo da gestação, a maternidade/paternidade da criança, existindo um verdadeiro dever jurídico de comportamento diante do consentimento dos mesmos para a realização da prática. É um dever, sobretudo, de responsabilidade com uma nova vida que surge, sendo inviável a busca pela desconstituição do estado de filiação que foi afirmado anteriormente ao nascimento, pois esse só foi possível em razão da anuência do casal, que veio a buscar no procedimento uma alternativa para formação de uma família.

O que se espera, portanto, daqueles que buscam a gestação de substituição é o pleno senso de responsabilidade para com suas escolhas, que devem ser firmadas na mais completa maturidade emocional, uma vez que mais que vínculos de filiação, o que se encontra “em jogo” e em discussão é o desenvolvimento de uma vida.

Diante de todo o exposto, resta evidenciado que o instituto da maternidade de substituição é uma realidade intransponível na vida social pátria. Tal procedimento precisa de uma legislação que lhe ofereça soluções concretas e palatáveis, como forma de viabilizar o ideal maior da prática: a formação do núcleo familiar.

CONCLUSÃO

Uma sociedade politicamente organizada é marcada pela constante mudança de valores, aspectos culturais, morais e sociais, sempre se amoldando ao pensamento que prepondera em determinadas épocas; essa é a força motriz e o grande desafio da ciência jurídica, buscar sempre se adequar à nova realidade social, sob pena de perder o seu caráter primordial de regulamentação de condutas, tornando-se uma ciência inócua e sem maior respaldo concreto.

Infelizmente, os fatos sociais, as mudanças empreendidas na sociedade se avolumam em uma progressão geométrica, que traz como consequência primeira o fato de que o Direito, por diversos fatores, não possui condições de acompanhar a velocidade da metamorfose social.

Exemplificativamente, pode-se mensurar o descompasso existente entre os avanços na área da medicina reprodutiva e a normatização referente a tal realidade é preocupante, na medida em que inexistem normas cogentes, de oponibilidade erga omnes, que regulamentem devidamente as conquistas decorrentes do progresso científico.

A medicina reprodutiva mostrou à sociedade a procriação artificial como subterfúgio biológico ao problema da esterilidade, que inviabilizava a constituição de família para casais com problemas reprodutivos; também evidenciou a possibilidade de casais homoafetivos procriarem, sem a necessidade de manterem contato sexual com qualquer pessoa de sexo diverso. Aliás, essa foi a grande tônica dos avanços biotecnológicos: a possibilidade de fecundação extracorpórea, em laboratório.

Nesse espaço do desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida, surge a maternidade de substituição como uma forma de operacionalizar tais técnicas, onde a fecundação, homóloga (gametas do próprio casal) ou heteróloga (gametas de, ao menos, um doador), ocorreria em laboratório, mas a gestação ocorreria em um útero de substituição, a partir do empréstimo por determinada mulher.

A prática condensa uma das maiores problemáticas no que diz respeito às técnicas de reprodução assistida, uma vez que rompe com o brocardo mais absoluto no que pertine a matéria da filiação civil, de que a mãe seria sempre certa; com a maternidade de substituição, pode-se afirmar a existência de, até, três figuras maternas: a mãe gestacional; a mãe biológica e a mãe afetiva/social.

Nada obstante as celeumas que poderiam ser originar da prática da gestação por outrem, essa já se encontra enraizada no cenário nacional e até internacional, sendo que a ausência de uma regulamentação rígida e uniforme a respeito da matéria foi o que desencadeou toda a sorte de polêmicas no que assiste a filiação da criança.

No âmbito nacional, a questão é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina, estando, atualmente, provisionada a matéria na resolução 2.013/2013, onde o órgão federal deixa assente que se permite a prática da maternidade de substituição desde que preenchidos certos requisitos, como por exemplo, o grau de parentesco que deve envolver a mãe gestacional, devendo essa ser parente até o 4º grau de qualquer dos componentes do casal,  além da necessidade do consentimento informado de todos os participantes, deixando-se previamente acertado que, ao cabo da gestação, a criança seria entregue ao casal encomendante, não havendo qualquer vinculação filial com a mãe de substituição.

Todavia, em que pese a boa vontade apresentada pela resolução do Conselho Federal de Medicina, tais observações, ponderadas pelo dito órgão, não se afiguram suficientes para provisionarem por completo a prática da maternidade de substituição, servindo apenas como um código de conduta ética para os próprios profissionais da medicina. Por ser norma infralegal, portanto despedida de qualquer força coercitiva, a resolução não possui o condão de impor sua observância a todos indistintamente, não se propondo, portanto, a solucionar todos os problemas decorrentes da prática em discussão.

Por lógica, a ausência de normatização legitima a liberalidade indiscriminada da prática da maternidade de substituição; apoiando-se na perspectiva de que “o que não é proibido, é permitido” a prática foi vulgarizada pelo comércio clandestino, criando-se uma verdadeira rede comercial de barrigas de aluguel, onde mulheres interessadas em um incremento financeiro, independente do motivo, se propunham a emprestar o seu útero de aluguel em verdadeira transação financeira. Tal comércio é aquecido pela praticidade, atraindo a atenção de casais que não possuem melhores condições de atenderem as requisições da resolução do Conselho Federal de Medicina.

Diante da ausência de qualquer comando legal, deve, o operador do direito, dar respaldo a análise do princípio do melhor interesse da criança, como forma de encontrar o melhor ambiente para o seu desenvolvimento, preservando-se todos os seus direitos. Imprescindível, portanto, que o melhor interesse seja uma pedra angular na definição da maternidade e filiação da criança.

Além do melhor interesse, deve-se observar o surgimento de um novo critério, por que não dizer, de uma nova filiação, que condensa mais que critérios puramente biológicos ou genéticos, busca fundar-se nos sentimentos que unem os indivíduos como pais e filhos; a afetividade surge como novo parâmetro para aferir-se a família moderna, que deixou de ser vista sob a óptica absolutista do casamento e dos filhos decorrentes dessa união. O afeto exsurge como medida primeira na realização do projeto parental.

Na percepção da filiação à luz da prática da maternidade de substituição o que deve preponderar, em regra, é a filiação definida anteriormente a própria prática da gestação de substituição, no momento em que determinado casal, desejando contornar os duros efeitos da esterilidade na vida humana, decidem buscar na gestação de substituição uma forma de instrumentalizar o seu sonho: construir uma família. Desse modo, em regra, a filiação deve tomar por parâmetro a vontade que animou o desejo de ser, de constituir família, do casal que buscou através da medicina reprodutiva a operacionalização do planejamento familiar. É nele -casal- que pode ser ponderado mais facilmente a simbiose entre o melhor interesse da criança e o imprescindível afeto que deve uni-los enquanto família. 

Negar o direito de formação de uma família a um casal estéril ou homoafetivo é mais que abusivo, é inconstitucional, é negar os valores primordiais consagrados pela Carta Política de 1988, que assegura em suas previsões magnas a possibilidade de planejamento familiar pelo casal, sem qualquer ingerência abusiva do Estado, cabendo a esse, na verdade, envidar esforços para que o planejamento familiar seja instrumentalizado. Proibir a prática da maternidade de substituição, negando-se o direito de ter filhos, seria ferir mortalmente a dignidade da pessoa humana, consagrada como fundamento da República, consoante artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

Geraldo Zimar de Sá Júnior
Bacharel em Direito

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